
Depois do fim da Comiss�o Nacional da Verdade — instaurada pelo governo brasileiro em 2012 para investigar abusos e a viola��o de direitos humanos cometidos na ditadura militar —, mais de 40 entidades bateram na porta do Minist�rio P�blico Federal (MPF) em S�o Paulo.
O ano era 2015, e elas levavam documentos e tinham uma demanda: queriam que empresas multinacionais e brasileiras fossem investigadas por supostamente terem colaborado ativamente com o regime.
“A quantidade de documentos era gigantesca", conta � BBC News Brasil o procurador da Rep�blica Pedro Ant�nio de Oliveira Machado, que trabalhava na �poca na Procuradoria dos Direitos do Cidad�o em S�o Paulo e recebeu parte das den�ncias.
Machado concordava com os reclamantes: a Comiss�o da Verdade, que tinha um tempo definido para atuar e foco em apurar os crimes cometidos pelo Estado, n�o havia investigado a fundo o papel das empresas.
O problema era o volume de trabalho, que demandaria muito mais bra�os do que o MPF tinha dispon�vel. At� um pesquisador independente — algo incomum por falta de verba interna do MPF — foi contratado para analisar todos os calhama�os levados �s autoridades.
As entidades, incluindo sindicatos de trabalhadores, queriam com o movimento que os fatos se tornassem p�blicos e que as empresas fossem responsabilizadas na Justi�a.Oito anos depois, nenhuma condena��o veio.
Mas uma investiga��o conjunta do MPF, do Minist�rio P�blico do Trabalho (MPT) e do Minist�rio P�blico do Estado de S�o Paulo (MPSP) apontou que uma dessas empresas — a Volkswagen — n�o s� foi conivente como colaborou ativamente com o aparato de repress�o da ditadura.
O caso levantado com relatos de tortura e documentos movimentou at� a matriz da montadora na Alemanha. Para n�o enfrentar uma a��o na Justi�a, a Volks acabou fechando um acordo na Justi�a em 2020 para pagar uma indeniza��o milion�ria.
Uma das exig�ncias do procurador Machado entrou no acerto: que parte do dinheiro da indeniza��o financiasse a investiga��o de quanto outras empresas colaboraram de fato com a repress�o e a viol�ncia do regime.
“A Volkswagen era s� o come�o”, afirma o procurador.
E foi assim que o dinheiro da Volks, que hoje lamenta as viola��es de direitos ocorridas na �poca e diz que aquelas pr�ticas v�o contra seus valores atuais, financiou a contrata��o de pesquisadores de institui��es p�blicas renomadas para apurar o envolvimento com o regime de companhias sobre as quais o MPF considerou que havia mais provas.
Isso resultou na abertura de inqu�ritos contra dez empresas em quatro Estados, como revelou uma s�rie de reportagens da Ag�ncia P�blica em junho deste ano.
Entre elas h� grandes companhias das ind�strias sider�rgica, petrol�fera, automotiva, aerovi�ria, al�m de uma concession�ria de servi�os p�blicos e uma empresa de m�dia.
O elo da Volks com o regime

O procurador Pedro Ant�nio de Oliveira Machado explica que a investiga��o come�ou com a Volkswagen porque era a empresa sobre a qual j� havia mais evid�ncias.
O relat�rio final do MPF, MPT e MPSP, baseado em depoimentos e documentos colhidos na investiga��o, apontou que a Volkswagen teve uma “persistente e consistente” colabora��o ativa com o regime militar.
Nesta �poca, o aparato de repress�o do Estado praticava graves viola��es contra os direitos dos cidad�os, incluindo tortura, pris�es ilegais, persegui��es, execu��es sum�rias e desaparecimento de pessoas.
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“A empresa, por decis�o de sua dire��o no Brasil e coniv�ncia da dire��o na Alemanha, se envolveu diretamente na persegui��o pol�tica a opositores do regime”, diz o relat�rio do pesquisador brasileiro Guaraci Mingardi, contratado pelo MPF.
Uma pesquisa simult�nea separada, feita pelo pesquisador Christopher Kopper, contratado pela dire��o da Volkswagen na Alemanha, teve praticamente as mesmas conclus�es da investiga��o do MPF, MPT e MPSP.
Segundo essa investiga��o, a empresa colaborou com a persegui��o na ditadura principalmente de tr�s formas:
- Espionando e delatando trabalhadores aos �rg�os da pol�cia pol�tica, ou seja, conscientemente os expondo a pris�es ilegais e tortura;
- Facilitando a realiza��o de pris�es ilegais dentro da pr�pria empresa, com o departamento de seguran�a da montadora conduzindo interrogat�rios, inqu�ritos e investiga��es de interesse do regime;
- Participando da cria��o de mentiras sobre o paradeiro de trabalhadores presos pelo regime, “ludibrindo as fam�lias quando se sabia que os funcion�rios se encontravam presos e submetidos � tortura”.
Tortura dentro da f�brica
Um dos ex-funcion�rios da Volkswagen ouvidos pelo MPF foi Heinrich Plagge, que morreu em 2018, dois anos antes da assinatura do acordo pela Volkswagen.
Plagge contou que foi preso pela repress�o dentro da f�brica da montadora. Ele relatou ter sido chamado � sala do seu chefe e, ao chegar l�, ter sido levado por agentes para a sede do Dops, �rg�o de repress�o da ditadura em S�o Paulo, onde foi torturado brutalmente.
“Ele j� estava velhinho, mas nunca tinha contado para sua fam�lia sobre os detalhes”, conta Machado.
“Quando o ouvimos, sua fam�lia at� ficou chocada, porque ele revelou detalhes de tudo o que passou. Ouvir um outro ser humano contando sobre sua tortura � algo que n�o sai de voc�.”
Sua fam�lia repetiu ao MPF o relato � Comiss�o da Verdade. Quando Plagge foi preso, um representante da empresa foi pessoalmente � casa do trabalhador informar sua fam�lia que ele n�o voltaria para casa naquele dia, pois tinha viajado a trabalho.
Sua fam�lia disse que n�o confiou nessa vers�o, mas s� conseguiu v�-lo novamente quatro meses depois, quando foi solto.
A partir desse momento, contou Plagge ao MPF, ele passou a figurar em uma “lista negra” de pessoas que a ditadura perseguia e que diversas empresas concordaram em n�o empregar, fazendo com que ele ficasse anos sem conseguir trabalho.
O relat�rio da investiga��o contra a Volkswagen aponta que outro funcion�rio, L�cio Bellentani, tamb�m foi preso dentro de uma f�brica da montadora e que seu paradeiro foi ocultado da fam�lia.
Um relato dele � Comiss�o da Verdade, reproduzido na pesquisa de Kopper e confirmado ao MPF, aponta que ele foi torturado dentro das instala��es da empresa.
“Na hora em que cheguei � sala de seguran�a da Volkswagen, j� come�ou a tortura”, disse L�cio Bellentani.
Acordo poss�vel

Ap�s uma longa negocia��o com os �rg�os que conduziram as investiga��es, a Volkswagen assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), concordando em pagar uma indeniza��o de R$ 36 milh�es � Justi�a, que destinou o valor a diversos usos, e em fazer um pronunciamento sobre o caso para n�o enfrentar uma a��o judicial que poderia durar d�cadas.
Embora tenha publicado um an�ncio pedindo desculpas e defendendo a democracia, como parte do acordo com os minist�rios p�blicos, na vis�o do procurador, a Volkswagen nunca admitiu publicamente a extens�o da sua colabora��o.
No an�ncio, veiculado em 2021 em jornais de grande circula��o, a empresa afirmou que, "em defesa incondicion�vel do Estado Democr�tico de Direito, a Volkswagen lamenta profundamente as viola��es de direitos humanos ocorridas naquele momento hist�rico e se solidariza por eventuais epis�dios que envolveram seus ex-empregados e seus familiares, em total desacordo com os valores da empresa”.
Questionada pela BBC Brasil, a montadora repetiu o que j� havia dito no comunicado, que “foi a primeira empresa estrangeira a reavaliar sua hist�ria durante o regime militar no Brasil” e que o “acordo refor�a o compromisso da empresa com a transpar�ncia".
A tentativa de fazer um acordo — com inevit�veis concess�es dos dois lados — foi uma decis�o estrat�gica, explica o procurador Pedro Ant�nio de Oliveira Machado.
Se n�o houvesse a assinatura de um TAC, um processo poderia se arrastar na Justi�a — sem contar a possibilidade da empresa n�o ser condenada no final.
Isso porque, embora a Lei da Anistia — que perdoou crimes ligados � ditadura cometidos por agentes do Estado e opositores do regime — originalmente seja destinada somente a indiv�duos e seus atos, a Justi�a brasileira muitas vezes entende que a lei pode ser adotada de forma mais ampla, n�o responsabilizando tamb�m organiza��es e entidades, entre elas empresas.
Ou seja, havia uma chance de que uma decis�o judicial que seguisse essa interpreta��o mais ampla da lei conclu�sse que a Volkswagen n�o poderia ser punida por viola��es de direitos humanos na ditadura.
Inicialmente, a dire��o da Volkswagen no Brasil nem estava interessada em fazer um acordo, diz o procurador.
Foi ap�s trabalhadores pressionarem a dire��o na Alemanha, buscando o representante dos funcion�rios no conselho da empresa, que o termo foi pactuado.
� �poca, a empresa enfrentava outras acusa��es graves de ilegalidades nos Estados Unidos e problemas que arranhavam sua imagem na Alemanha.
A BBC News Brasil questionou a Volkswagen se o acordo foi uma orienta��o da sede da empresa, mas a companhia n�o respondeu este ponto na nota enviada � reportagem.
Machado ressalta que o acordo possibilitou a diminui��o do tempo para que houvesse algum tipo de repara��o por parte da empresa pelas viola��es na ditadura, em compara��o com uma a��o judicial.
Diante das gravidade das viola��es cometidas contra trabalhadores, havia uma expectativa de que a repara��o por parte da empresa fosse mais robusta, tanto em termos da manifesta��o p�blica da Volkswagen, defende Machado.
"Foi o acordo ideal? Fiquei feliz com esse acordo? Olha, eu gostaria de muitas outras coisas. Mas foi o acordo poss�vel”, avalia o procurador.
“Parte da destina��o (da indeniza��o) � determinada por lei. Mas fiz quest�o que outra parte fosse para investigar as outras empresas, porque havia muita coisa.”
Outras empresas investigadas por colabora��o com a ditadura

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Embora tenha sido a primeira a ser investigada, a Volkswagen n�o foi uma exce��o — foi uma de muitas empresas que colaboraram com a ditadura.
Com parte da indeniza��o paga pela montadora, 55 estudiosos passaram a pesquisar o envolvimento com o regime de companhias sobre as quais o MPF considerou que havia mais provas.
Coordenado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp), o trabalho revelou a colabora��o de pelo menos 13 companhias com espionagem e viola��o de direitos humanos de trabalhadores.
A extens�o da sua colabora��o com o regime e os detalhes foram revelados em um informe divulgado neste ano pelo CAAF.
Al�m de uma pesquisa acad�mica, o trabalho tamb�m reuniu provas e documentos para eventuais a��es que seriam propostas pelo Minist�rio P�blico. Hoje, h� inqu�ritos em andamento sobre dez destas empresas.
A Petrobras, a maior estatal brasileira, est� entre elas. A pesquisa aponta que a companhia tinha rela��o n�o s� com a ditadura brasileira, mas tamb�m com a de Augusto Pinochet (1974-1990), no Chile.
A empresa participou da persegui��o pol�tica de seus trabalhadores desde o in�cio da ditadura, diz o informe.
“Com essa finalidade, atuou em uma articula��o com as For�as Armadas caracterizada pela presen�a de militares no comando e em outros cargos da empresa, instaura��o de inqu�ritos contra trabalhadores/as, participa��o em ‘comunidades de informa��es’ envolvendo o empresariado e a ditadura e disponibiliza��o da infraestrutura da empresa para uso pelas For�as Armadas.”
Segundo o documento, um grande n�mero de trabalhadores foi preso, e algumas pris�es se deram nas depend�ncias da empresa. Um dos locais que ficaram � disposi��o das For�as Armadas se tornou um centro de tortura.
Procurada pela BBC News Brasil, a Petrobras afirmou que a atual gest�o da companhia "lamenta que tais epis�dios tenham ocorrido no passado, e tem buscado, no bojo das discuss�es sobre o iminente anivers�rio de 70 anos da companhia, refletir sobre esse momento com a responsabilidade devida".
"Atualmente, o respeito �s pessoas e a busca por um ambiente de trabalho digno e saud�vel � prioridade para a Petrobras. A companhia mant�m canais para que eventuais epis�dios de viol�ncia e/ou viola��o de direitos possam ser denunciados, assim como n�o tolera qualquer epis�dio dessa natureza. A Petrobras tem refor�ado a��es e medidas buscando diversidade cada vez maior de sua for�a de trabalho, refletindo nossa sociedade plural", disse a companhia em nota.
O documento da Unifesp tamb�m aponta que a sider�rgica CSN — estatal que foi privatizada nos anos 1990 — teve 58 funcion�rios presos pela ditadura em seus locais de trabalho e tr�s trabalhadores assassinados pelo Ex�rcito na sider�rgica durante uma greve.
Hoje uma empresa de capital aberto e uma das maiores sider�rgicas do mundo, a CSN disse que as viola��es identificadas se restringem ao tempo em que era estatal.
A CSN afirmou ainda � BBC News Brasil que “repudia qualquer tipo de viola��o aos direitos humanos, pautando sempre sua atua��o por meio da �tica, respeito e direitos constitucionais” e que os fatos relatados na pesquisa s�o anteriores a 1993, portanto “precedem a privatiza��o da empresa, n�o tendo a companhia nenhuma inger�ncia, na sua organiza��o atual, sobre qualquer eventual acontecimento � �poca”.
A Fiat, montadora l�der em vendas no mercado brasileiro, tamb�m espionou e cometeu viol�ncia contra funcion�rios, segundo a pesquisa, al�m de ter empregado um ex-guerrilheiro infiltrado na luta contra a ditadura que ajudou o regime militar a perseguir opositores.
A empresa at� o momento disse apenas que “n�o h� mem�ria” interna dos fatos e por isso n�o pode coment�-los publicamente.
Procurada pela BBC News Brasil, a Fiat n�o respondeu ao contato da reportagem at� a publica��o deste texto.
Al�m de figurarem na pesquisa, essas e outras empresas est�o sendo investigadas pelo Minist�rio P�blico.
Mas, assim como no caso da Volkswagen, as investiga��es sendo conduzidas n�o necessariamente v�o levar a a��es judiciais.
Os procuradores e promotores podem decidir se v�o apostar no lit�gio ou tentar acordos de repara��o — que podem ou n�o ser aceitos pelas empresas.
Como se trata de uma repara��o civil, outros atores — como associa��es de v�timas — tamb�m podem usar os documentos como prova para abrir uma a��o contra a empresa.
O comunicado do grupo de pesquisadores coordenado pela Unifesp diz que as pesquisas n�o pretendem esgotar o assunto e nem chegar a conclus�es finais sobre a responsabilidade das empresas, “mas sim estimular uma evolu��o no campo do processo brasileiro de justi�a de transi��o que o leve a abarcar a responsabilidade empresarial, tanto na esfera acad�mica quanto no plano das efetivas medidas jur�dicas de responsabiliza��o”.
