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Estado de Minas SA�DE

Jovem que sofreu AVCs e se comunicava com os olhos corre meia maratona

'Me recuperei e corri meia maratona', diz L�sia Daniella Lustoza Ferro, que aos 30 anos sofreu dois AVCs e chegou a ficar tetrapl�gica


22/11/2022 10:21 - atualizado 22/11/2022 10:21

Lísia com roupa de corrida, sentada na pista e sorrindo
Na UTI, L�sia Daniella prometeu que escreveria um livro e correria maratona (foto: Arquivo pessoal)
Aos 30 anos, a advogada bem-sucedida L�sia Daniella Lustoza Ferro sofreu um Ataque Isqu�mico Transit�rio (AIT). Em seguida, dois Acidentes Vasculares Cerebrais Isqu�micos (AVCIs). Ela permaneceu na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) por 25 dias comunicando-se apenas com olhos, piscando, pois o restante do corpo estava completamente paralisado.

"A L�sia antes dos AVCs era viciada em trabalho", ela se autodefine, em entrevista � BBC News Brasil. "Eu era respons�vel por dois escrit�rios de advocacia, um em Palmas (TO) e outro no interior do Estado, o que exigia que eu dirigisse muito. E somou isso com a rotina de audi�ncias, atendimento de clientes, e muitos prazos a serem cumpridos", diz.

Mesmo assim, ela ainda tinha uma boa alimenta��o, praticava exerc�cio f�sico e estava em dia com exames rotineiros. Ela conta, ainda, que s� bebia socialmente e n�o fumava. Hoje, por�m, acredita que o ritmo fren�tico de trabalho explica o desfecho daquele per�odo.

Tudo come�ou em julho de 2019. L�sia estava prestes a desfrutar das t�o sonhadas f�rias, quando come�ou a sentir um torcicolo muito forte. Mas se automedicou e seguiu a vida. Nessa mesma semana, a jovem advogada come�ou a ouvir um zumbido no ouvido. Foi a� que ela procurou um m�dico otorrino que, por sua vez, a examinou e n�o encontrou nada de errado. Por�m, passou uma medica��o para amenizar a dor. E o foco voltou: as f�rias do m�s seguinte.

No entanto, ao acabar o rem�dio, a dor voltou. Ela mal conseguia levantar da cama e comer. Por isso, novamente foi ao hospital e chegou a fazer um exame de imagem. "Eu fui e voltei umas quatro ou cinco vezes e n�o identificavam o AVC", recorda-se. "Um m�dico dizia que era rea��o dos rem�dios que eu tinha tomado, outros que os sintomas estavam relacionados ao torcicolo, outros alegavam que era porque eu estava muito magra e com o organismo enfraquecido, e assim foi indo", completa a advogada.

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"Perdi o controle da m�o esquerda— come�ou a se mexer sozinha, eu comecei a ter formigamento no rosto, sentia dificuldade para falar, a minha l�ngua enrolava frequentemente, mas ningu�m suspeitou, e nem eu", relata.


Selfie de Lísia Daniella em escritório
Foto da advogada antes de sofrer os dois acidentes vasculares cerebrais (foto: Arquivo pessoal)

L�sia diz que at� chegaram a fazer uma tomografia, que n�o detectou o AVC. Isso a levava frequentemente ao hospital, durante uns 15 dias. Depois, foi esclarecido que tratava-se de um Ataque Isqu�mico Transit�rio (AIT), mas somente ap�s ela pedir ajuda de um amigo, que � m�dico ginecologista.

Passado essas idas e vindas, no dia 8 de agosto de 2019, quando j� estava pronta para viajar, ela sentiu a perna enfraquecer, voltou ao hospital e os exames mostraram que ela estava sofrendo um Acidente Vascular Cerebral Isqu�mico (AVCI) numa regi�o cerebral que, aparentemente, a deixaria com sequelas motoras. J� no dia seguinte, ela entrou em coma e teve o segundo AVCI. Em 10 de agosto, L�sia voltou do coma, tetrapl�gica.

"Nossa, foi horr�vel. Eu estava consciente que estava em um hospital, mas acordei num quarto diferente, porque fui para a UTI e na hora n�o tinha ningu�m do meu lado. Eu n�o conseguia nem chorar, s� ouvia aqueles enfermeiros ao meu redor", recorda-se. "A sensa��o � de soterramento, como se tivesse em cima do seu corpo inteiro pedras gigantes que te impedem de se mexer", define a advogada.

O recome�o surpreendente

Com o passar dos dias na UTI, L�sia conseguiu segurar um pouco o pesco�o e sentar-se com apoio — embora ainda estivesse sem os movimentos dos bra�os e das pernas. Depois, os fisioterapeutas a colocaram de p� com os enfermeiros a segurando. "N�o foi s� um m�s na UTI. Foi uma vida. Parecia 30 anos", tenta resumir a jovem.

L�sia foi para a casa de maca, porque ainda n�o conseguia se sustentar na cadeira de rodas, e seguiu em casa com o trabalho de est�mulos que fora iniciado ainda na UTI.

"Quando eu cheguei na casa, ela piscava para se comunicar, se alimentava por sonda, usava fralda", relembra St�phanie Neiva Gayoso Hagestedt, fisioterapeuta especialista em terapia intensiva, que foi a respons�vel por boa parte do processo da reabilita��o de L�sia.

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E para facilitar a comunica��o, a fam�lia usava plaquinhas para tentar identificar os seus sentimentos: se ela estava sentindo muita dor, animada, triste.


Lísia, ainda com aparelhos hospitalares, sentada e rodeada por funcionários do hospital, de jaleco
L�sia saiu da UTI em setembro de 2019: 'N�o foi um m�s na UTI. Foi uma vida' (foto: Arquivo pessoal)

"Faz�amos terapia tr�s vezes por dia. Foi muito intenso mesmo. Ela sentia muitas dores, mas n�o tinha express�o nenhuma—s� as l�grimas escorriam dos olhos", relata, comovida, a fisioterapeuta.

Em um curto per�odo de tempo, por�m, o cen�rio mudou completamente. "Eu fico emocionada de falar. Em dois meses tivemos muito resultado: ela come�ou a falar, conseguia comer, caminhava com dificuldade, fizemos o desfralde. Depois, a gente s� foi procurando melhorar", diz a fisioterapeuta. "Ela foi um milagre — o caso mais r�pido que eu tive de reabilita��o at� hoje", diz acrescenta.

Ao todo, o processo de reabilita��o durou cerca de um ano, per�odo em que ela realmente voltou a ter total independ�ncia.

"Eu tive que reaprender a comer, escovar os dentes, deitar e levantar, me vestir, escrever", descreve L�sia.

As promessas cumpridas

L�sia recorda-se claramente que, durante o per�odo em que s� conseguia piscar os olhos estava consciente. E bateu um arrependimento. "Eu ficava ali pensando que estava com dinheiro na conta para tirar aquelas f�rias t�o programadas, mas que de nada valia. Percebi que o que realmente importava era a minha fam�lia e amigos", desabafa a jovem advogada.

Al�m disso, como ela sofreu dois AVCs, as chances de permanecer tetrapl�gica eram grandes, segundo os m�dicos. Por isso, a sua melhor amiga, Sheila, foi ao hospital com a inten��o de se despedir, pois acreditava que ela n�o suportaria viver nessas condi��es. Mas as coisas mudaram.

"Ela chegou e teve a ideia milagrosa de criar o alfabeto numa plaquinha para eu conseguir me comunicar por piscadas. Da� ela come�ou a vir todos os dias com essa plaquinha", conta.

Sheila, inclusive, leu um livro para a amiga que explicava sobre AVCs e dizia que havia chances de recupera��o. Foi a� que veio a primeira promessa: se ela conseguisse sair daquela situa��o e se recuperasse completamente, escreveria um livro contando sua hist�ria.

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"Isso aconteceu. Meu livro chama Como Assim AVC e foi publicado no ano passado. O t�tulo foi definido justamente porque foi exatamente essa pergunta que eu me fiz quando soube o que havia acontecido comigo" relata emocionada. 

Mas as promessas n�o pararam por a�: em uma dessas visitas, como forma de incentiv�-la a acreditar que ela sairia daquela situa��o, Sheila sugeriu que quando L�sia se recuperasse, elas correriam uma maratona.


Lísia caminha em quarto, amparada por Stéphanie
L�sia deu seus primeiros passos dois meses ap�s o in�cio do processo de reabilita��o, com a ajuda de sua fisioterapeuta, St�phanie (foto: Arquivo pessoal)

"Quando voltei a falar disse que a maratona achava que n�o conseguiria, mas a meia eu iria correr no Rio de Janeiro. Uma galera animou, outra desistiu, mas no final das contas, a gente conseguiu correr essa meia maratona em agosto desse ano", comemora a sobrevivente.

Marcelo Valadares, neurocirurgi�o, m�dico do Hospital Israelita Albert Einstein (SP) e pesquisador da Disciplina de Neurocirurgia da Faculdade de Ci�ncias M�dicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que esse tipo de recupera��o n�o � comum, tampouco frequente.

"As circunst�ncias podem ter feito cheg�-la ao ponto de s� conseguir se comunicar atrav�s dos olhos, mas, n�o � esperado que uma pessoa permane�a com uma sequela assim por semanas e se recupere completamente. Mas nada � imposs�vel, a gente sabe que o nosso corpo � uma caixinha de surpresa", defende o especialista.

Para a fisioterapeuta que acompanhou o quadro de perto, do ponto de vista t�cnico, a recupera��o tamb�m foi surpreendente. "Pelo tamanho da les�o e da localiza��o, eu e o m�dico que a atend�amos t�nhamos um progn�stico bem reservado. Para mim, o m�ximo que poderia ter com ela era um controle de tronco para ela conseguir se manter sentada, ou que tivesse um pouquinho de for�a para se comunicar com os dedos. Porque a les�o ocorreu em v�rios locais do c�rebro, inclusive no tronco encef�lico, que � respons�vel pela nossa coordena��o motora, andar, falar", explica Hagestedt.

Agora, a especialista se emociona ao ver que ela conseguiu cumprir as promessas feitos na UTI, e admite que ela mesma n�o acreditava que isso seria poss�vel.

"Hoje eu choro ao ver o v�deo dessa meia maratona, porque n�o acreditava que ela realmente fosse fazer isso e que estaria como est� hoje. Eu mostro esse v�deo para estimular v�rios pacientes meus. E, para mim, � muito gratificante, emocionante, porque voc� olha como profissional a parte t�cnica e, �s vezes, esquece que existe um ser superior que pode tudo", observa a Hagestedt, a fisioterapeuta que cuidou inicialmente de L�sia.


Lísia e mais três amigos na orla do Rio de Janeiro, sorrindo para selfie
Da esquerda para a direita, Marcella Miranda, Ridelson Miranda e Sheila Teixeira, amigos de L�sia Daniella que correram a meia maratona junto com ela (foto: Arquivo pessoal)

As prioridades mudaram

L�sia se recuperou completamente. Mas hoje, aos 33 anos, a prioridade mudou. "Meu trabalho � importante porque � o meu sustento, mas n�o � mais a minha prioridade. Eu mudei completamente a minha vida. Hoje, a minha prioridade � me exercitar e ter meus momentos de descanso. Eu passei a olhar com mais carinho para as pessoas que estiveram e seguem comigo at� hoje, e tirar um tempo para estar com elas de verdade", diz.

A jovem abriu m�o dos dois grandes escrit�rios em que atuava e come�ou a trabalhar sozinha, em uma rotina mais saud�vel. "Hoje, al�m de advogada, eu sou escritora e atleta amadora", comemora, afirmando que todo m�s de agosto ir� realizar um desejo incr�vel que tiver, enquanto viver, para nunca esquecer da sua experi�ncia e celebrar sua nova chance. "Eu renasci", conclui.

Entenda melhor o Acidente Vascular Cerebral

O acidente vascular cerebral, popularmente chamado de AVC � a segunda principal causa de morte no pa�s, atr�s apenas do infarto. A incid�ncia da doen�a � de 100 para cada 100 mil habitantes. "J� a mortalidade em quem tem a doen�a gira em torno de 30%. Em 2021, no Brasil, morreram 105 mil pessoas de AVC", alerta Valadares, neurocirurgi�o e m�dico do Hospital Israelita Albert Einstein.

O AVC � definido, principalmente, em dois grandes grupos: o primeiro � o isqu�mico, quando h� obstru��o de um vaso sangu�neo cerebral e/ou art�ria impedindo o sangue de chegar ao local. O outro � o hemorr�gico, que ocorre quando h� uma ruptura de um vaso sangu�neo.

Quando uma pessoa tem um AVC, a regi�o cerebral em que ocorreu o evento fica sem receber oxig�nio e nutrientes que seriam levados pelo sangue. Em consequ�ncia, as c�lulas morrem. Por isso, o paciente pode sofrer danos tempor�rios ou irrevers�veis.

De acordo com a Academia Brasileira de Neurologia (ABN), o AVC isqu�mico � o mais frequente e corresponde a cerca de 85% de todos os casos. Por outro lado, o AVC hemorr�gico costuma ser mais fatal e representa em torno de 15% do total.

Quais os principais fatores de risco?


Ilustração mostra área acidentada no cérebro, representando ocorrência de AVC
A faixa et�ria mais atingida pela doen�a costuma ser a de pessoas a partir dos 50 anos de idade, mas neurocirurgi�o ressalta que pessoas mais jovens tamb�m est�o pass�veis ao quadro (foto: Getty Images)

Os maiores fatores de risco s�o:

  • hipertens�o;
  • diabetes;
  • colesterol alto;
  • tabagismo;
  • obesidade;
  • sedentarismo;
  • arritmias card�acas;
  • uso excessivo de �lcool, drogas e/ou alguns medicamentos.

A melhor forma de preven��o est� relacionada ao estilo de vida: boa alimenta��o, atividades f�sicas regulares e evitar, na medida do poss�vel, muito estresse. "O melhor tratamento para o AVC � a preven��o", afirma Valadares.

A faixa et�ria mais atingida pela doen�a costuma ser entre pessoas a partir dos 50 anos de idade, sendo ainda mais comum depois dos 70. E, embora n�o seja t�o comum, o m�dico neurocirurgi�o ressalta que pessoas mais jovens tamb�m est�o pass�veis ao quadro.

"Normalmente, essas pessoas n�o precisam ser hipertensas ou diab�ticas. Um AVC pode surgir depois de uma pessoa levar uma bolada no pesco�o, sofrer um acidente grave ou ter doen�as hematol�gicas que predisp�e a um risco maior", diz.

Como reconhecer um AVC?

Os sinais de um AVC podem surgir de forma repentina e sutil. Tudo vai depender da regi�o cerebral atingida. Em geral, o Minist�rio da Sa�de alerta para os seguintes sintomas iniciais:

  • fraqueza ou formigamento na face, no bra�o/perna, sobretudo em um lado do corpo;
  • confus�o mental;
  • altera��o em diversas fun��es, como na fala, vis�o (em um ou ambos os olhos), equil�brio, coordena��o, tontura;
  • dor de cabe�a s�bita, intensa, sem causa aparente.

Por fim, vale dizer que um acidente vascular cerebral � um problema grave, mas n�o um decreto de morte. "� poss�vel sobreviver a um AVC, ficar com sequelas iniciais, mas, com o tempo, se recuperar completamente, dependendo do tipo de sequela. E se a pessoa tiver os sintomas e buscar atendimento m�dico r�pido � poss�vel reverter o quadro completamente", conclui o neurocirurgi�o.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63710990


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