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Estado de Minas SA�DE MENTAL

O que � a s�ndrome de Ulisses que afeta os migrantes

Sintomas da s�ndrome podem confundir diagn�stico com depress�o ou estresse p�s-traum�tico


17/08/2022 09:35 - atualizado 17/08/2022 09:35

Ilustração de mulher com mão na cabeça, que está abaixada
Os migrantes podem passar por v�rios tipos de luto, mas certas condi��es podem causar a s�ndrome de Ulisses (foto: BBC MUNDO)
"N�o se deve expulsar as pessoas da sua terra ou do seu pa�s, n�o � for�a", dizia o poeta argentino Juan Gelman (1930-2014).

Mas existem em todo o mundo cerca de 281 milh�es de migrantes internacionais (3,6% da popula��o mundial), segundo dados da ONU de 2020.

Algumas pessoas emigram porque assim desejam, mas outras s�o obrigadas a emigrar. No final de 2019, as pessoas deslocadas � for�a j� eram mais de 79,5 milh�es, segundo a ACNUR, a Ag�ncia das Na��es Unidas para os Refugiados.

Seja por vontade pr�pria ou n�o, os migrantes podem sentir-se como dizia Gelman — uma "planta monstruosa", com ra�zes a milhares de quil�metros de dist�ncia do caule e das folhas.

E sempre haver� circunst�ncias, na chegada ao seu destino, que reduzir�o ou agravar�o essa situa��o. Tudo isso, sem d�vidas, traz repercuss�es sobre a sa�de mental.

A fronteira entre a sa�de mental e o transtorno

O psiquiatra espanhol Joseba Achotegui � secret�rio da Associa��o Mundial de Psiquiatria e trabalha com temas relacionados � migra��o. Ele come�ou a observar certas mudan�as em 2002.

"As fronteiras foram fechadas, foram criadas pol�ticas mais r�gidas contra a migra��o, as pessoas deixaram de ter acesso a documentos e havia uma enorme luta pela sobreviv�ncia", contou ele � BBC News Mundo — o servi�o de not�cias em espanhol da BBC.

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Essa nova situa��o trouxe reflexos na forma como chegavam os pacientes para consult�-lo. "Estavam indefesos, assustados, n�o conseguiam seguir adiante", segundo ele.

Concretamente, ele observou que muitos migrantes que passam por situa��es dif�ceis apresentavam "um quadro de rea��o de estresse muito intenso, cr�nico e m�ltiplo". Achotegui deu a esse quadro o nome de "s�ndrome de Ulisses".

O psiquiatra esclarece que n�o se trata de uma patologia, j� que "o estresse e o luto s�o normais na vida", mas salienta a peculiaridade da s�ndrome que deixa o migrante, novamente, em uma fronteira — n�o geogr�fica, mas psicol�gica, entre a sa�de mental e o transtorno.

Luto migrat�rio x s�ndrome de Ulisses

Normalmente associamos a palavra "luto" ao sentimento que surge ap�s a morte de um ente querido. Mas os psic�logos relacionam o termo a qualquer perda sofrida pelo ser humano, como sair de um trabalho, a separa��o de um casal ou mudan�as no nosso corpo.

"Cada vez que experimentamos uma perda, precisamos nos acostumar a viver sem o que t�nhamos e adaptar-nos � nova situa��o. Ou seja, � preciso trabalhar o luto", explica a psic�loga espanhola Celia Arroyo, especialista em luto migrat�rio.

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Assim, o luto migrat�rio est� associado a essa grande mudan�a na vida de uma pessoa. Mas tem caracter�sticas que o tornam especial, j� que � um luto "parcial, recorrente e m�ltiplo".


Paisagem ampla de Caracas, com montanhas ao fundo e dia ensolarado
� poss�vel sofrer luto pela l�ngua, pelos costumes ou pela paisagem (foto: Getty Images)

Parcial porque n�o � uma perda total, como ocorre com a morte de algu�m; recorrente porque, como em qualquer viagem, pode ser reaberto com a comunica��o com o pa�s ou simplesmente olhando uma fotografia no Instagram; e m�ltiplo, porque n�o � s� uma coisa que se perde, mas muitas.

Joseba Achotegui reuniu essas perdas em sete categorias.

A mais evidente costuma ser a perda da fam�lia e dos entes queridos. Existe tamb�m a perda de status social - algo que, segundo Arroyo, costuma ocorrer com a condi��o de migrante, mas se, al�m disso, "o pa�s for xen�fobo, surge uma grande adversidade".

Outro luto para o migrante � o da perda da terra: sentir falta, por exemplo, de uma paisagem montanhosa ou dos dias cheios de sol.

Some-se ainda o luto do idioma, que ser� mais forte nos casos de migra��o para um pa�s onde se fala outra l�ngua. Pode ser uma forte barreira, por exemplo, para tr�mites burocr�ticos ou para mandar um simples correio eletr�nico.

Existe tamb�m a perda dos c�digos culturais. Ela pode representar algo simples como n�o ter com quem dan�ar uma m�sica t�pica ou tomar uma bebida local do pa�s de origem.

E, associada a essa perda, encontra-se a perda de contato com o grupo de pertencimento - aqueles com quem podemos falar nos mesmos c�digos, que entender�o as nossas g�rias e a forma de ver a vida.


A s�ndrome de Ulisses ocorre quando, al�m de precisar passar por estes lutos normais, o migrante enfrenta condi��es dif�ceis, segundo explica Achotegui.


Ilustração de mulher preocupada, com ícones de coração partido, cifrão e etc ao lado
Existem v�rios fatores que podem estressar um migrante no pa�s que o acolhe (foto: BBC MUNDO)

Fatores desencadeantes

"Quando h� dificuldades ou a pessoa � rejeitada na sociedade que a acolhe, esta s�ndrome pode acontecer", explica Guillermo Fauce, professor de psicologia da Universidade Complutense de Madri, na Espanha, e presidente da organiza��o Psicologia sem Fronteiras.

Chegar a um pa�s novo com um trabalho est�vel � muito diferente de n�o ter nenhuma seguran�a; da mesma forma que ter ou n�o garantia de teto e comida, ou entrar com visto ou com status legal a definir. Ter ou n�o certas condi��es acrescenta pontos e estresse.

"A rejei��o que pode causar mais impactos � n�o ter documentos ou n�o poder ter acesso a determinados recursos", afirma Fauce.

J� Achotegui explica que esta situa��o faz com que os migrantes n�o consigam seguir adiante, gerando tens�o e problemas de sobreviv�ncia - outro fator desencadeante da s�ndrome.

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Pode-se acrescentar ao panorama n�o ter pessoas ao nosso redor para oferecer apoio, n�o apenas material (onde morar, comer e dormir), mas tamb�m emocional. "Muitos migrantes sofrem situa��es de solid�o, eles est�o isolados", destaca Achotegui.

Fauce assinala que existe tamb�m um apoio simb�lico que, quando ausente, torna-se outro fator desencadeante. Trata-se do reconhecimento e da compreens�o das condi��es do migrante pelo seu entorno, "que ele est� passando por uma situa��o complicada, atravessando muitos lutos e que seja oferecido a ele um per�odo de transi��o na sociedade que o acolheu".


Duas pessoas rindo em festa ao ar livre durante o dia
Os especialistas recomendam aos migrantes fazer la�os com a comunidade de origem, mas tamb�m com a sociedade que os acolhe (foto: Getty Images)

�s vezes, pode-se pensar que "o pior" j� passou ao cruzar a fronteira em m�s condi��es. Mas, no pa�s de acolhida, a sensa��o de estar indefeso, sem direitos e os poss�veis abusos trabalhistas e sexuais podem dar lugar a um quarto fator desencadeante: o medo.


Os especialistas consultados acrescentam que esta situa��o de vulnerabilidade pode ocasionar a s�ndrome de Ulisses, principalmente entre as mulheres.

O que pode acontecer e quando devemos estar alertas

Achotegui esclarece que os sintomas podem ser os mesmos de quando passamos por uma �poca ruim: dormir mal, dificuldade para relaxar, dores musculares ou de cabe�a, t�dio, nervosismo e tristeza.


Fauce destaca que, por um lado, o migrante pode entrar em uma esp�cie de estado depressivo e de tristeza, recolhendo-se em si mesmo, e, por outro lado, pode ficar hiperativo e ansioso, o que acaba consumindo energia.

Isso pode fazer com que a s�ndrome de Ulisses seja confundida com outras doen�as mentais, como a depress�o ou o estresse p�s-traum�tico, e termine sendo medicada. Mas, neste caso, quando os obst�culos que deram origem � s�ndrome s�o solucionados (disponibilidade de trabalho, certa estabilidade, menos estresse etc.), a s�ndrome desaparece.

"Se o migrante segue em frente, consegue trabalho e atinge uma certa estabilidade, mas os sintomas continuam, existe a� algo mais a ser avaliado e � preciso intervir de outra forma, porque pode ser que haja outra coisa j� no plano psiqui�trico, como um quadro depressivo", explica Achotegui.


Equipe feminina de futebol se alongando no campo
A pr�tica de exerc�cios e a aproxima��o da comunidade de origem podem ajudar a reduzir o estresse (foto: Getty Images)

Por isso, quando o mal-estar se tornar permanente ou nos impedir de levar a vida adiante, � preciso soar o alarme. Outros sinais de alerta destacados por Fauce s�o eventuais acessos de raiva, preju�zo �s rela��es sociais ou "a tomada de atalhos, como o consumo de drogas ou �lcool, gastos exorbitantes ou esportes de risco".

O que fazer ou n�o fazer

"� fundamental criar uma rede de apoio social, manter contato com outros imigrantes e compartilhar moradias", destaca Celia Arroyo. Para isso, � bom procurar migrantes da mesma nacionalidade ou grupos de apoio espec�ficos.

Achotegui afirma que isso traz "menos risco de transtornos mentais", mas ficar muito ancorado na comunidade de origem pode causar menos progressos. "Se voc� n�o se integrar � sociedade de acolhida, o progresso ser� dif�cil. � quest�o de equil�brio", explica ele.


Ou seja, o caminho � manter "as ra�zes" com �gua, mas sem esquecer as folhas, que devem ficar onde possam receber sol.

Achotegui tamb�m recomenda fazer exerc�cios e atividades que reduzam o estresse.

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J� Fauce destaca que "cortes radicais n�o funcionam, nem decis�es dr�sticas", seja com rela��o ao pa�s de origem ou ao de acolhida, bem como �s rela��es criadas nos dois pa�ses.


Arroyo destaca que, embora seja dif�cil fornecer um tempo preciso, se o sofrimento n�o for reduzido em tr�s meses depois de atingir a estabilidade, � bom pedir ajuda psicol�gica.

O que os outros podem fazer

A sociedade de acolhida desempenha um papel importante, mas quem n�o passou por essa situa��o pode n�o entender o que significa o luto migrat�rio, nem o estresse prolongado causado pela s�ndrome de Ulisses. Por isso, talvez n�o se saiba como ajudar, o que dizer ou o que fazer.

Celia Arroyo recomenda que o entorno do migrante permita que quem estiver nesta situa��o possa expressar-se livremente e falar do que acontece e como se sente.

"� importante n�o minimizar o sofrimento, nem gerar falsas esperan�as" ante um futuro incerto quando, por exemplo, o visto e o trabalho n�o chegam. Como em qualquer luto, � preciso evitar frases como "logo vai passar", "n�o � para tanto", "isso � medo seu" ou "tudo vai acabar bem".


Achotegui sugere n�o se compadecer, nem vitimizar. "� preciso aproximar-se com respeito e at� com certa admira��o. O migrante � uma pessoa forte, algu�m que est� seguindo adiante."


Por outro lado, � importante respeitar sua cultura, mentalidade e vis�o de mundo. Se a conex�o emocional com algu�m nesta situa��o for dif�cil, Fauce recorda que todos n�s j� sofremos alguma perda. Por isso, conectar-se �quela emo��o que j� tivemos � um bom exerc�cio para criar empatia com o migrante.

E acreditar que, como escreveu a uruguaia Cristina Peri Rossi, emigrar - partir, enfim - � sempre se partir em dois.

- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62571893

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