
Em adultos, a solid�o e o isolamento social j� foram apontados como fatores de risco para morte prematura, dem�ncia, ansiedade, depress�o e suic�dio. Na inf�ncia, pode predizer o abuso de �lcool, segundo um estudo que ser� publicado na revista Addictive Behaviors Reports. Com base em entrevistas realizadas com estudantes universit�rios, a psic�loga Julie Patock-Peckham, professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, descobriu que os estudantes que se sentiam s�s antes dos 12 anos apresentavam n�veis de estresse mais elevados e relataram uso excessivo de bebidas, quando jovens.
Segundo a especialista, a pesquisa foi ancorada em uma "extensa literatura" cient�fica pr�via que associa a solid�o na inf�ncia ao consumo abusivo de �lcool mais tarde. Um estudo publicado em 2013, que acompanhou os participantes de 5 a 17 anos por mais de uma d�cada, por exemplo, constatou que, no fim da adolesc�ncia, aqueles que se sentiam s�s quando crian�as ingeriram a subst�ncia em maior quantidade e frequ�ncia que os demais. "Hipotetizamos, ent�o, que a solid�o antes dos 12 anos diretamente poderia predizer mais problemas relacionados ao �lcool entre os jovens adultos", conta. De acordo com ela, estudos futuros poder�o verificar se essa rela��o � verdadeira tamb�m para drogas il�citas.
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No estudo texano, 310 universit�rios (154 mulheres e 156 homens) completaram question�rios nos quais indicavam se sentiam solid�o na inf�ncia e apontavam os n�veis atuais de estresse e consumo de �lcool. Mais de 85% dos participantes disseram que ingeriram a subst�ncia. Um modelo estat�stico utilizado na pesquisa indicou que, entre os que reportaram que se sentiam s�s com frequ�ncia antes dos 12 anos, a ingest�o alco�lica era mais pesada e frequente.
O m�dico, que define a solid�o como "um dos grandes pavores da humanidade", lembra que, na inf�ncia, o desenvolvimento acontece, principalmente, a partir de intera��es sociais. "Embora nem toda causa de alcoolismo seja solid�o, sem d�vida esse � um componente no desenvolvimento de doen�as mentais, e o alcoolismo, nessa situa��o, ajuda a suprir os sintomas causados pelas psicopatologias", aponta.
Pandemia
Antes da COVID-19, uma pesquisa inglesa apontou que, no universo estudado - crian�as em idade escolar no Reino Unido -, uma em cada 10 sentia-se solit�ria. No cen�rio p�s-pand�mico, houve uma percep��o maior da solid�o, de acordo com uma pesquisa de revis�o publicada na revista American Psychologist, realizada com dados de 200 mil adultos de 34 pa�ses (o Brasil n�o est� inclu�do). Para a psic�loga Julie Patock-Peckham, � poss�vel que o isolamento social necess�rio durante o per�odo possa se refletir negativamente no futuro de meninos e meninas.
Uma pesquisa publicada na Revista Paulista de Pediatria com base em dados nacionais e internacionais encontrou associa��o entre o isolamento social e o confinamento ao aumento na incid�ncia de preocupa��o (68%), desamparo (66%), medo (61%) e nervosismo (60%) entre crian�as e adolescentes. "Na minha opini�o, teremos uma crise de sa�de p�blica em nossas m�os, pois, durante a COVID-19, as crian�as perderam marcos importantes e experi�ncias de desenvolvimento com seus pares", afirma Patock-Peckham. "Meus dados foram coletados antes da pandemia. Por isso, estou bastante preocupada com essa gera��o. Principalmente as crian�as que nem tinham irm�os durante o isolamento podem estar em maior risco."
Para a pesquisadora, � preciso investir na socializa��o especialmente das que tiveram uma percep��o maior de solid�o durante a crise sanit�ria. "Aulas de esportes, dan�a, m�sica e arte parecem uma boa via de abertura de amizades", diz. O psiquiatra S�rgio Rocha ressalta que ainda n�o se pode prever os efeitos futuros do isolamento pela COVID-19, embora acredite que o evento seja um potencial fator de risco para adi��es. "Ainda n�o � poss�vel a realiza��o de uma conclus�o de causa e efeito entre a inf�ncia vivida nesse per�odo e a adic��o no futuro. Entretanto, foi algo que durou um ano e meio, dois anos, e, dessa forma, acredito que ainda pode ser considerado um fator de risco ou uma causa de desenvolvimento de um v�cio futuro."
Cinco perguntas para...
Arthur Guerra, psiquiatra e presidente executivo do Centro de Informa��es sobre Sa�de e �lcool (Cisa)
Fam�lia � fator-chave
Embora considere exagero falar em uma "pandemia de solid�o" deflagrada pela COVID-19, o psiquiatra Arthur Guerra, presidente executivo do Centro de Informa��es sobre Sa�de e �lcool (Cisa), acredita que a crise mundial associada ao Sars-CoV-2, que impactou todas as esferas p�blicas e privadas, "pode ser um infeliz ponto de destaque para futuros comportamentos nocivos". O m�dico, que tamb�m � supervisor do Grupo Interdisciplinar de Estudos de �lcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Cl�nicas da Faculdade de Medicina da USP, destaca que diversos aspectos relacionados ao bem-estar na inf�ncia interferem na idade adulta e lembra que a fam�lia � fundamental para reduzir o risco de uso excessivo de �lcool no futuro.
O que h� de mais consolidado, hoje, sobre os impactos mentais, em longo prazo, da solid�o durante a inf�ncia?
Solid�o na inf�ncia � um fator de risco para diversos transtornos mentais, como depress�o e ansiedade, que podem se manifestar na vida adulta ou mesmo no pr�prio per�odo de inf�ncia. Algumas teorias psicol�gicas prop�em que as rela��es interpessoais e o bem-estar do indiv�duo est�o intimamente ligados, e a inf�ncia � o per�odo em que essas rela��es come�am a se estabelecer. Dessa forma, � preciso considerar a solid�o na inf�ncia como fator de risco que impacta negativamente a sa�de mental a longo prazo.
� poss�vel fazer uma associa��o direta entre a solid�o na inf�ncia e o abuso de �lcool no fim da adolesc�ncia?
Sempre quando falamos de comportamento humano, a atribui��o de rela��es causais � dif�cil, pois o ser humano � muito complexo, e muitas quest�es interferem o tempo todo em seu comportamento. Mas o que podemos dizer sobre a solid�o na inf�ncia � que ela � um fator de risco - isto �, aumenta as chances - de abuso de �lcool no fim da adolesc�ncia. O estudo publicado na revista Addictive Behaviors Reports encontrou uma associa��o entre pessoas que relataram solid�o na inf�ncia e maior estresse na vida adulta. Esse estresse, por sua vez, esteve diretamente associado a maiores possibilidades de abuso de �lcool. � importante destacar que a popula��o estudada era de estudantes universit�rios maiores de idade, nos Estados Unidos. Mas � razo�vel supor que esse estresse e o abuso de �lcool n�o surgiram com a maioridade. Novos estudos precisam ser feitos para avaliar melhor como esses indicadores est�o j� presentes na adolesc�ncia.
Quais outros fatores de risco durante a inf�ncia influenciam o consumo excessivo de �lcool mais tarde?
Ainda temos poucas evid�ncias sobre o assunto. Particularmente, em termos de metodologia de pesquisa, � dif�cil separar fatores gen�ticos de moduladores sociais e familiares da inf�ncia. Mas o que se tem de mais estabelecido � que o ambiente familiar � um fator de extrema import�ncia. Desde fam�lias que facilitam e impulsionam o consumo at� ambientes familiares que geram traumas, tudo pode impactar o consumo nocivo de �lcool.
A pandemia aumentou significativamente a sensa��o de solid�o, segundo diversos estudos. As crian�as foram particularmente afetadas. Isso pode se refletir no comportamento de adic��es futuras?
� importante destacar que esses estudos s�o ainda preliminares. Um dos grandes impactos da pandemia foi um certo "apag�o" de dados, pois muitas pesquisas foram impossibilitadas de serem feitas com o rigor que merecem. Desse modo, os estudos ainda est�o debatendo se esse aumento na solid�o � real, e se � um aumento consider�vel. Muitos pesquisadores dizem que, talvez,o termo "pandemia de solid�o" seja um pouco exagerado. De maneira geral, contudo, � prov�vel que os relatos de solid�o tenham aumentado. A pandemia, seja por esse prov�vel aumento na solid�o, seja por outros impactos - notadamente, o econ�mico - , pode ser um infeliz ponto de destaque para futuros comportamentos nocivos.
Como as pol�ticas de preven��o ao abuso do �lcool podem aproveitar a informa��o fornecida pelo estudo?
Esse estudo ressalta uma tend�ncia que n�s, profissionais da sa�de, j� sabemos muito bem: para prevenir consumo abusivo na vida adulta, � preciso trabalhar com a adolesc�ncia. Para prevenir isso na adolesc�ncia, � preciso trabalhar com as crian�as. E para proteger as crian�as, � preciso focar nas fam�lias. E, nesse ponto, retornamos para os adultos. A fam�lia � um importante ponto de trabalho e foco de cuidado para a preven��o de abuso de �lcool por crian�as e adolescentes. Al�m disso, temos os aspectos mais "econ�micos", como a manuten��o e a fiscaliza��o da proibi��o de venda de �lcool para menores de idade. Em particular, precisamos tomar cuidado com a publicidade, muitas vezes involunt�ria, feita nas redes sociais virtuais voltadas para jovens (como o TikTok), que tende a pintar o �lcool como algo positivo e excitante.