
Quando morreu, em setembro de 1985, o escritor, ensa�sta e editor Italo Calvino se preparava para ser o primeiro italiano a ministrar aulas no ciclo de confer�ncias “Charles Eliot Norton Poetry Lectures” da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
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A obra, publicada postumamente em 1988, re�ne as cinco confer�ncias que Calvino preparou para ministrar aos alunos de Harvard. Mais do que ‘propostas para o pr�ximo mil�nio’, os textos s�o tratados sobre os valores que o italiano considerava fundamentais na literatura e carrega um componente autobiogr�fico de an�lise da vasta obra do escritor. Assim como a arte de Calvino � marcada pela ironia e o jogo com as contradi��es, o pr�prio t�tulo do livro j� levanta discuss�es.
Em entrevista ao Pensar, a professora do Departamento de Letras Modernas e do Programa de P�s-gradua��o em L�ngua, Literatura e Cultura Italianas da Universidade de S�o Paulo (USP), Adriana Iozzi Klein, chama a aten��o para este ponto e discorre sobre o tema como quest�o importante para entender o que � apresentado nas cinco confer�ncias tem�ticas.
“Depois da morte de Calvino, a esposa dele, Esther Singer, recolhe esse material escrito e d� um t�tulo pensando nas conversas que ele tinha com um cr�tico liter�rio Pietro Citati que ia toda manh� visitar Calvino e perguntava das ‘aulas americanas’. Quer dizer, tinha uma propor��o muito menos suntuosa do que essa que acaba aparecendo na tradu��o, sobretudo na tradu��o no Brasil, porque em italiano a gente vai ter o t�tulo desta antologia como ‘Li��es Americanas’ e no subt�tulo entra a ideia das seis propostas. Na verdade, n�o s�o nem propostas, eram ‘six memos’, o que queria dizer para o Calvino que na verdade eram post-its, lembretes para o pr�ximo mil�nio. Calvino trabalhava muito com ox�moros, h� sempre uma esp�cie de curto-circuito nas imagens calvinianas, um contraste. Uma proposi��o que deveria ser algo extremamente ambicioso, uma ideia para o pr�ximo mil�nio acaba se configurando como lembretes, no fundo � isso. Ele faz uma esp�cie de balan�o do pr�prio trabalho liter�rio, mas tamb�m da literatura a partir de categorias, de valores que seriam importantes. � uma esp�cie de reflex�o quase autobiogr�fica”, explica a professora
A reuni�o dos textos das cinco confer�ncias soma cerca de 140 p�ginas em que 90 autores diferentes s�o citados. Embora cada uma apresente um valor que o autor julga central para a produ��o liter�ria, a professora da USP ressalta que h� uma unidade na estrutura dos textos, o que reflete tamb�m a caracter�stica de cuidado com a estrutura na produ��o ensa�stica e liter�ria de Calvino.
“Em todas as confer�ncias voc� vai perceber uma esp�cie de declara��o pessoal da po�tica do Calvino, que s�o valores praticados por ele mesmo em sua obra. Depois a gente vai ter um cat�logo das leituras dele, as reflex�es sobre o modo dele ler os autores citados. Os textos respeitam uma estrutura similar, porque Calvino era muito preocupado com a quest�o do projeto, ent�o ele organiza muito bem essas confer�ncias de modo que elas sejam relativamente homog�neas. Em um terceiro momento, ele vai apresentar uma reflex�o, muitas vezes a n�vel mundial, vamos ter uma vastid�o das leituras, a amplid�o das propostas. Calvino fala um pouco da quest�o do destino da leitura, da literatura, mostrando ali essa esp�cie de reflex�o, mas ligada ao seu pr�prio itiner�rio como autor”, aponta.
A doutora em literatura comparada pela UFMG, autora da tese "A imagem inalcan��vel do todo: cole��es, museus e arquivos em Italo Calvino” e professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG, Claudia Maia, analisa que a obra “Seis propostas para o pr�ximo mil�nio” reflete o car�ter �vido do autor enquanto leitor e cr�tico. A pesquisadora tamb�m destaca a relev�ncia do trabalho do italiano como editor na elabora��o das confer�ncias.
“S�o ‘valores’, ‘qualidades’ liter�rias que ele gostaria que fossem preservadas no pr�ximo mil�nio. As grandes mudan�as ocorridas no seu s�culo e a proximidade com o pr�ximo levam-no a afirmar a import�ncia da literatura: ‘h� coisas que s� a literatura com seus meios espec�ficos pode nos dar’. Calvino sempre conjugou seu trabalho de ficcionista com o de cr�tico. O trabalho na editora Einaudi, desde o in�cio da carreira at� quase o fim da vida, colaborou muito para isso. Sendo um escritor muito inquieto, nunca deixou de refletir sobre a literatura, muitas vezes em di�logo com os outros saberes, o que rendeu uma profus�o imensa de ensaios cr�ticos. A leveza, a rapidez, a exatid�o, a visibilidade, a multiplicidade, a consist�ncia s�o valores relacionados � leitura que tinha do “mundo escrito” e do “mundo n�o escrito”, presentes em uma tradi��o que lhe � cara e que encontramos em seus textos. Nas confer�ncias, o passado � considerado em fun��o do presente e do futuro, e os textos liter�rios a que se dedica s�o comentados muitas vezes em di�logo com o seu pr�prio trabalho”, analisa.
A import�ncia da leveza
De acordo com Adriana Klein, das cinco confer�ncias escritas por Calvino, “Leveza” � a que o italiano mais atribui import�ncia. A ideia � destacada pelo escritor em diferentes acep��es liter�rias e filos�ficas que tratam de pontos como o despojamento da linguagem, a abstra��o de racioc�nio e o uso de figuras visuais leves. A professora da USP ressalta que a ideia � apresentada pelo escritor como um objetivo e um conceito que ajuda a contextualizar a obra calviniana dentro de seu momento e espa�o de produ��o.
“Leveza � a caracter�stica que ele gostaria de mostrar como uma constante da obra dele. No fundo, a leveza � algo que ele t� sempre procurando. Esse � um conceito interessante para a gente pensar por que Calvino escreve em um per�odo muito pesado da hist�ria, sobretudo se pensarmos no quadro italiano, estamos praticamente no final daquele que � denominado como os anos de chumbo, um momento muito pesado. Ent�o, essa reivindica��o da leveza, na verdade, n�o � uma reivindica��o de uma leveza inconsequente. Ele cita a leveza da pena, mas n�o � essa que ele busca, mas a leveza do p�ssaro, porque ele sabe para onde vai. Em todas as confer�ncias ele cita muitos epis�dios da mitologia e na da leveza ele vai falar da Medusa e de Perseu. E qual a estrat�gia de Perseu? � n�o olhar diretamente, e ele se salva n�o olhando diretamente para Medusa para n�o ser petrificado. A Medusa representa um pouco a petrifica��o da realidade do mundo no qual a gente vive. Calvino usa essa imagem de forma muito contundente para mostrar um pouco que a forma de olhar a realidade dele � de uma forma n�o direta, � atrav�s de um espelho, como Perseu. No fundo ele est� querendo dizer que a literatura n�o � uma representa��o da realidade, mas um espelho da realidade”, comenta.
Di�logo com o contempor�neo
Embora a ideia de que o livro tenha um car�ter propositivo j� tenha sido demovida pelas entrevistadas e pelo pr�prio teor das confer�ncias escritas por Calvino, o uso do termo ‘pr�ximo mil�nio’ tem se mostrado adequada diante dos conceitos apresentados nos textos que lhe conferem um frescor de contemporaneidade mesmo tratando-se de uma obra de quase 40 anos de idade. Em “Leveza”, Calvino cita estudos cient�ficos com o DNA e avan�os da inform�tica; ele cita a mensura��o da velocidade a partir dos transportes em “Rapidez”; em “Visibilidade”, o autor fala sobre a televis�o com a preocupa��o por um futuro de ‘imagens pr�-fabricadas’; ele tamb�m trata sobre comunica��o digital em “Multiplicidade”. Para Cl�udia Maia, professora do CEFET-MG, a discuss�o sobre termos � frente do seu tempo diz menos sobre uma antecipa��o do futuro na obra, e mais sobre a caracter�stica de Calvino enquanto um escritor, cr�tico e ensa�sta bem-informado e atento.
“N�o h� propriamente uma antecipa��o, mas uma leitura l�cida e inteligente do mundo. Filho de cientistas e com uma fam�lia cheia deles, grande leitor de textos cient�ficos, Calvino estava o tempo todo antenado �s descobertas do mundo da ci�ncia, muitas vezes tirando delas uma imagem que pudesse ser transformada em literatura; isso mesmo: para Calvino, a ci�ncia era tamb�m uma prof�cua produtora de imagens. ‘As Cosmic�micas’, obra publicada em 1965, cujo projeto ocupou o escritor por cerca de 20 anos, constitui-se de contos que se iniciam com pequenos fragmentos que s�o como enunciados cient�ficos. A ci�ncia nesse livro encontra-se em sua potencialidade criativa e imaginativa e a literatura, por sua vez, se mostra tamb�m como pensamento sobre o mundo passado, presente e futuro. Em um texto intitulado ‘A rela��o com a lua’, Calvino afirmou: ‘O que me interessa [...] � tudo o que � apropria��o verdadeira do espa�o e dos objetos celestes, ou seja, conhecimento: sa�da de nosso quadro limitado e enganoso, defini��o de uma rela��o entre n�s e o universo extra-humano’. No momento em que vivemos, � um grande ensinamento”, destaca.
Adriana Klein, professora de literatura italiana da USP, tamb�m destaca que a capacidade de se manter atual � um efeito da multiplicidade de refer�ncias e do contato de Calvino, filho de um engenheiro agr�nomo com a primeira mulher a lecionar Bot�nica em uma universidade italiana, com o universo cient�fico. Essa bagagem � vis�vel em toda a obra do autor. A pesquisadora ainda destaca como a multiplicidade de leituras torna a produ��o liter�ria de Calvino vasta e variada.
“Calvino foi vision�rio nesse aspecto, mas n�o era s� uma quest�o de enxergar al�m, ele era um grande estudioso de ci�ncia tamb�m. Ele falava sobre entropia, a segunda lei da termodin�mica, ele sempre foi um escritor muito curioso e vindo de um meio de cientistas. Ele, por exemplo, vai dizer que Galileu Galilei � um dos maiores escritores da literatura italiana analisando as met�foras po�ticas do cientista como tendo uma qualidade liter�ria muito grande. [...] O estilo do Calvino pode ser definido exatamente por uma constante que � a mudan�a. � um escritor que se transforma a cada livro, a cada livro parece um autor diferente. No pref�cio da primeira obra dele, ‘A trilha dos ninhos de aranha’ (1947), que � feito por Cesare Pavese, identifica o que depois vai ser uma esp�cie de alcunha, ele vai dizer que Calvino � um ‘esquilo da caneta’, ou seja, muito �gil”, analisa. n
Li��es de um mestre
(Trechos de “Seis propostas para o pr�ximo mil�nio”, de Italo Calvino)
Leveza
“Cada ramo da ci�ncia, em nossa �poca, parece querer nos demonstrar que o mundo repousa sobre entidades sutil�ssimas -tais as mensagens do DNA, os impulsos neur�nicos, os quarks, os neutrinos errando pelo espa�o desde o come�o dos tempos...
Em seguida vem a inform�tica. � verdade que o software n�o poderia exercer seu poder de leveza sen�o mediante o peso do hardware; mas � o software que comanda, que age sobre o mundo exterior e sobre as m�quinas, as quais existem apenas em fun��o do software, desenvolvendo-se de modo a elaborar programas de complexidade cada vez mais crescente. A segunda revolu��o industrial, diferentemente da primeira, n�o oferece imagens esmagadoras como prensas de laminadores ou corridas de a�o, mas se apresenta como bits de um fluxo de informa��o que corre pelos circuitos sob a forma de impulsos eletr�nicos. As m�quinas de metal continuam a existir, mas obedientes aos bits sem peso.”
Rapidez
“A narrativa � um cavalo: um meio de transporte cujo tipo de andadura, trote ou galopes, depende do percurso a ser executado, embora a velocidade de que se fala aqui seja uma velocidade mental. Os defeitos do narrador inepto enumerados por Boccaccio s�o principalmente ofensas ao ritmo; mas s�o tamb�m os defeitos de estilo, poer n�o se exprimir apropriadamente segundo os personagens e a a��o, ou seja, considerando bem, at� mesmo a propriedade estil�stica exige rapidez de adapta��o, uma agilidade da express�o e do pensamento.”
Exatid�o
“Antes de mais nada, procurarei definir o tema. Para mim, exatid�o quer dizer principalmente tr�s coisas:
1) um projeto de obra bem definido e calculado;
2) a evoca��o de imagens visuais n�tidas, incisivas, memor�veis; [...]
3) uma linguagem que seja a mais precisa poss�vel como l�xico e em sua
capacidade de traduzir as nuan�as do pensamento e da imagina��o.”
Visibilidade
“Resta-me esclarecer a parte que nesse golfo fant�stico cabe ao imagin�rio indireto, ou seja, o conjunto de imagens que a cultura nos fornece, seja ela cultura de massa ou outra forma qualquer de tradi��o. Esta quest�o suscita de imediato uma outra: que futuro estar� reservado � imagina��o individual nessa que se convencionou chamar a "civiliza��o da imagem"? O poder de evocar imagens in absentia continuar� a desenvolver-se numa humanidade cada vez mais inundada pelo dil�vio das imagens pr�-fabricadas? Antigamente a mem�ria visiva de um indiv�duo estava limitada ao patrim�nio de suas experi�ncias diretas e a um reduzido repert�rio de imagens refletidas pela cultura; a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo pelo qual os fragmentos dessa mem�ria se combinavam entre si em abordagens inesperadas e sugestivas. Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de n�o podermos distinguir mais a experi�ncia direta daquilo que vimos h� poucos segundos na televis�o. Em nossa mem�ria se depositam, por estratos sucessivos, mil estilha�os de imagens, semelhantes a um dep�sito de lixo, onde � cada vez menos prov�vel que uma delas adquira relevo.”
Multiplicidade
“Chego assim ao fim dessa minha apologia do romance como grande rede. Algu�m poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos poss�veis mais se distancia daquele unicum que � o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua pr�pria verdade. Ao contr�rio, respondo, quem somos n�s, quem � cada um de n�s, sen�o uma combinat�ria de experi�ncias, de informa��es, de leituras, de imagina��es? Cada vida � uma enciclop�dia, uma biblioteca, um invent�rio de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras poss�veis.”
“Seis propostas para o pr�ximo mil�nio”
- De Italo Calvino
- Tradu��o de Ivo Barroso
- Companhia das Letras
- 144 p�ginas
- R$ 46
