Claudine Haroche

Claudine Haroche em uma das palestras do Hay Festival, no M�xico

HAY FESTIVAL

 

Vivemos em um mundo r�pido, acelerado, mediado pelas novas tecnologias, onde a premissa � ver e ser visto.

E isso, claro, influencia irremediavelmente a forma como nos relacionamos com os outros e o tipo de sociedade que constru�mos.

Essa � a vis�o de Claudiene Haroche, soci�loga e antrop�loga francesa que iniciou sua carreira no Centro Nacional de Pesquisas Cient�ficas (CNRS) at� se tornar diretora em�rita da entidade.

 

Para ela, se antes havia um sentimento de pertencimento por conta de nossos la�os estreitos e calorosos, agora enfrentamos v�nculos sociais que se caracterizam pelo anonimato frio e pelo isolamento, processo que se intensifica cada vez mais nas sociedades individualistas.

 

 

 

Haroche trabalha com uma abordagem transdisciplinar para compreender como os modos, os comportamentos, os sentimentos e a personalidade podem ter mudado nas sociedades contempor�neas.

 

Claudine Haroche � autora de livros como Hist�ria do Rosto: Exprimir e Calar as Emo��es (1988) e Tiranias da Visibilidade: o Vis�vel e o Invis�vel nas Sociedades Contempor�neas (2011).

A BBC News Mundo, servi�o em espanhol da BBC, conversou com ela durante o Hay Festival Quer�taro, que aconteceu entre os dias 7 e 10 de setembro no M�xico. Confira a entrevista abaixo.

 

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BBC - Voc� diz em seus livros que, ao longo da hist�ria, o ser humano mudou o valor de cada sentido. Se na Idade M�dia o tato e a audi��o eram muito mais valorizados, agora � a vis�o. Isso significa que perdemos o contato com as pessoas?

Claudine Haroche - De fato. Temos muito menos contato com as pessoas mas, ao mesmo tempo, estamos sempre, por exemplo, com o celular, que � t�til. E isso nos d� uma falsa sensa��o de realidade e tato.

� um momento complexo porque perdemos o contato direto com as pessoas, a comunica��o pr�xima, o toque. E, ao mesmo tempo que aumenta a dist�ncia entre as pessoas, cada vez mais nos expomos e nos mostramos � sociedade, ainda que de forma superficial.

Isso nos afeta muito psicologicamente, porque n�o se perde apenas o contato, mas tamb�m a profundidade das rela��es com os outros e com n�s mesmos.

E isso acontece porque a sociedade atual nos pede para estarmos ocupados o tempo todo. Como estamos sempre fazendo algo, nem paramos para pensar, n�o processamos o que nos acontece, entramos no autom�tico. � quase um decreto moral: voc� tem que dizer que est� ocupado o tempo inteiro.

Isso significa n�o pensar no que sentimos, n�o olhar para dentro, o que afeta a nossa sa�de e tamb�m a sociedade.

A sociedade em que vivemos exige que tenhamos muitos la�os, por exemplo por motivos profissionais, mas n�o s�o la�os verdadeiros, t�o importantes para a constru��o de um bom tecido social.

BBC - Quem se beneficia desta ruptura do tecido social, deste isolamento?

Haroche - Os Estados, os governos, o pr�prio sistema atual.

Os espa�os para criar comunidades est�o sendo perdidos. Agora voc� pode assistir a um filme em casa, mas n�o � a mesma coisa que assistir em grupo, com algu�m, e depois conversar sobre o que viu, na presen�a do outro.

As conversas, como j� disse, tornam-se extremamente superficiais. N�o pensar beneficia o sistema.

Reclamo muito do sistema neoliberal, que individualiza muito. E isso torna os indiv�duos muito dependentes. � um paradoxo, porque por um lado o sistema "nos liberta", mas, ao nos tornarmos t�o independentes, ficamos mais isolados e vulner�veis, portanto, mais dependentes.

Neste sistema, a competi��o tem preced�ncia sobre a emula��o. H� uma vis�o muito competitiva das pessoas � qual me oponho. � muito melhor, quando voc� est� em grupo, imitar e brincar de ser voc� mesmo. Voc� aumenta sua criatividade, aprimora sua mente, n�o tenta estar acima do outro. Dever�amos tentar restaurar isso em nossa sociedade.

BBC - Nos seus artigos e livros voc� se refere em diversas ocasi�es ao conceito de sociedade l�quida do escritor Zygmunt Bauman, uma sociedade em constante mudan�a, em permanente transi��o e incerteza. Quais s�o os perigos, na sua opini�o, desta sociedade l�quida?


Claudine

Claudine fala sobre a import�ncia de, num mundo cada vez mais acelerado e veloz, parar e pensar

HAY FESTIVAL

Haroche - O perigo est� dentro do ser humano, no seu espa�o interno, em sua consci�ncia. Voc� tem contatos, pessoas com quem voc� conversa o tempo inteiro, em todos os lugares, nas redes sociais, mas contatos sem profundidade e sem tempo para entrar em si mesmo, para pensar.

E isso leva ao conformismo.

Mas, ao mesmo tempo, o perigo nesta sociedade onde n�o h� limites entre o nosso mundo interno e externo, onde que n�o podemos nos expressar livremente. Nos �ltimos tempos h� cada vez mais pessoas fazendo julgamentos, grupos que te julgam em massa pelo que voc� escreve, comenta. Assim, surge o ass�dio online.

Passou do ass�dio sexual ao ass�dio moral. H� alguns anos se dizia que o ass�dio moral n�o existia, que isso � rid�culo, mas ele existe e � muito importante e perigoso.

Por exemplo, num lugar com tantas regulamenta��es, como as universidades dos Estados Unidos, as aulas agora s�o de "portas abertas" e qualquer um pode reclamar da atitude de qualquer um. Foi feita uma tentativa de regular alguns problemas, mas outros foram criados.

Isso tamb�m fala da atual cultura do cancelamento, algo sobre o qual devemos ser muito cautelosos. � preciso evitar o radical. �, talvez, uma forma de apagar a hist�ria.

BBC - Tudo isso que voc� est� falando est� intimamente relacionado ao uso que fazemos das redes sociais hoje em dia.

Haroche - Isso acontece nas redes sociais porque estamos o tempo todo conectados e pelo tipo de contato que ali se estabelece.

Por exemplo, imagine que uma pessoa busca ter milhares de seguidores em uma rede social. Esta � uma forma de mercantilizar a cultura, tal como Adorno e Horkheimer falaram no s�culo passado com a Escola de Frankfurt.

� uma forma de comercializar tudo, a cultura, a ci�ncia. Mas tamb�m est� deixando uma lacuna perigosa para que possamos "ser produtivos" o tempo todo.

�s vezes somos produtivos, �s vezes n�o. Nesse espa�o devemos permitir que as pessoas desenvolvam livremente as suas mentes e a sua pr�pria capacidade de pensar e, assim, evitar toda a enorme viol�ncia que � gerada nas redes.

H� quem tente resistir, que n�o caia nessa, mas � complicado com a atual sociedade hiperconectada e acelerada.

BBC - Voc� fala de sociedades que vivem no "calor", tendo la�os reais e estreitos, e outras na "frieza", onde predominam a superficialidade e o anonimato. A nossa sociedade � de frieza?

Haroche - Sim, totalmente. Por conta dessa super individualiza��o e da constante falta de contato real entre as pessoas.

Por exemplo, existem diferentes tipos de prote��o na sociedade, como a que um membro da fam�lia pode oferecer. Mas agora, cada vez mais, h� fam�lias monoparentais e isto contribui para a migra��o constante, para o fato de termos de nos deslocar de um lugar para outro e isso pode criar uma falta de prote��o, de desenraizamento.

Por um lado, temos mais liberdade, mas tamb�m menos prote��o quando estamos sozinhos.

� dif�cil ter liberdade, conex�es profundas e prote��o ao mesmo tempo.

Este sistema atual funciona para aqueles que s�o suficientemente fortes para viverem sozinhos, mas � muito dif�cil. Estamos nos tornando cada vez mais uma sociedade superficial.

BBC - Com esse panorama, qual o papel dos sentidos, da sensibilidade e da percep��o hoje em dia?

Haroche - Isto tem tudo a ver com a acelera��o e limita��o que existe na sociedade atual.

H� uma parte muito positiva: por um lado, muitas pessoas est�o ficando muito mais conscientes do seu corpo. Mas, ao mesmo tempo, surge na sociedade uma s�rie de regras e regimes que imp�em limita��es, como m�todos para impedir as mulheres de adquirir conhecimento, de estudar.

Portanto, h� um duplo desenvolvimento na forma como nos percebemos.

H� abertura por um lado, em que as mulheres conquistam cada vez mais espa�os, mas tamb�m h� outros onde aparece uma educa��o mais radical e limitadora. A complexidade entre religi�o e pol�tica � sempre uma trag�dia.


pessoas segurando celular

Estamos conectados por dispositivos, n�o por proximidade ou contato, diz Haroche

Getty Images

BBC - Voc� se refere tamb�m � domina��o hist�rica que as mulheres sofreram, mas tamb�m como os homens sofrem as exig�ncias ou os termos do exerc�cio dessa domina��o.

Haroche - Acredito realmente que hoje devemos exigir do feminismo n�o s� a prote��o das mulheres, mas tamb�m dos homens. Existe uma rela��o entre os dois.

H� sempre uma mistura de homem e mulher dentro de um homem e uma luta nisso.

Voc� v� um exemplo de como os homens sofrem as exig�ncias dessa domina��o na rea��o dos ditadores, por exemplo algu�m como Vladimir Putin, com total falta de humor e obsess�o pela domina��o, domina��o masculina, masculinidade exacerbada. Acontece com Putin, mas tamb�m se v� em Jair Bolsonaro.

As pessoas se tornam dependentes dessa domina��o, num duplo sentido. E n�o sabem como sair dela. Os homens devem ser fortes e, al�m disso, mostrar-se fortes.

Todos os seres humanos t�m medo, mas somos fracos de nascen�a. E � normal que queiramos prote��o, mas o grande problema agora s�o os homens que querem se livrar das mulheres e as mulheres querem se livrar dos homens. � uma radicaliza��o tremenda.

E a quest�o � que � necess�rio ver como olhamos para as nossas identidades, e n�o como confin�-las em termos como "masculino" e "feminino".

BBC - Pelo que voc� diz, n�o estamos buscando prote��o neste momento atrav�s da nossa vulnerabilidade, mas sim expondo uma aparente for�a e frieza.

Haroche - Fingimos que somos fortes, mas n�o somos.

Note-se que um dos elementos do nazismo foi justamente o fort�ssimo desenvolvimento da masculinidade f�sica, a domina��o e o �dio � homossexualidade. Havia muito medo da homossexualidade, entendida por eles como uma fraqueza.

Vemos isso agora tamb�m em muitos lugares, esse medo da homossexualidade, at� mesmo por meio da proibi��o. � um refor�o disso, de frieza e dom�nio versus calor e vulnerabilidade.

Vemos isso em pa�ses como o Afeganist�o, com o dom�nio sobre as mulheres.

� muito complicado mudar esse tipo de sistema de fora, tem que ser feito de dentro. E � dif�cil. � um grande problema. H� muita discuss�o no meio sobre o respeito � cultura, a gest�o dela.

BBC - Voltando ao in�cio, aos sentidos, a dar prioridade ao toque pessoal e ao contato real com os outros: voltarmos ao nosso corpo, � sensibilidade e ao calor, mas, ao mesmo tempo, sem deixar de estar em contato com outras pessoas. � isso?

Haroche - Por um lado, no mundo de hoje temos que tornar vis�vel o nosso pr�prio eu, a nossa vida vis�vel dentro deste mundo t�o conectado.

E isso implica mais tempo nas telas, e menos tempo para a interioridade.

Isso � algo muito problem�tico, porque n�o h� tempo para intimidade, para nos conectarmos verdadeiramente com a nossa diversidade.

Dou como exemplo algo que acontece nos Estados Unidos, onde em muitos lugares, para diminuir o racismo, as pessoas criam um curr�culo neutro, sem foto.

Isto por um lado � bom, mas por outro temos que aprender a diversidade.

Temos que aprender que todo ser humano tem medo, medo do que � diferente. Justamente temos de aprender que somos todos diferentes, mas que conseguimos fazer conex�es, que existem diferen�as que n�o conseguimos compreender plenamente, mas que � preciso entend�-las.

E uma das coisas que pode nos ajudar nisso �, sem d�vida, a conversa. Conversas profundas, conversas reais e profundas.

Outra coisa importante para essa resist�ncia � o humor. � uma forma de resistir a esta acelera��o, a esta dist�ncia.

Voc� v� isso agora com as crian�as, que passam muitas horas nas redes, conectadas, sem contato real com os outros e sem tempo para pensar e refletir. E isso pode fazer com que tenhamos adultos conformistas no futuro.

Assim como � importante que os adultos retornem a essa interioridade, parando, pensando e se conectando com os outros por meio de uma conversa boa e profunda, para as crian�as � essencial uma boa educa��o que as torne capazes de olhar para dentro, sentir e cultivar esse mundo interior.