
Natural de Florestal, distrito do munic�pio de Jequi� (BA), preparava-se para se deslocar at� a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde faria o concurso para mestrado em direito. Foi quando, pela primeira vez, mergulhou nos sons da guerra urbana. Enquanto para os moradores o tiroteio n�o passava da rotina banal, para o imigrante baiano era profundo o estranhamento, sobretudo, da naturaliza��o da guerra civil nas regi�es vulner�veis do Rio, que expunha a brutalidade a que estavam submetidos aqueles moradores.
Renan Porto, que naquele momento lia o cl�ssico “Grande sert�o: veredas”, de Guimar�es Rosa, constatava que o projeto de moderniza��o e desenvolvimento nacional nunca superou as estruturas arcaicas das rela��es de poder baseadas no coronelismo e nas rela��es entre pol�ticos e m�fias. Ao contr�rio, constata, � um processo de desenvolvimento que carrega consigo um modo de gerir os conflitos pol�ticos em que sempre se conservam as rela��es de poder e seus privil�gios, ao mesmo tempo em que h� uma forma de distribui��o espacial da viol�ncia bastante desigual e marcada pelo racismo.
Porto refletia sobre a viol�ncia moderna canalizada para certas periferias, sem evitar a analogia: assim como os jagun�os de Guimar�es Rosa cooptam negros e pobres para seus ex�rcitos, bandos que existiam, na maioria das vezes subordinados aos l�deres pol�ticos, fazendeiros e coron�is; tamb�m as fac��es criminosas que controlam as comunidades cariocas reproduzem igual l�gica da viol�ncia.
MESTRADO
Nascia, assim, o livro “Pol�ticas de Riobaldo: A justi�a jagun�a e suas m�quinas de guerra”, desdobramento da disserta��o de mestrado defendida em 2019, que acaba de ser lan�ado pela Cepe Editora. N�o se trata de an�lise da obra de Guimar�es Rosa com vi�s liter�rio. Mas, antes, foi objetivo do livro trabalhar o conceito de justi�a.
“Meu trabalho tem como foco principal o conceito de justi�a. O romance de Rosa me permitiu explorar uma justi�a da perspectiva n�made e an�rquica dos jagun�os, em oposi��o a uma justi�a do Estado, dos ju�zes e dos tribunais, que decidem sobre a vida de corpos marginalizados e oprimidos pelas mesmas for�as hier�rquicas do Estado. O �mpeto insaci�vel por liberdade dos jagun�os traz a possibilidade de uma justi�a que coloca em quest�o o que subjuga os corpos e os confina a imposi��es e hierarquias alheias aos seus modos de vida”, afirma o autor.
Em seu sentido hist�rico, a jagun�agem foi, segundo Renan Porto, um sistema de banditismo ligado �s figuras dos coron�is e o modo como o poder era exercido territorialmente no sert�o, para al�m das institui��es do Estado.
“O contexto de crescente controle territorial das periferias urbanas por parte de fac��es criminosas e suas liga��es com poderes do Estado – vide o caso da morte de Marielle –, quando visto do ponto de vista da jagun�agem, parece reatualizar uma estrutura de poder mais antiga que antes funcionava no sert�o e hoje � ativo nas grandes cidades”, sustenta Renan Porto, considerando ser a forma de poder das mil�cias e do uso da viol�ncia armada que mant�m certos poderes pol�ticos.
“No caso de Riobaldo, ele entra na jagun�agem meio que de surpresa. Ele de repente se v� inserido numa pr�tica atuante no territ�rio onde ele cresceu, pr�tica ligada �s formas de poder territorial do local. Tal como ele, crian�as que s�o expostas �s formas de poder local controlando os territ�rios onde crescem acabam sendo absorvidas por uma guerra que lhes foi imposta e perdem suas vidas nisso. N�o podemos atribuir o destino desses garotos �s escolhas individuais, quando n�o pudemos oferecer-lhes outros caminhos poss�veis, que n�o demandam tanto esfor�o e sacrif�cio para serem trilhados”, diz Renan Porto, acrescentando saber como � dif�cil acessar a universidade quando a partir do contexto perif�rico e de uma fam�lia de baixa renda.
Segundo Porto, em “Grande sert�o: veredas” o Brasil � narrado a partir de suas margens, onde a guerra se atualiza sem ser percebida como uma amea�a ao projeto institucional moderno. Tal fantasma, contudo, ainda persiste, diz ele, sempre se reconfigurando em novos conflitos nas regi�es perif�ricas do pa�s. “A hist�ria de Riobaldo � a passagem da guerra � institucionaliza��o da propriedade, da lei e de um novo comando sobre a terra; do nomadismo da vida jagun�a de Riobaldo � sua sedentariza��o como fazendeiro, propriet�rio de terra, fixado nos limites de suas fronteiras. Essas duas experi�ncias distintas de habitar e distribuir o espa�o, que ser�o apresentadas aqui n�o como identidades fixas e absolutamente exteriores entre si, mas como dois polos que indicam tend�ncias e inclina��es que perpassam a vida daqueles personagens”, observa o autor.
Assim, ao mesmo tempo em que o jagun�o n�made experimenta a terra como espa�o de navega��o sem fronteiras determinadas, o fazendeiro converte o espa�o em propriedade, delimitando suas fronteiras. “Riobaldo produz uma posi��o amb�gua: um fazendeiro narrando suas mem�rias da jagun�agem. O que � apenas uma das muitas ambiguidades que podemos encontrar na obra de Guimar�es Rosa. Por�m, Riobaldo continua sendo assombrado pelo fantasma da guerra, e para se proteger distribuiu quinh�es de sua propriedade entre outros jagun�os que protegiam suas terras”, aponta o autor.
FAC��ES
Para Renan Porto, o livro de Guimar�es Rosa poderia ser reescrito hoje a partir dos conflitos entre fac��es que controlam as favelas, que assim como os bandos jagun�os, cooptam negros e pobres para seus ex�rcitos. “Bandos que existiam sempre em rela��o – na maioria das vezes numa rela��o de servi�o – com l�deres pol�ticos, fazendeiros e coron�is”, sustenta. Segundo ele, hoje, Riobaldo seria uma crian�a pobre abandonada pelo pai e com a m�e j� morta.
Teria tentado estudar, mas abandonara os estudos. “Sem alternativa para sobreviver, se v� inserido numa fac��o, com uma arma na m�o e posto diante de uma guerra que n�o era sua e que, al�m da morte, s� poderia lhe oferecer o prest�gio de ser um guerreiro”, considera Porto, para quem o Riobaldo da atualidade passaria um bom tempo lidando com conflitos morais sobre a viol�ncia e a brutalidade que seu grupo e ele mesmo promovem. No caso da personagem de Guimar�es, ap�s assumir um pacto diab�lico, torna-se l�der do seu bando e promotor direto da guerra, tendo a “infame fortuna de terminar a vida como fazendeiro”, que � sua condi��o como narrador.
Teria tentado estudar, mas abandonara os estudos. “Sem alternativa para sobreviver, se v� inserido numa fac��o, com uma arma na m�o e posto diante de uma guerra que n�o era sua e que, al�m da morte, s� poderia lhe oferecer o prest�gio de ser um guerreiro”, considera Porto, para quem o Riobaldo da atualidade passaria um bom tempo lidando com conflitos morais sobre a viol�ncia e a brutalidade que seu grupo e ele mesmo promovem. No caso da personagem de Guimar�es, ap�s assumir um pacto diab�lico, torna-se l�der do seu bando e promotor direto da guerra, tendo a “infame fortuna de terminar a vida como fazendeiro”, que � sua condi��o como narrador.
Inst�vel e imprevis�vel, a pol�tica jagun�a, segundo Renan Porto, faz emergir permanentemente o confronto de for�as diversas, atores desconsiderados e invisibilizados, que desestabilizam a comunica��o p�blica, com um discurso descolado da l�gica racional.
“Isto me parece estar acontecendo de modo ainda mais expl�cito nos �ltimos anos no Brasil, depois do bolsonarismo, inclusive considerando a� a reemerg�ncia de mil�cias rurais atuando em favor de fazendeiros. Jagun�os”, diz ele. Para Porto, a recria��o est�tica que Rosa faz desses homens – op�e jagun�os a servi�o de coron�is e deputados, como o Herm�genes e o Ricard�o, a um outro bando an�rquico e insubmisso, aquele de Diadorim e Riobaldo.
“Esses doces b�rbaros atravessam essa atmosfera contradit�ria, impura e conflitiva de um territ�rio em guerra, numa afirma��o audaz de sua liberdade. Eles n�o eram bons mocinhos. N�o � uma luta dos cavaleiros do bem contra as for�as do mal. S�o corpos recusando a submiss�o de suas vidas a interesses alheios que n�o os beneficiam em nada”, diz o autor.
“S�o corpos que n�o cabem na ordem social repressiva e impositiva da sociedade patriarcal e coronelista do sert�o. S�o corpos inquietos, se mexendo, n�o se contendo de liberdade, criando rela��es entre si, fazendo e desfazendo seus bandos, mas sempre e sempre em movimento, impulsionados de vida e vontade. N�o podemos deixar que nossa vontade de viver seja consumida pela imposi��o de uma vida de trabalho e consumo que suga nossas pot�ncias criativas. Escrevi este livro sobretudo para instigar esse desejo e essa pot�ncia que todos n�s temos. E como o Rosa disse, o sert�o � o mundo”, sublinha Renan Porto.

“Pol�ticas de Riobaldo: A justi�a jagun�a e suas m�quinas de guerra”
.Renan Porto
.Cepe Editora
.132 p�ginas
.R$ 30 (impresso) e R$ 12 (e-book)