
Pai de dois filhos, Carson mostrava todos os sinais de embriaguez, mas n�o havia consumido �lcool. Essa embriaguez aparente era acompanhada de outros sintomas, como dor de est�mago, incha�o e cansa�o. Muitas vezes, ele se sentia mal e desmaiava.
O pr�prio Carson s� conseguia relembrar esses epis�dios no dia seguinte de forma nebulosa. "Eu n�o tinha ideia do que estava acontecendo", afirma Carson, que tem 64 anos de idade e mora em Suffolk, no Reino Unido. "Seis a oito horas depois, eu acordava como se n�o houvesse nada de errado comigo e sentia ressaca muito raramente."
Embriaguez surge depois das refei��es com alto teor de carboidrato
At� que Carson e sua esposa descobriram que a embriaguez e os outros sintomas pareciam surgir depois de refei��es com alto teor de carboidratos, como batatas. Ap�s diversas consultas com m�dicos e nutricionistas, Carson foi diagnosticado com uma condi��o rara chamada s�ndrome da fermenta��o intestinal (SFI).
A s�ndrome da fermenta��o intestinal, tamb�m conhecida como s�ndrome da autofermenta��o, � uma condi��o, at� certo ponto, misteriosa, que eleva os n�veis de �lcool no sangue e produz sintomas de embriaguez em pacientes, mesmo quando tiveram ingest�o m�nima ou nenhuma de �lcool. E pode fazer com que eles n�o passem no teste do baf�metro, com consequ�ncias legais e sociais para as pessoas afetadas.
Mas este fen�meno incomum tamb�m � muito controverso, j� que sua causa exata ainda � pouco compreendida. Mesmo assim, a condi��o tamb�m vem sendo usada como defesa legal em casos de embriaguez ao volante.
Leia tamb�m: S�ndrome Alco�lica Fetal: os riscos da ingest�o de �lcool na gravidez
"Acho que a maior parte dos toxicologistas atualmente reconhece que esta � uma condi��o m�dica real e que, de fato, voc� pode atingir concentra��es de �lcool significativas com a fermenta��o interna", afirma Barry Logan, diretor executivo do Centro de Educa��o e Pesquisa em Ci�ncia Forense da Filad�lfia, nos Estados Unidos.
"Todos n�s produzimos pequenas quantidades de �lcool por fermenta��o, mas, na maioria dos indiv�duos, os n�veis s�o pequenos demais para serem medidos", segundo ele.
Normalmente, a fermenta��o que eventualmente ocorre no intestino � removida antes que consiga entrar no fluxo sangu�neo, em um efeito conhecido como metabolismo de primeira passagem. "Algu�m que tem SFI teria que produzir �lcool em quantidade maior que aquela que pode ser removida na primeira passagem", afirma Logan.
Um mecanismo indicado como subjacente � condi��o est� relacionado aos desequil�brios dos micr�bios intestinais, que geram crescimento excessivo de certos micr�bios que, posteriormente, sob condi��es espec�ficas, fermentam uma refei��o rica em carboidratos em �lcool.
- 5 formas de melhorar a sa�de do intestino
- Os benef�cios do exerc�cio f�sico para o funcionamento do intestino
Recentemente, foi descoberta uma nova varia��o dessa condi��o - a s�ndrome de fermenta��o da bexiga - causada por desequil�brios entre os micr�bios que vivem na bexiga, produzindo �lcool na urina, que antes era inexplic�vel. Esta variante da condi��o foi observada em pacientes com diabetes e, se descontrolada, gera a��car na urina, que serve de alimento para os micr�bios.
Mas o que pode acionar essa mudan�a s�bita e dram�tica nos micro-organismos que vivem dentro do nosso corpo e que, nas circunst�ncias corretas, causam a s�ndrome de fermenta��o intestinal?
Estudos japoneses
Embora a SFI tenha sido encontrada em indiv�duos saud�veis, observa-se maior incid�ncia em pessoas que sofrem de comorbidades como diabetes, doen�as hep�ticas relativas � obesidade, doen�a de Crohn, opera��es intestinais anteriores, pseudo-obstru��o (impedimento da capacidade de passagem de alimentos ou gases atrav�s do intestino, mas sem sinais de bloqueio) ou crescimento excessivo das bact�rias do intestino grosso.
Leia tamb�m: Cerveja pode contribuir com a preven��o do Alzheimer, diz estudo.
Os primeiros casos relatados dessa s�ndrome surgiram no Jap�o nos anos 1950 e existem indica��es de que a popula��o japonesa � particularmente propensa a ela.
Pesquisadores indicam que uma varia��o gen�tica espec�fica que reduz a capacidade do f�gado de decompor etanol pode contribuir para a incid�ncia dessa condi��o em certas popula��es, como a japonesa. Essencialmente, isso significa que as pessoas que possuem essa variante s�o menos capazes de eliminar o �lcool do corpo, de forma que qualquer fermenta��o no intestino pode resultar em ac�mulo dos n�veis de etanol.
- Como algumas bact�rias no intestino podem influenciar nosso humor
- Como s�o as bact�rias no intestino de quem tem depress�o
Mas um relat�rio m�dico de dois casos em 1984 destacou outro culpado: as leveduras que moram no trato digestivo dos pacientes.
M�dicos da Faculdade de Medicina da Universidade de Hokkaido, no Jap�o, relataram que uma enfermeira at� ent�o saud�vel, com 24 anos de idade, desenvolveu, ao longo de um per�odo de cinco meses, sintomas de vertigem, n�useas e v�mitos uma a duas horas depois de ingerir refei��es ricas em carboidratos.
Certo dia, duas horas depois do caf� da manh�, ela se queixou de mal-estar geral e vertigens, ficou inconsciente e precisou de tratamento hospitalar. Verificou-se que a concentra��o de etanol na respira��o e no sangue era extremamente alta, embora ela n�o tivesse consumido �lcool.
Exames de laborat�rio revelaram que ela tinha altas quantidades da levedura Candida albicans no intestino. Essa levedura � tipicamente encontrada entre os micr�bios do intestino humano, mas claramente havia sa�do de controle.
Exames similares do segundo caso do estudo, um cozinheiro de 35 anos de idade que se queixava de h�lito com odor alco�lico, vis�o turva e andar cambaleante, tamb�m revelaram n�veis elevados de Candida albicans no intestino do paciente. Os exames de laborat�rio dos dois pacientes demonstraram que eles fermentavam grandes quantidades de carboidratos em �lcool.
Os pesquisadores sugeriram, na �poca, que os n�veis normais de Candida no intestino dos pacientes haviam crescido de forma descontrolada e come�ado a fermentar o carboidrato das suas refei��es. E, quando os pacientes ingeriam muitos carboidratos, os n�veis de �lcool no corpo disparavam.
Quando a enfermeira e o cozinheiro receberam medica��o antif�ngica e os carboidratos na alimenta��o foram restringidos, os sintomas similares � embriaguez desapareceram por completo.
Mais recentemente, outros estudos revelaram que, muitas vezes, uma combina��o de fatores aumenta o risco de SFI. Diversos fungos e bact�rias produtores de �lcool, tanto no trato gastrointestinal quanto no trato urin�rio, no caso de pacientes diab�ticos, podem gerar superprodu��o de �lcool.
A maior parte das esp�cies respons�veis � do g�nero Candida, incluindo as leveduras Candida albicans, Candida kefyr e Candida galbrata, al�m de Saccharomyces cerevisiae - a levedura usada na produ��o de vinho e cerveja - e uma bact�ria intestinal chamada Klebsiella pneumoniae.
Isoladamente, n�veis anormais desses micro-organismos no intestino dos pacientes podem n�o gerar a s�ndrome. Mas ingerir refei��es ricas em carboidratos s�o um fator �bvio de colabora��o, pois elas fornecem aos micr�bios grande quantidade de mat�ria-prima para ser transformada em �lcool.
Pessoas com problemas gastrointestinais que fazem com que os alimentos fiquem estagnados no trato digestivo tamb�m s�o particularmente propensas � SFI, pois eles podem alterar o ambiente estomacal de forma a favorecer os micro-organismos produtores de �lcool. E a baixa toler�ncia a �lcool tamb�m pode ter influ�ncia, j� que o �lcool produzido pelos micr�bios t�m efeito maior sobre o ser humano que os hospeda.
Os micr�bios do nosso corpo
Todos n�s temos cerca de 100 trilh�es de micro-organismos vivendo no intestino, incluindo bact�rias, fungos, bacteri�fagos, v�rus, protozo�rios e Archaea. Estima-se atualmente que haja mais de 1 mil esp�cies de bact�rias.

As pesquisas revelam imensas fun��es para a nossa sobreviv�ncia, desde digerir nossas refei��es at� determinar a extens�o de inflama��es locais e corporais e regular nosso sistema imunol�gico, al�m de participar do metabolismo da glicose e da sinaliza��o de insulina.
Esses micro-organismos s�o muito din�micos e seus n�meros e esp�cies podem se alterar, dependendo das nossas escolhas de estilo de vida. Um n�mero significativo de estudos demonstrou que, quanto mais diversas s�o essas esp�cies, melhor para a nossa sa�de f�sica e mental.
Progressos no conhecimento
"O diagn�stico e o tratamento da s�ndrome da fermenta��o intestinal progrediram substancialmente na �ltima d�cada", segundo a pesquisadora Barbara Cordell, do Panola College em Carthage, no Texas (Estados Unidos). Cordell estuda a s�ndrome e � presidente da organiza��o sem fins lucrativos Auto-Brewery Information and Research.
Mas indicar a causa exata do desequil�brio de micr�bios que gera o excesso de esp�cies capazes de fermentar �lcool � muito mais dif�cil.
"Estamos falando de infec��es massivas com SFI - uma quantidade de bact�rias e leveduras de fermenta��o muitas vezes maior que a de uma pessoa saud�vel", afirma Cordell. "Elas sobrecarregam o sistema, da mesma forma que qualquer outra infec��o fora de controle."
O uso frequente ou prolongado de antibi�ticos foi indicado como fator de risco, seja por ser frequentemente relatado por pacientes que sofrem dessa condi��o, ou porque eles podem sofrer reincid�ncia ap�s o uso do medicamento. Isso faz sentido, pois se sabe que o uso excessivo de antibi�ticos em geral perturba a microbiota intestinal, mas s�o necess�rias pesquisas adicionais para confirmar se esta � a causa direta da SFI.
Ingerir quantidade excessiva dos tipos errados de alimentos tamb�m pode causar problemas. O consumo excessivo de alimentos ultraprocessados tamb�m foi relacionado a perturba��es da microbiota intestinal.
"Tamb�m sabemos que um importante componente do tratamento deve ser uma dieta com baixo teor de carboidratos, quer o m�dico e o paciente decidam usar medicamentos ou n�o", afirma Cordell.
No caso de Saccharomyces cerevisiae e Candida albicans, esses micr�bios intestinais s�o conhecidos por crescerem melhor e produzirem mais etanol em condi��es levemente �cidas, sob pH de cerca de 5-6.
"Normalmente, o pH do est�mago � [muito �cido] de 1,5 a 3,5", segundo o toxicologista Ricardo Dinis-Oliveira, da Cooperativa de Ensino Superior Polit�cnico e Universit�rio, em Portugal.
"Sempre que o alimento entra no est�mago, o pH aumenta [ele se torna menos �cido]", explica ele. "No caso de pessoas que sofrem de condi��es que levam � estagna��o dos alimentos, isso significa que o pH do est�mago manter� esses valores mais altos por mais tempo, o que pode ser favor�vel para os micro-organismos respons�veis pela produ��o de etanol."
Em um estudo recente, Dinis-Oliveira descreveu sua pr�pria teoria sobre a cria��o das condi��es ideais para o desenvolvimento da SFI. Ele a descreve como uma "tempestade metab�lica perfeita", na qual o pH do est�mago aumenta e combina-se com a estagna��o dos alimentos e seu retrofluxo do intestino para o est�mago, que � observado em certas condi��es m�dicas.
Nick Carson - o paciente de SFI do Reino Unido de 64 anos de idade - descobriu recentemente que sofre de um dist�rbio gen�tico que afeta os tecidos conectivos do corpo, conhecido como s�ndrome de Ehlers-Danlos hiperm�vel.
Os tecidos conectivos s�o compostos principalmente da prote�na col�geno. Eles tendem a fornecer apoio para outros tecidos da pele, tend�es, ligamentos e vasos sangu�neos, da mesma forma que em alguns �rg�os internos.
Pacientes com a s�ndrome de Ehlers-Danlos podem ter juntas hiperflex�veis, mas ela tamb�m afeta o trato digestivo, onde pode causar movimentos anormais dos m�sculos involunt�rios que controlam a digest�o. Isso pode tornar o intestino do paciente mais lento, gerando atrasos no esvaziamento do conte�do do est�mago para o intestino grosso.
Ainda n�o se estudou nenhuma liga��o entre as duas s�ndromes, mas Carson acredita que esse atraso no esvaziamento do est�mago pode ter colaborado com a SFI. Cerca de 5 mil a 20 mil pessoas sofrem da s�ndrome de Ehlers-Danlos hiperm�vel, de forma que � necess�rio ter mais pesquisas para determinar se existe essa rela��o.
Cordell acredita que pode haver ainda outras causas.
"N�s tamb�m aprendemos muito mais sobre gatilhos alimentares e externos, como solventes, subst�ncias qu�micas, polui��o, estresse e traumas, que causam 'surtos' de produ��o end�gena de �lcool", afirma ela.
Carson associa os solventes � sua SFI. Uma das suas primeiras experi�ncias com a s�ndrome ocorreu pouco depois de vedar um piso de madeira usando produtos que continham compostos org�nicos vol�teis. Mas, como os pr�prios solventes podem causar intoxica��o quando inalados, esta rela��o precisa ser mais estudada.
Ap�s uma dieta restrita sob a orienta��o de nutricionistas, combinada com tratamentos antif�ngicos e multivitam�nicos, Carson conseguiu manter sua SFI sob controle. "Ainda � como andar na corda bamba", ele conta. "Estou sempre me perguntando: 'estou bem?' Quando me sinto um pouco cansado, fa�o o teste do baf�metro."
Para Carson, a parte mais preocupante da sua experi�ncia com a SFI foi o efeito sobre a sua sa�de mental. Ele usa a t�cnica do "pal�cio da mem�ria", que ficou famosa com a s�rie de TV Sherlock, como analogia.
Na s�rie, Sherlock Holmes descreve como ele relembra as informa��es mantendo-as armazenadas em quartos imagin�rios em um grande edif�cio. "Quando entro naquele estado inconsciente, n�o tenho mais acesso aos quartos mentais desses eventos", afirma Carson. "Isso � extremamente perturbador e voc� acaba duvidando de si pr�prio."
Carson explica que, embora ele saiba pela fam�lia que esses epis�dios aconteceram, suas mem�rias dos eventos ficam fora de alcance, o que � frustrante. "Existem diversos quartos onde n�o consigo entrar, pois esses quartos est�o trancados e preciso aceitar que nunca entrarei neles", prossegue ele. "N�o � que as mem�rias n�o estejam ali, mas voc� n�o tem acesso a elas no seu estado consciente."
Mas, � medida que Carson aprender mais sobre a sua condi��o e suas poss�veis causas, ele e sua esposa esperam que menos quartos como esses fiquem trancados no futuro.
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.