
A tudo o narrador observa, na galeria de um museu de arte, diante de uma tela de Tintoretto (a obra se chama “Homem de barba branca”), num encontro com um velho mestre, Reger. � Reger quem repudia, se enoja, reclama, aponta o dedo. Se n�o chegou a enfi�-lo no olho do leitor foi por falta de oportunidade. Desagrada o que os guias falam aos turistas que visitam o museu, os pr�prios turistas que perderam a capacidade de contempla��o e apenas cumprem tabela de uma abstrata necessidade de ver arte: tudo � resumido a sordidez e parvo�ce, que ele enxerga como mais bem distribu�da sobre a Terra do que bom senso.
N�o escapa um. “Os historiadores da arte s�o os verdadeiros assassinos da arte”, dispara Reger. Ou: “N�o existe nada que eu odeie mais do que museus”. Todavia, o velho cr�tico de m�sica, literatura e artes pl�sticas, colaborador do Times, de Londres, comparece, dia sim, dia n�o, com exce��o das segundas, quando o museu fecha, h� mais de 30 anos, ao Museu de Hist�ria da Arte de Viena, para se sentar a um banco desconfort�vel e olhar a tela de Tintoretto. Ou fica por ali, a ler um pouco, ou a pensar — a �nica coisa que ele admite usufruir. Embora se vanglorie de jamais ter conclu�do um livro: bastam algumas p�ginas, uma breve folheada e, pronto, assunto resolvido. “Quem l� tudo n�o compreende nada”, decreta, num m�todo muito peculiar (confira Trecho). Nas telas, ele procura sempre por um ‘erro grave’ e Albrecht D�rer n�o passa de um protonazista, de um pr�-nazista: “P�s a natureza na tela e a matou”. Em Bach, espera ouvir o fracasso. Beethoven � uma anta surda, “convulsivo e monoc�rdio”.
“Todos esses artistas, esses Mestres Antigos, eram corrupt�veis, e � por isso que sua arte me repugna tanto”, alfineta Reger. Leia Goethe com cuidado e ele se torna ris�vel. Kant? A mesma coisa, “voc� vai de s�bito chorar de tanto rir”. Nem a arquitetura escapa do moedor, � tudo canhestro e as grandes catedrais se encolhem a olhos vistos. Adalbert Stifter, escritor muito conhecido por l�, um pulha, rid�culo, brega (mais tarde, vai declarar amor a Novalis e aventa a possibilidade de Christoph Martin Wieland ser o grande subestimado da literatura alem�). Bruckner, o compositor, sentimental e kitsch, ins�pido e impensado. Heidegger, tamb�m rid�culo, para come�ar, “aquele burguesinho de bombachas, nacional-socialista”, carente de sensibilidade, “um ruminante protoalem�o da filosofia, uma vaca filos�fica constantemente prenhe” que � engolido �s colheradas por falta de melhor crit�rio. Um feirante de filosofia “que s� levava para a feira artigos roubados”, um pensador sem equipamento para pensar por conta pr�pria. E por a� afora.
O problema � s� do fil�sofo? Evidente que n�o, � tamb�m dos alem�es, que “sempre se apegam apenas aos fil�sofos errados”. Caminhadas? “Odeio.” Os pais? “Formavam ‘um casal horroroso’.” Celebra��es? “N�o h� nada de mais mentiroso do que essas festas de anivers�rio �s quais as pessoas v�o.” Multid�es? “N�o h� nada que eu odeie mais profundamente do que a massa.” Ali�s, ele diz odiar uma coisa ao m�ximo para no instante seguinte se desmentir, dizendo que � a pr�xima coisa que odeia ainda mais, quando pensa melhor.
Sem salva��o
Uma �nica vez o banco que lhe fica reservado na sala Bordone, onde se encontra o quadro de Tintoretto, est� ocupado por um ingl�s, ou melhor, um gal�s, que veio conferir pessoalmente a tela “Homem de barba branca”. Acontece que ele tem em casa aquele quadro, al�m de v�rias dezenas de italianos, Lotto, Crespi, Strozzi, Giordano, Bassano. Heran�a de uma tia. Um dos dois deve ser falsifica��o ou, hip�tese aventada e considerada, talvez Tintoretto tenha feito dois quadros id�nticos. “Seria de todo modo uma sensa��o”, declara o ingl�s. A situa��o n�o se resolve, ali�s. De modo que Reger pode voltar a vociferar contra tudo e todos. Por exemplo, os banheiros da �ustria, cidade que “tem as privadas mais medonhas do mundo”. Mas tudo certo, porque o vienense tamb�m � um sujeito sujo. Os restaurantes, portanto, se esmeram em tamb�m ser da mesma laia.
O amigo e narrador da hist�ria, Atzbacher, chega � sala Bordone na hora combinada. Eles conversam a respeito de Atzbacher suportar escrever sem publicar, algo que Reger respeita, embora tente dissuadir o amigo a publicar pelo menos algum trecho, para sentir a temperatura da recep��o, muito embora, por outra parte, � �bvio que ele n�o respeita o p�blico ou a opini�o que ele tenha. O assunto migra para o fato de o pa�s ser cada vez mais hostil � cultura, com “governos cada vez mais idiotas”, depois para o modo como ali mesmo, naquela sala, Reger conheceu a esposa e como o conv�vio com ela foi saud�vel e longevo. “Sentados aqui neste banco”, diz Reger, “somos mais ou menos a depress�o em pessoa, a desesperan�a, disse ele, e ent�o senta uma mulher do nosso lado, casamos com ela e estamos salvos”. Ele havia se prometido suicidar caso a mulher morresse primeiro, mas n�o conseguiu, o que � visto tamb�m como fracasso.
No entanto, o que prevalece, e volta e torna a vir, no caso de Reger, � o pessimismo exacerbado, a vis�o negativa e exasperante de todas as coisas. A arte antiga � ran�osa, a contempor�nea n�o vale um tost�o furado e “a totalidade dos escritores austr�acos n�o tem absolutamente nada a dizer, incapaz de escrever at� mesmo aquilo que n�o tem a dizer”. A literatura do pa�s � repugnante, sentimental, pura imita��o. Ele chega � conclus�o terr�vel, do alto dos 82 anos, de que toda a acumula��o que fez em rela��o aos livros redunda em vazio. Ler seria encher a caixa-forte intelectual, mas “quando abrimos esse nosso cofre intelectual, ele est� vazio”, o que gera solid�o e desamparo. Quando se revela afinal o prop�sito para o qual Reger convocou o jovem amigo e pupilo, ao fim do romance, a decep��o se concretiza de vez, numa esp�cie de piparote desimportante.
O que Bernhard deseja
Ele talvez queira ensinar o leitor a odi�-lo inclusive, tal como suas personagens cultivam tanto �dio e desprezo pelo que se encontra no mundo. A consist�ncia da conduta em v�rios romances leva a crer que as vozes narrativas escondem mal o mesmo autor, ou seja, Bernhard, a assinar todo o menosprezo que espalha. Do mesmo modo que Reger relega os Mestres Antigos a uma posi��o, por assim dizer, desimportante, talvez o que Bernhard queira dizer ao leitor seja que proceda a opera��o semelhante: reduza a literatura de Bernhard � insignific�ncia que ela talvez carregue em si. Desmonte a cren�a de que se trata de um bom escritor, de um Mestre Antigo da literatura ou o contempor�neo que n�o vale um tost�o furado, e olhe com o mesmo olhar de desprezo que as personagens entregam para o mundo em volta. Tudo � o mesmo e pare de se torturar com essa literatura reiterativa ou aprenda com ela que qualquer esfor�o redunda in�til.
Ele sabe que os leitores jamais far�o tal movimento, que nunca conseguir�o se desautomatizar do tratamento educacional que receberam e que n�o podem, de maneira aut�noma, retirar o v�u que se estende por sobre a verdade e reconhecer que todo rei est� nu, por defini��o. E que a literatura de apar�ncia redundante de Bernhard � mesmo limitada. Talvez nem devesse ter acumulado os pr�mios que recebeu, resultado da incapacidade de perceber as falhas inerentes ao projeto (um dos livros dele, “Os pr�mios”, � justamente vis�o �cida despejada sobre os conterr�neos que lhe premiaram a literatura e para os quais ele reserva o mesmo desprezo de sempre. No caso, p�stumo).
O cr�tico, de dentro da bolha de prote��o criada por um museu, observa o mundo exterior com um olhar que n�o pode ser outra coisa que detentor de vis�o distorcida do que as coisas s�o de verdade. Nesse sentido, a anedota final de “Extin��o” alcan�a envergadura bem maior, mais potente, do que essa “com�dia”, ali�s, o subt�tulo de “Mestres antigos”. Reger est� perdido e o leitor, com ele. Sempre me pareceu que, mais do que discutir pelo vi�s negativo a vida cultural ou pol�tica ou social da �ustria, Bernhard estava interessado em educar o leitor para enxergar as coisas como elas efetivamente s�o. Ter falhado prova seu sucesso.
*Paulo Paniago � professor de jornalismo da Universidade de Bras�lia
”Mestres antigos”

• Tradu��o de Sergio Tellaroli
• Companhia das Letras (184 p�gs.)
• R$ 64,90; e-book: R$ 39,90
Trecho
“[...] Em casa, faz anos que n�o leio mais livro ne- nhum, mas aqui, na Sala Bordone, j� li uma centena deles, o que n�o significa que li esses livros ‘inteiros’ nesta sala, jamais em minha vida li um livro ‘inteiro’, meu jeito de ler � o de um folheador altamente talentoso, ou seja, de algu�m que prefere folhear as p�ginas a l�-las e que, portanto, folheia dezenas, ou, sob certas condi��es, centenas de p�ginas antes de ler qualquer uma delas; quando, por�m, l� uma p�gina, o faz a fundo, como ningu�m, e com a maior paix�o pela leitura que se possa imaginar. Sou mais um folheador que um leitor, � preciso que voc� saiba, e amo folhear tanto quanto amo ler; em toda a minha vida, j� folheei milh�es de vezes mais do que li, mas pelo menos sempre com a mesma alegria e o mesmo prazer intelectual da leitura.
Afinal, � melhor lermos no total apenas tr�s p�ginas de um livro de quatrocentas, mas com profundidade mil vezes maior, do que fazer como o leitor comum, que l� tudo mas n�o l� uma �nica p�gina em profundidade, disse. [...] Eu entro num livro e nele me instalo de corpo e alma, note bem, avan�o por uma ou duas p�ginas de um trabalho filos�fico como se entrasse numa pai- sagem, na natureza, num Estado, num detalhe da Terra, digamos, e assim procedo para penetrar por completo, e n�o pela metade ou sem convic��o, nesse detalhe da Terra, ou seja, para investig�-lo e, ent�o, uma vez investigado com todo o rigor � mi- nha disposi��o, deduzir da parte o todo. [...]”
Afinal, � melhor lermos no total apenas tr�s p�ginas de um livro de quatrocentas, mas com profundidade mil vezes maior, do que fazer como o leitor comum, que l� tudo mas n�o l� uma �nica p�gina em profundidade, disse. [...] Eu entro num livro e nele me instalo de corpo e alma, note bem, avan�o por uma ou duas p�ginas de um trabalho filos�fico como se entrasse numa pai- sagem, na natureza, num Estado, num detalhe da Terra, digamos, e assim procedo para penetrar por completo, e n�o pela metade ou sem convic��o, nesse detalhe da Terra, ou seja, para investig�-lo e, ent�o, uma vez investigado com todo o rigor � mi- nha disposi��o, deduzir da parte o todo. [...]”