
"A primeira sensa��o que eu tive foi a de nega��o", diz Juliana Esquerdo Rossetto Isliker, de 36 anos, sobre o resultado de uma bi�psia que apontou o in�cio de um c�ncer de mama, seis anos atr�s. "Eu falei: 'P�, ferrou, n�?'."
Em meio aos desafios e � turbul�ncia da nova fase, Juliana resolveu passar por uma cerim�nia com ayahuasca, um ch� da tradi��o ind�gena sul-americana que leva a estados alterados da consci�ncia.
A bebida � resultado da mistura de plantas diferentes e se popularizou no Brasil a partir das primeiras d�cadas do s�culo 20 pelo grupo religioso Santo Daime.
Juliana conta que j� tinha passado por duas experi�ncias com ayahuasca. Na �poca, no entanto, havia considerado os cultos vivenciados anteriormente "s�rios e r�gidos" demais e muito associados ao cristianismo.
"Dessa vez eu fiz [o rito de ingest�o] j� sabendo da doen�a. Eu coloquei uma inten��o espec�fica. Tipo, eu quero cura. Quero entender o que est� acontecendo comigo", afirma.Moradora de Campinas (SP), a artes� explora um caminho que aos poucos vem ganhando espa�o no Brasil: o uso de alucin�genos no enfrentamento de doen�as graves.
Nos �ltimos anos, h� um crescente n�mero de pesquisas cient�ficas a respeito de subst�ncias como a psilocibina encontrada em cogumelos, o DMT da ayahuasca e o anest�sico cetamina (que n�o � um psicod�lico cl�ssico, mas tamb�m tem como efeito a altera��o da consci�ncia).
As descobertas, que indicam que tais propriedades podem aplacar sintomas de ansiedade, depress�o e estresse p�s-traum�tico, v�m entusiasmado as comunidades cient�fica e m�dica.
Ao mesmo tempo, o novo cen�rio implica discuss�es importantes em torno da eventual populariza��o de componentes de fortes efeitos sobre o c�rebro e cujo uso � ilegal no Brasil: com exce��o da cetamina, as subst�ncias acima pertencem � lista F2, das consideradas il�citas pela Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa), com penas previstas na Lei Nacional de Drogas - que incluem pris�o.
Mas h� nuances. A ayahuasca, por exemplo, � autorizada para uso religioso, segundo resolu��o do Conselho Nacional de Pol�tica sobre Drogas (leia mais detalhes abaixo).
Cuidado para doen�as graves
As possibilidades dos psicod�licos v�m interessando diferentes campos da Medicina. Um deles � o dos cuidados paliativos, que ampara portadores de doen�as graves tanto em problemas f�sicos quanto em quest�es existenciais, como a finitude da vida.
Assim como ocorre com os psicod�licos, h� uma dose razo�vel de desinforma��o sobre o tema. Em sess�o da CPI da Covid no ano passado, parlamentares chegaram a comparar os cuidados paliativos com eutan�sia.
Ana Cl�udia Mesquita Garcia, enfermeira paliativista e professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas, em Minas Gerais, diz que a pr�pria ideia de que eles s�o voltados apenas para pacientes em fim de vida j� foi modificada.
"A �ltima defini��o da International Association for Hospice and Palliative Care [entidade mundial da �rea] cita sofrimentos relacionados � sa�de, em especial aqueles no fim da vida. Mas, de forma geral, foca no bem-estar de pacientes de doen�as graves e tamb�m de seus familiares e cuidadores", diz.
Milena dos Reis Bezerra de Souza, cl�nica-geral da equipe de cuidados paliativos do hospital AC Camargo Cancer Center, explica que a contribui��o do profissional "� para o al�vio do sofrimento". "Algu�m que n�o est� respirando direito n�o conversa. Algu�m que est� com dor tem dificuldade para fazer planos de vida."
A m�dica come�ou a investigar o potencial dos psicod�licos a partir da sugest�o de seus pacientes.
"� como ser desafiada. A primeira coisa que fiz foi jogar de uma forma muito aberta. Disse: 'n�o conhe�o o assunto, mas eu vou te ouvir, vou estudar'. Primeiro, quero saber se n�o te prejudica. Depois, a gente define se pode ajudar no tratamento."
Ela n�o promove as sess�es, mas auxilia os pacientes com c�ncer que desejam passar pela experi�ncia a adequar seu tratamento, evitando intera��es medicamentosas e efeitos colaterais.

Ana Garcia, por sua vez, ficou intrigada com a possibilidade dos alucin�genos na sua �rea ap�s ser convidada a avaliar um trabalho de conclus�o de curso (TCC). Por falta de expertise � �poca, preferiu n�o participar da banca, mas come�ou a buscar informa��es sobre o tema.
Logo encontrou a tese de doutorado de Lucas de Oliveira Maia, pesquisador no Instituto do C�rebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e na Coopera��o Interdisciplinar para Pesquisa e Divulga��o da Ayahuasca da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em S�o Paulo.
'Via Deus, Jesus Cristo, Maria'
O trabalho de Maia foi focado na rela��o entre os cuidados paliativos com a ayahuasca, que � feita da mistura do cip� mariri com as folhas de outra planta, a chacrona.
A bebida cont�m o potente alucin�geno N,N-dimetiltriptamina (DMT), um alcaloide com uma estrutura qu�mica muito semelhante � da serotonina - o neurotransmissor cerebral que, entre muitas outras coisas, ajuda a inibir o impulso de agress�o.
O DMT gera efeitos visuais no c�rebro conhecidos como "vis�es" ou "mira��es" que incluem cenas como paisagens, figuras religiosas, seres divinos, padr�es geom�tricos, cenas paradis�acas e celestiais, seres humanos e n�o humanos e imagens relacionadas � morte.
A Anvisa pro�be o uso do DMT no Brasil. Uma resolu��o do Conselho Nacional de Pol�ticas Sobre Drogas (Conad), no entanto, "prev� exce��o para utiliza��o deste tipo de produto (ch�) em rituais religiosos".
A publicit�ria Ana Ruiz, de 33 anos, passou a participar de sess�es com ayahuasca ap�s descobrir ser portadora de esclerose m�ltipla. Ela conta que percebia "cores e figuras geom�tricas aparecendo". "Via Deus, Jesus Cristo, Maria. Entidades, pessoas que eu n�o conhecia, mas que falavam comigo."
Ela relata tamb�m a perda da no��o de tempo, outro efeito previsto na experi�ncia. "Pensei que j� tinha passado mais de um m�s, mas, na verdade, tinham sido s� 2h30."
Ana diz que a ayahuasca n�o mexeu com sua vis�o sobre a morte ("quando chegar minha hora, independente do motivo, eu vou"), mas ela acredita que, junto com os medicamentos de seu tratamento, ajudou no controle da esclerose m�ltipla e na retomada de um ritmo mais normal de vida.

Nos primeiros tempos, conta ela, a doen�a afetou desde a mem�ria at� a sua vis�o e provocou violentas dores pelo corpo, principalmente na coluna. Isso impactou toda a sua rotina.
A publicit�ria diz que a ayahuasca ajudou a "ressignificar o que � a esclerose m�ltipla" em rela��o � pr�pria vida. "Me ajudou a n�o achar que eu sou menos por causa dela, me ajudou a n�o me boicotar."
O estudo de Maia conclu�a que os componentes qu�micos da mistura colaboram para a "aceita��o da doen�a por meio de mecanismos psicol�gicos m�ltiplos, incluindo introspec��o, autoan�lise, processamento emocional e catarse, evoca��o de mem�rias autobiogr�ficas".
Segundo a artes� Juliana, que enfrenta um c�ncer de mama, "n�o d� para explicar o tanto de informa��o que voc� recebe e de coisas que voc� compreende" durante uma sess�o.
Ela afirma que o resultado que notou das experi�ncias com ayahuasca foi rever sua personalidade: "Sempre falei muito alto, sempre fui muito autorit�ria, sempre impus muito meu jeito de ser. Achava que n�o tinha que mudar, n�o tinha que melhorar. Uma postura meio 'eu sou assim, � a minha personalidade'", diz.
"A� percebi que esse tipo de personalidade e certos comportamentos n�o faziam bem em v�rios aspectos da minha vida."
Seu tumor teve met�stase para pulm�o e ossos, e ela n�o tem previs�o de alta.
"O c�ncer e seu tratamento s�o extremamente dif�ceis de encarar, mexe com o paciente em muitos n�veis. Se a pessoa n�o estiver forte para enfrentar, ela n�o aguenta o tratamento."
Essa intensidade da experi�ncia com o ch�, segundo Lucas Maia, � resultado da "libera��o de emo��es reprimidas, de hist�rias pessoais que muitas vezes s�o associadas aos sentidos e significados da doen�a enfrentada".
Em rela��o ao c�ncer em si, sua pesquisa diz que h� "um conjunto de evid�ncias obtidas em estudos de biologia celular sugere que os compostos contidos na ayahuasca - em especial, o DMT e a harmina - podem atuar sobre diferentes mecanismos celulares ligados ao c�ncer e exercer efeitos antitumorais".
Necessidade de estudos e riscos existentes
Maia e a enfermeira paliativista Ana Garcia se uniram para fazer uma revis�o cient�fica de 20 estudos sobre os benef�cios de psicod�licos (al�m da ayahuasca, as pesquisas examinaram os efeitos da psilocibina encontrada em cogumelos) para portadores de doen�as graves.
A conclus�o da an�lise, publicada no peri�dico cient�fico Journal of Pain and Symptom Management, sugere "efeitos positivos" das terapias psicod�licas com "consider�vel seguran�a de uso".
Em ambiente com monitoramento m�dico, n�o foram relatados "efeitos adversos s�rios" e, quando presentes, eram de "leves a moderados em intensidade e transit�rios".
Os pesquisadores pedem aten��o �s condi��es de seguran�a em que o tratamento ocorre e afirmam que � preciso estudos mais robustos sobre a associa��o dessas subst�ncias com esquizofrenia e outras psicoses.
A necessidade de mais pesquisas sobre os efeitos de psicod�licos � apontada constantemente. O n�mero de participantes examinados por trabalhos cient�ficos na �rea ainda � escasso.
Uma revis�o feita em 2017 por Rafael G. dos Santos, Jos� Carlos Bouso e Jaime E. C. Hallak, pesquisadores da Universidade de S�o Paulo (USP) e do International Center for Ethnobotanical Education, Research and Service (ICEERS), da Espanha, analisou oito estudos sobre a ocorr�ncia de surtos psic�ticos relacionados a ayahuasca ou � subst�ncia DMT.
Quase todos se debru�avam sobre epis�dios individuais, mas havia um levantamento de casos ocorridos na Uni�o do Vegetal (UDV), grupo religioso em torno da ayahuasca com 20 mil associados em v�rios pa�ses.
Ao longo de 13 anos, foram registrados 29 casos de transtornos psic�ticos, como esquizofreniza e mania, embora tenha-se conclu�do depois que, em 10 dessas ocorr�ncia,s o ch� n�o foi o fator preponderante para os surtos.
A revis�o concluiu que a administra��o de ayahuasca a pessoas saud�veis tem "bom perfil de seguran�a" e que os epis�dios de surtos estavam mais relacionados ao hist�rico familiar da pessoal ou ao uso concomitante de outra droga.
E advertiu que o local onde a experi�ncia ocorre (conhecido pelo termo setting), com mais monitoramento, pode reduzir a ocorr�ncia de epis�dios psic�ticos.
S�o mais comuns nas pesquisas relatos de desconforto f�sico, como n�usea e v�mito, al�m de ansiedade, confus�o e p�nico. Estudos dizem que, no geral, esses efeitos cessam depois de um tempo, e o paciente retoma a experi�ncia psicod�lica sem esses inc�modos.
Pesquisadores da universidade norte-americana Johns Hopkins tamb�m fizeram uma revis�o de estudos no fim de 2021, focada apenas em quadros terminais, e consideraram positiva a incorpora��o dessas subst�ncias aos cuidados paliativos.
Eles observaram, no entanto, que � preciso estudar melhor a aplica��o nessa fase, para evitar que a qualidade de vida do paciente piore, al�m de apontarem ser necess�rio obter mais informa��es sobre a associa��o de psicod�licos com medicamentos.
E tamb�m dizem que a populariza��o dessas terapias pode levar a "igualar tratamentos psicod�licos a tratamentos sem base em evid�ncias [cient�ficas] e tratamentos alternativos nesse contexto".

Maia aponta que "difundiu-se muito o uso da ayahuasca e, hoje em dia, h� v�rios contextos, inclusive o neoxam�nico [resgate de pr�ticas de povos ancestrais em contexto moderno], que n�o necessariamente est� vinculado a religi�es. H� relatos de charlatanismo, curandeirismo e tamb�m de abusos sexuais".
"Religi�es [que usam ayahuasca] assinaram uma carta de princ�pios �ticos em 1991 para o uso do ch�. Entidades t�m tentado divulgar esses casos de abusos e estabelecer normas. Um instituto chegou a publicar uma esp�cie de manual para mulheres que v�o a cerim�nias."
Outra subst�ncia alucin�gena que vem sendo muito estudada, a psilocibina encontrada nos cogumelos da esp�cie Psylocibe cubensis, tem uma situa��o amb�gua. Sites vendem esses cogumelos no Brasil e afirmam que t�m permiss�o para isso.
"O cogumelo n�o � proibido, mas suas subst�ncias intr�nsecas s�o, e isso j� � o suficiente para estar em risco jur�dico", diz Emilio Figueiredo, advogado na Rede Reforma e no escrit�rio Figueiredo, Nemer e Sanches Advocacia Insurgente. Um processo penal dependeria "da identifica��o das subst�ncias controladas", diz ele.
No entendimento de Figueiredo, "o cogumelo em si n�o basta para a persecu��o penal". "Segundo a lei vigente, a ilicitude n�o est� na venda do cogumelo em si, mas sim na possibilidade de ali serem identificadas as subst�ncias proibidas."
Mas a Anvisa diz que a lei nº 11.343/2006 "pro�be em todo o territ�rio nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a explora��o de vegetais e substratos dos quais possam ser extra�das ou produzidas drogas".
Em maio passado, a ag�ncia deu a primeira autoriza��o para um estudo com psilocibina para pesquisadores do Laborat�rio de Avalia��o e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste (Certbio) e da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Cetamina no hospital
Henrique Ribeiro, psiquiatra que faz a ponte entre sua �rea e a de cuidados paliativos no Hospital das Cl�nicas de S�o Paulo, se considera um entusiasta das possibilidades dos alucin�genos, mas tamb�m "prudente e by the book [que segue regras]".
Ele expressa reservas sobre a forma como esse uso pode eventualmente se disseminar no futuro e pede pesquisas com mais participantes para analisar os impactos dos psicod�licos.
"Acho que h� um risco que a gente ainda n�o calcula. Principalmente em pacientes com doen�a avan�ada, que utilizam v�rias medica��es. H� riscos de efeitos colaterais e piora de alguns sintomas."
O psiquiatra defende que terapias do tipo tenham rigor na triagem de pacientes eleg�veis, um esquema de prepara��o para que a pessoa se sinta segura durante a experi�ncia e realiza��o em ambiente hospitalar, com monitoramento.
"� imprescind�vel que mais pesquisas sejam desenvolvidas para que o conhecimento sobre o assunto seja aprofundado", concorda a enfermeira Ana Garcia.
"Psicod�licos t�m indica��es espec�ficas e n�o s�o indicadas para todos, al�m do fato de n�o serem uma solu��o m�gica que resolver� todo e qualquer problema."
Ribeiro faz infus�es de um anest�sico hospitalar de manejo autorizado, a cetamina (tamb�m chamado de ketamina). Segundo a Anvisa, � uma subst�ncia de uso controlado pela portaria 344/1998. H� "usos irregulares/recreativos como droga de abuso de tal subst�ncia em �mbito internacional".
A ag�ncia afirmou que, em geral, a "avalia��o de medicamentos � feita a partir da verifica��o da rela��o de benef�cio-risco do produto, independentemente de suas propriedades espec�ficas". "A rela��o benef�cio-risco tem como base os estudos cl�nicos. Assim, as subst�ncias consideradas psicod�licas est�o sujeitas �s mesmas regras das demais subst�ncias destinadas ao uso terap�utico."
Em ambiente cl�nico, Ribeiro conta, "� utilizada como uma medica��o de benef�cios em cuidados paliativos por ter �timo efeito analg�sico e indica��o formal para s�ndromes dolorosas. Na psiquiatria, � �til para tratar depress�o refrat�ria. Tenho a experi�ncia de utilizar ketamina em pacientes oncol�gicos com a finalidade de melhorar os sintomas de humor depressivo".
O psiquiatra afirma que a cetamina pode levar os pacientes a ter alucina��es, vis�es, sonhos l�cidos ou estados dissociativos da consci�ncia. "O que chamamos de um estado m�stico, uma percep��o conhecida como unidade oce�nica em que a pessoa se v� dentro de um todo muito maior, uma sensa��o de contemplar algo muito maior do que ela."
Ele enfatiza que esse tratamento est� em est�gios incipientes: "Tudo isso a� � vanguarda ainda".
Milena Souza, do AC Camargo Cancer Center, v� com otimismo o interesse que os psicod�licos v�m despertando entre os pr�prios pacientes.
"Nem sempre o indiv�duo � t�o aut�nomo nessa busca. Vejo muita gente que se curou do c�ncer e tem interesse nessas experi�ncias, porque enfrenta dor cr�nica ou vivenciou situa��es que deixaram traumas. E os psicod�licos apresentam novas possibilidades."
A paciente Juliana considera que a sociedade "� totalmente despreparada para lidar com a proximidade da morte e as limita��es f�sicas que a doen�a e tratamento trazem". "Os psicod�licos abrem uma nova percep��o para enxergar nossos pontos de vista, expandem nossa consci�ncia a um n�vel totalmente diferente do que estamos acostumados."
"Claro que tudo muito bem direcionado e acompanhado."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62385578
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