A partir da sua hist�ria de vida, Mar�lia Pires registrou o testemunho de uma gera��o em 'Lamaluca'. Lan�amento ser� neste s�bado (13/8), em Belo Horizonte
12/08/2022 04:00
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atualizado 11/08/2022 21:36
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Mar�lia Pires
Mar�lia Pires
(...) A diretoria da UNE (Uni�o Nacional dos Estudantes) era da AP (A��o Popular) e o congresso tinha toda a chance de eleger a chapa de continuidade. Como foi organizado pelos foquistas de S�o Paulo, deve ter sido porque, l�, eles tinham a lideran�a da entidade. A inten��o � que fosse clandestino, como os anteriores. Dessa vez, ser�amos centenas de estudantes, mas, sendo S�o Paulo uma cidade t�o movimentada, poder�amos ter tido um esquema em que passar�amos despercebidos.
E na verdade o congresso n�o foi em SP. O caminho para o local – um s�tio na regi�o de Ibi�na, n�o t�o longe – j� nos mostrava os furos do esquema montado.
Por um lado, os organizadores nos conduziam como se estiv�ssemos numa guerrilha, com senhas, contrassenhas, at� estudante armado vi, fazendo a seguran�a do local onde me apresentei, dentro da USP. Depois, com mais tr�s pessoas, fui colocada num carro.
N�o pod�amos saber para onde �amos, nem nos identificar uns para os outros. Um trajeto – entre SP e Ibi�na – que talvez durasse umas duas horas, teve tantos esquemas, tantas trocas de carro, tantos rodeios, que durou quase 24 horas.
Numa dessas interrup��es do trajeto, o Fusca em que ia com outros estudantes nos deixou num ponto na rodovia com ordens de esperarmos outro ve�culo que nos pegaria.
Quando entramos um pouco mais na mata, para n�o ser vistos da estrada, encontramos uma clareira onde uns 50 estudantes estavam na mesma situa��o – inclusive Gaspar, que para todos os efeitos deveria ter um esquema especial de prote��o � lideran�a.
O pior � que, em vez de outra condu��o que dali nos tirasse, apareceram uns homens se dizendo guardas florestais. Mentira por mentira, algu�m respondeu que est�vamos fazendo um piquenique. Eles se foram, mas ia ficando n�tido que a repress�o estava em nosso encal�o.
A repress�o sabia que o congresso seria no estado de S�o Paulo, mas n�o exatamente onde. Colocaram tropas na rodovi�ria e no aeroporto. Espalharam outros tantos de milicos pelas ruas da capital. Avisaram as delegacias municipais que informassem qualquer movimenta��o estranha.
A delegacia de Ibi�na, uma cidade de apenas 6 mil habitantes, a maioria espalhada no arredor rural, relatou a presen�a de jovens desconhecidos circulando por l� uma semana antes do evento, comprando o estoque de escovas de dente e p�es da cidade. Foi f�cil para a pol�cia.
Ter a pol�cia de olho n�o era uma novidade para n�s. O insuspeit�vel era que ela ousasse endurecer o jogo com um grupo de pessoas t�o grande assim. Afinal, �ramos estudantes universit�rios – pessoas de fam�lia da classe m�dia-alta do nosso Brasil – e isso ainda valia de alguma coisa.
Se disse que o local do congresso era um s�tio, n�o pense num local bonitinho, com jardins e acomoda��es decentes. S� havia um galp�o, de uns 100 metros quadrados, j� absolutamente lotado quando cheguei. No mais, era um terreno �ngreme, ro�ado recentemente, terra viva, muito barro, daquele barro escorregadio que nem quiabo, pois chovia direto.
O marrom tornou-se nossa cor oficial, pois era imposs�vel andar sem cair. Aproveitando o declive do terreno, os organizadores haviam feito uns degraus, como uma arquibancada, coberta de pl�stico e protegida da chuva por uma imensa lona. Sobre a lona, � claro, rid�culos galhos de �rvore, como se v� em qualquer manual de guerrilha.
Essa era a plen�ria do congresso. Em uma outra pequena barraca, um pouco abaixo, serviam a comida. Uma batata assada e uma colher de a��car para cada pessoa. Chuveiro, nem pensar. Banheiro, s� um no galp�o – ou no mato.
E come�ou o 28º Congresso Nacional da UNE, na noite de 11 de outubro de 1968. Na mesa diretora, a lideran�a oficial, 104, 105, entre eles Gaspar. Nos discursos iniciais, a luta de esgrima, civilizada, entre as duas posi��es pol�ticas que disputavam a diretoria e, portanto, a diretriz do movimento estudantil que viria a seguir.
Na arquibancada, cerquei-me dos meus pupilos (aqueles representantes que consegui trazer das faculdades do interior de Minas), inexperientes nas manhas da pol�tica, o que me mantinha atenta para fornecer esclarecimentos e votarem “certo”.
Era proibido bater palmas ou gritar. A manifesta��o poss�vel ali era o estalar dos dedos – e como isso faz efeito quando � tanta gente fazendo junto! Foi dando para perceber que nossa posi��o estava com bastante chance naquele congresso.
N�o foi uma sess�o demorada, guardando f�lego para as quest�es pol�micas marcadas para o dia seguinte. Est�vamos todos exaustos, e o �nico lugar poss�vel para dormir era ali mesmo na arquibancada.
Quando nos ajeit�vamos, nos recostando uns nos outros, fui surpreendida pela chegada do Gaspar, que mandou para as cucuias a decis�o de n�o tornarmos p�blica nossa rela��o e viera se acomodar no meu colo. Ainda deu para, aos sussurros, trocarmos algumas impress�es sobre o dia, antes de tentar dormir.
Naquela posi��o sentada, inc�moda, j� estava bem desperta quando o dia come�ou a clarear, embora a plen�ria dormisse como se estivesse em casa.
Comecei a reparar que l� adiante, a uns 20 metros da plen�ria, o Travassos (presidente da UNE), o Jean Marc (nosso candidato para a elei��o que ali ocorreria), o Vladimir Palmeira (presidente da Uni�o Metropolitana de Estudantes-RJ), o Jos� Dirceu (presidente da UEE-SP, da corrente foquista), enfim, uma meia d�zia de pessoas da c�pula da lideran�a confabulava.
Acordei Gaspar, que tamb�m percebeu que ocorria algo anormal e desceu rapidamente. Chegaram a se juntar uns dez. Logo depois, Gaspar veio at� onde eu estava:
“A seguran�a do congresso avisou que estamos cercados pela pol�cia. N�o se apavore e tente acalmar as pessoas para que n�o haja p�nico”. S� consegui perguntar: “Mas e voc�? O que v�o fazer com voc�?”. Demos um beijo e ele saiu de perto.
Depois, soube que, naquele grupo, a discuss�o era se a lideran�a deveria tentar escapar ou n�o. Havia um plano B montado pela seguran�a para eles. Resolveram n�o sair.
De onde estava, vi o Vladimir se afastar e sair correndo em dire��o ao mato, no sentido contr�rio � entrada do s�tio. Minutos depois o vi retornando, no mesmo ponto de onde sumira, com as m�os cruzadas atr�s da cabe�a, cercado por cinco militares armados com metralhadora.
E a� foi s� olhar em torno. Como num filme de caub�i, quando os �ndios surgem no horizonte, em qualquer dire��o que olhava, via a silhueta dos militares lado a lado, empunhando metralhadoras e fuzis, se aproximando num cerco compacto.
Algumas pessoas acordaram assustadas e come�aram a gritar. Houve um princ�pio de tumulto, logo controlado.
N�o havia o que fazer.
J� ocupando a plen�ria, os militares gritavam que f�ssemos deixando o local em ordem, sem correr e sem falar uns com os outros. Qualquer pessoa que demonstrava nervosismo era logo cercada por um monte de guardas de armas engatilhadas. A maioria, propositadamente, deixou por l� as mochilas e a identifica��o. Quem sabe conseguir�amos n�o ser identificados?
�ramos 770 estudantes. Um batalh�o ocupou as rodovias de acesso. Outro contingente de milicianos da For�a P�blica, mais 80 agentes do DOPS, fizeram o cerco.
Estavam fortemente armados e eram mais do que suficientes para nos dominar rapidamente. Gritavam muito, intimidadores. Tinham ido para l� preparados para realizar uma a��o b�lica – aquela que eles passam anos a fio se preparando e nunca acontece.
Logo �ramos duas longas filas de estudantes, entremeados de policiais, caminhando pela mesma estradinha de terra por onde t�nhamos chegado.
Soube depois, pelo jornal, que andamos 12 quil�metros at� o local onde a estrada se alargava e estavam mont�es de �nibus e caminh�es para nos recolher.
Em l� chegando, veio a ordem: homens para um lado, mulheres para o outro. Ainda consegui olhar para Gaspar, na fila dos homens, quase paralelo a mim e lhe enviar um beijo.
Fizemos o trajeto at� o Pres�dio Tiradentes, em S�o Paulo, nesses �nibus, cercados de batedores e seguran�as. Foi, evidentemente, um estardalha�o.
Para come�ar, o problema de alojamento para tanta gente. Tiveram de soltar todos os presos e presas transit�rios de S�o Paulo. Ficaram no pres�dio apenas aqueles que cumpriam pena, amontoados, bem separados de n�s.
Superlotamos a ala feminina, onde tamb�m ficamos amontoadas em celas lado a lado e, portanto, sem contato visual com a outra. Uns 20 metros quadrados sem qualquer m�vel, apenas um vaso sanit�rio sem porta. No m�ximo, cab�amos sentadas e t�nhamos de fazer rod�zio para cochilos deitadas – no cimento. Mesmo assim n�o perd�amos o f�lego.
E logo, cada cela escolhia uma l�der, que coordenava reuni�es internas e transmitia as decis�es ou propostas, aos berros, para as outras celas vizinhas. Assembleia permanente, dentro do pres�dio (...).
Sobre o livro
A partir da sua hist�ria de vida, Mar�lia Pires registrou o testemunho de uma gera��o em “Lamaluca”.
“A linguagem franca e direta apresenta quest�es sobre o processo de conscientiza��o feminina de um ponto de vista pr�prio, no plano individual e coletivo, al�m de servir de refer�ncia hist�rica ao debate”, aponta o texto de apresenta��o do livro.
O trecho acima conta a hist�ria da pris�o de estudantes durante o congresso de Ibi�na, em S�o Paulo.
“Lamaluca”
.De Mar�lia Pires
.Editora Impress�es de Minas
.242 p�ginas
.R$ 65
.Lan�amento neste s�bado (13/8), na Feira Textura, Rua da Bahia, 1.889, Belo Horizonte, das 11h30 �s 13h
.O livro pode ser adquirido tamb�m no sitegritaprojeto.com.br/lamaluca
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