Raphael Mechoulam

Raphael Mechoulam, considerado o pai da ci�ncia moderna da cannabis

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O caminho para entender o funcionamento bioqu�mico da maconha e suas propriedades medicinais foi aberto por um cientista israelense que sobreviveu ao Holocausto. Raphael Mechoulam, que morreu aos 92 anos na �ltima sexta (10/3) em Israel, descobriu o THC — um dos principais princ�pios psicoativos da cannabis — e aprofundou os conhecimentos sobre o CBD —, subst�ncia hoje amplamente usada em medicamentos.

 

Sua morte foi anunciada pela associa��o Amigos Americanos da Universidade Hebraica de Jerusal�m. A causa n�o foi revelada. "O mundo perdeu um gigante na comunidade da pesquisa cient�fica e um pioneiro no campo da cannabis medicinal", disse Joshua Rednik, diretor-geral da entidade.

 

Asher Cohen, presidente da Universidade Hebraica de Jerusal�m, afirmou que "a maioria do conhecimento e cient�fico sobre a cannabis foi acumulado gra�as ao professor Mechoulam. Ele pavimentou o caminho para estudos inovadores e iniciou a coopera��o cient�fica entre pesquisadores pelo mundo".

Mechoulam ajudou a fundar na universidade israelense um centro de estudos sobre canabinoides, as subst�ncias da planta que ativam receptores espec�ficos no corpo humano com diferentes efeitos (o THC e o CBD s�o apenas os mais conhecidos entre mais de 100 canabinoides).

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Sua vida foi tema de um document�rio de 2015 intitulado The Scientist ("O Cientista"). O cientista dedicou 55 anos a pesquisas na �rea — que hoje vive tanto uma efervesc�ncia sobre seus potenciais m�dicos e recreativos quanto preocupa��es sobre abuso e uso indiscriminado com o acesso facilitado � droga em v�rios pa�ses.

Pai enviado a campo de concentra��o

Mechoulam nasceu em S�fia, capital da Bulg�ria, no in�cio dos anos 1930 — uma �poca que ele considerava menos turbulenta para a Europa Oriental. "As feridas da Primeira Guerra Mundial n�o eram mais t�o dolorosas e Hitler ainda era considerado uma curiosidade demente", disse o cientista em uma longa e detalhada entrevista de 2007 para uma publica��o da Sociedade para o Estudo da Adic��o.

"Meu pai, que tinha se formado em uma das melhores escolas m�dicas da Europa, em Viena, era um m�dico proeminente, chefe de um hospital, enquanto a minha m�e, que havia estudado em Berlim, aproveitava a vida de uma fam�lia judaica bem de vida."

Mas a Segunda Guerra logo come�ou e o governo b�lgaro resolveu apoiar o regime nazista alem�o. "Leis antissemitas tornaram nossa vida quase insuport�vel. Meu pai aceitou um posto como m�dico em um vilarejo, sem �gua encanada ou eletricidade, achando que estaria mais seguro no interior. Mud�vamos de vilarejo em vilarejo com o passar dos anos." "Meu pai foi mandado para um campo de concentra��o dentro da Bulg�ria, mas tivemos sorte: todos n�s sobrevivemos."


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Em 1944, o territ�rio b�lgaro entrou dentro da esfera da Uni�o Sovi�tica e um governo comunista foi estabelecido. "Senti que minha vida estava entrando numa torrrente de lavagem cerebral, mas eu lembro com gratid�o dos �timos professores de um escola de S�fia que fizeram o seu melhor em circunst�ncias muito dif�ceis."

Em 1949, a fam�lia Mechoulam resolveu emigrar para Israel.

O caminho para estudar a cannabis

Folha de maconha à frente de imagens de cérebros

O cientista publicou no final dos anos 1960 seu primeiro estudo cient�fico a respeito da cannabis

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Mechoulam come�ou a estudar qu�mica em Israel e come�ou a desenvolver pesquisas sobre inseticidas no Ex�rcito. "Insetos sempre foram uma praga no Oriente M�dio", disse o cientista.

Mais tarde, seu trabalho de doutorado se concentrou na qu�mica sint�tica, mais especificamente no campo de esteroides. "Eu vi nessa pesquisa, que estava bem na fronteira entre a qu�mica e a biologia, algo fascinante. Acredito que a separa��o entre campos cient�ficos � apenas uma admiss�o de nossa habilidade limitada para aprender e entender �reas da ci�ncia diversas. Na natureza, essas divis�es n�o existem."

Ele decidiu estudar cientificamente a maconha ao notar que "nos anos 1960 era um campo quase totalmente negligenciado" que "estava maduro para uma nova investiga��o".

"Havia estudos do s�culo 19 em muitas l�nguas. Como nasci na Europa, tive que aprender muitas idiomas — incluindo franc�s, alem�o e russo — em que estavam escritas a maioria dessas pesquisas. Encontrei e li muitas e muitas publica��es cient�ficas obscuras e esquecidas."

O israelense percebeu que m�todos dos s�culos passados n�o eram capazes tecnicamente de isolar em forma pura os constituintes ativos da cannabis. Era um campo a ser desbravado.


Planta da maconha sendo aparada com tesoura

Pesquisas sobre cannabis t�m muito mais liberdade do que nos anos 1960, quando Mechoulam come�ou seus estudos

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Primeiras pesquisas foram na ilegalidade

A condi��o de subst�ncia il�cita da cannabis era uma grande dificuldade para as pesquisas na �poca em todo o mundo, com a necessidade de ado��o de grandes medidas de seguran�a.

"Mesmo [com uma amostra] obtida legalmente, o trabalho em laborat�rio era um pesadelo", conta.

Mechoulam tentou conseguir material para pesquisa na pol�cia. Um agente ligou para o chefe do departamento de investiga��o — que era um antigo colega do cientista nas for�as armadas israelenses.

"Ouvi o policial perguntar: 'Ele � confi�vel?'."

Com a resposta positiva, Mechoulam foi orientado a se dirigir � capital Tel Aviv onde obteria 5 quilos de haxixe (uma varia��o resinada da maconha), de proced�ncia do L�bano, que haviam sido apreendidos.

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"Peguei um �nibus de volta e nenhum dos passageiros percebeu que o cheiro forte da minha bagagem vinha do haxixe. Mais tarde eu percebi que eu e o chefe de investiga��o da pol�cia hav�amos desrespeitado v�rias leis de narc�ticos do pa�s. O Minist�rio da Sa�de era encarregado de liberar essas subst�ncias, n�o a pol�cia."

Depois, o suprimento do material de pesquisa seria regularizado.

A descoberta do THC

Raphael Mechoulam durante conferência

Raphael Mechoulam durante uma confer�ncia sobre canabinoides

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O canabidiol (CBD), a principal subst�ncia n�o psicoativa da maconha, j� havia sido isolado, mas sua estrutura era ainda pouco conhecida.


O componente vem sendo usado atualmente como base de rem�dios para ansiedade, problemas de sono, dores cr�nicas (embora muitos apontem exageros propagados pelo mercado sobre os poss�veis benef�cios do CBD).

Ele e um colega estudaram a subst�ncia com um equipamento de resson�ncia magn�tica. "A publica��o sobre CBD n�o causou impacto cient�fico. Com o passar dos anos, no entanto, interesse em CDB gradualmente aumentou. Agora [em 2007] existem centenas de publica��es. � um potente agente anti-inflamat�rio."


Ao relembrar esse per�odo, Mechoulam ressaltou o trabalho pioneiro do brasileiro Elisaldo Carlini para descobrir as propriedades antiepilepsia do CBD.

O israelense, no entanto, � lembrado por isolar e batizar o tetrahidrocanabinol (THC), principal composto psicoativo da cannabis que, diferentemente do CBD, "d� barato".

Ele atua no "sistema endocanabinoide" do c�rebro, que s�o receptores que respondem aos componentes qu�micos da cannabis.

Os receptores de cannabis s�o densamente povoados nas �reas pr�-frontais e l�mbicas do c�rebro, envolvidas na recompensa e na motiva��o. Eles regulam a sinaliza��o das subst�ncias qu�micas cerebrais dopamina, �cido gama-aminobut�rico (GABA) e glutamato.

Sabemos que a dopamina est� envolvida na motiva��o, recompensa e aprendizado. O GABA e o glutamato desempenham um papel nos processos cognitivos, incluindo aprendizado e mem�ria.

"Gradualmente cientistas de v�rias �reas perceberam que o campo da cannabis estava pronto para novas investiga��es e desde ent�o h� milhares de publica��es sobre o THC. Vem sendo usado como uma droga terap�utica contra n�useas e para abrir o apetite", afirma Mechoulam. Ele prosseguiu seus estudos para isolar e obter mais informa��es sobre os outros canabinoides existentes na planta.

'Nunca usei maconha'

Em entrevista � revista Culture em 2017, o cientista fez uma revela��o surpreendente: nunca usou maconha. "Como eu fazia pesquisa e t�nhamos um suprimento oficial de cannabis, obviamente se us�ssemos por raz�es n�o cient�ficas e soubessem nossa trabalho seria paralisado. Basicamente, nem eu nem meus estudantes est�vamos interessados nisso."

Mas em entrevista � r�dio BBC veiculada no ano passado, ele contou uma hist�ria diferente: sua esposa fez um bolo de maconha e ele e seus colegas comeram uma fatia com o equivalente a 10 miligramas de THC.

"O THC agiu de forma diferente em cada um de n�s. Um sentou, relaxou e n�o fez nada, outro disse que 'n�o estava sentindo nada' e ficou em sil�ncio por uma hora. Uma amiga sentiu medo, ela achou que sua personalidade estava mudando. Mas t�nhamos um psiquiatra conosco e ela relaxou."

Em seus �ltimos anos, Mechoulam j� havia se aposentado, mas participava de confer�ncias e acompanhava os �ltimos estudos da �rea.


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Em uma entrevista ao blog da BMC, uma editora de publica��es cient�ficas, ele afirmou que o futuro das pesquisas estaria em estudar subst�ncias no corpo humano que agem como endocanabinoides, receptores biol�gicos de subst�ncias como THC e CBD.


"Esses compostos que agem como endocanabinoides devem ter algum papel. Mesmo n�o estando claro, acredito ser poss�vel que os diferentes perfis desses compostos possam ser ao menos parcialmente respons�veis pelas nossas diferen�as em comportamento, talvez uma base molecular para a personalidade", disse.


"Al�m disso, esses compostos talvez tenham um papel na defesa do corpo contra doen�as. � dif�cil de acreditar que o corpo humano n�o possua mecanismos alternativos para lidar com doen�as em que o m�todo anticorpos x ant�genos do sistema imunol�gico n�o seja relevante."


- Este texto foi publicado em
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1085l21ee0o