estudante Anne Carrari

O termo "paliativo", segundo pesquisadores, se origina a partir da palavra "pallium", que era um tipo de coberta, uma manta usada para se proteger

Diego Padgurschi/Ag�ncia Einstein


Em 2015, a estudante Anne Carrari tinha 40 anos e ouviu de um m�dico que teria apenas 20% de chance de estar viva em at� cinco anos. Fazia cerca de um ano que ela havia sido diagnosticada com c�ncer de ov�rio em est�gio 4 – ou seja, seu estado era extremamente grave, a doen�a j� estava bastante avan�ada. “Quando esse � o diagn�stico, se faz quimioterapia paliativa”, conta Carrari, que descobriu o termo “paliativo” em seu tratamento apenas tr�s anos depois da descoberta do c�ncer.

“Eu estava entrando no elevador do hospital para come�ar um novo protocolo de quimioterapia, ia receber a aplica��o naquele dia, quando bati o olho na folha assinada pelo m�dico e estava escrito ‘tratamento paliativo’”, relembra a estudante. 

De in�cio, estranhou. “Ningu�m havia conversado sobre isso comigo at� ent�o”. No senso comum, os cuidados paliativos ainda s�o muito associados ao fim da vida, mas, na pr�tica, servem para oferecer qualidade de vida. “Quando eu me sento na frente de residentes no hospital onde fa�o tratamento, eles ficam em choque”, conta Carrari, que � uma paciente paliativa h� nove anos. “J� fui sentenciada v�rias vezes, j� ouvi que n�o duraria mais de quatro meses, e isso j� tem cinco anos!”



cuidado paliativo, segundo especialistas na �rea, � para qualquer um que tenha uma doen�a amea�adora � vida – ou seja, que coloca a vida em risco – e em qualquer fase do tratamento. “A indica��o � de que as equipes de cuidado se unam desde o momento do diagn�stico”, afirma Regina Liberato, psic�loga especialista em cuidados paliativos e coordenadora do comit� de sa�de emocional da ONG Oncoguia. 

“Ainda existe muito preconceito, mas os cuidados paliativos s�o para qualquer pessoa de qualquer idade e em qualquer momento de uma doen�a que amea�a a vida, n�o apenas para o fim dela”, aponta Liberato. Doen�as cr�nicas, como diabetes e problemas cardiovasculares, al�m de c�ncer, s�o exemplos de diagn�sticos que podem receber cuidados paliativos.

O termo “paliativo”, segundo pesquisadores, se origina a partir da palavra “pallium”, que era um tipo de coberta, uma manta usada para se proteger. Com a evolu��o da l�ngua, virou “paliar” e recebeu o significado de “remediar”. Profissionais de sa�de e pacientes em cuidados paliativos, no entanto, preferem utilizar a palavra com um sentido mais positivo: cobrir o paciente de cuidados. “� uma abordagem estruturada por diversos profissionais que olham para o paciente sob uma �tica biol�gica, psicol�gica, social e espiritual”, explica Liberato.

A Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) define os cuidados paliativos como uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doen�as que ameacem a continuidade da vida, por meio da preven��o e do al�vio do sofrimento. Segundo a organiza��o, a pr�tica requer identifica��o precoce, avalia��o e tratamento da dor, al�m de outros problemas de natureza f�sica, psicol�gica, social e espiritual. Para conscientizar sobre a import�ncia dos cuidados paliativos, a ag�ncia promove o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, anualmente celebrado no segundo s�bado do m�s de outubro.

N�o existe uma lei que regulamente os cuidados paliativos no Brasil, mas existe um Projeto de Lei (PL) para criar um Programa Nacional de Cuidados Paliativos. Em 2022, o PL 2460/22 foi aprovado pela Comiss�o de Seguridade Social e Fam�lia da C�mara dos Deputados. O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem uma resolu��o que estabelece diretrizes para auxiliar os cuidados e tratamento de pacientes que enfrentam a fase final da vida e indica o oferecimento de cuidados paliativos. J� o Minist�rio da Sa�de tamb�m tem uma resolu��o de 2018 que define as normas para oferecimento de cuidados paliativos no Sistema �nico de Sa�de (SUS).

Normalmente, as unidades de sa�de contam com equipes multidisciplinares de cuidados paliativos. O tratamento desse tipo, como a quimioterapia que Anne Carrari fez em 2018, � apenas uma das frentes do cuidado paliativo. “� como um guarda-chuva”, explica Farah Christina, m�dica paliativista do Hospital Israelita Albert Einstein. “� pensar em qualidade de vida”, completa. 

Benef�cios dos cuidados paliativistas

H� relatos de casos e estudos cient�ficos que apontam benef�cios importantes dos cuidados paliativos tanto para pacientes quanto para as equipes de sa�de e instala��es hospitalares. “S�o reduzidos os custos de assist�ncia � sa�de, os pacientes t�m controle melhor de sintomas, redu��o no tempo de interna��o hospitalar, as fam�lias lidam melhor com o luto, e, entre os profissionais, h� redu��o nos casos de burnout”, afirma a m�dica paliativista do Einstein.

Realizar pesquisa para cravar evid�ncias cient�ficas sobre cuidados paliativos ainda � um desafio, diz Christina, uma vez que a abordagem � feita de forma individualizada e varia a cada caso. “� dif�cil realizar estudos controlados e randomizados, j� que cada pessoa experiencia uma doen�a de uma forma, ent�o fica dif�cil medir os efeitos dos cuidados paliativos”, reflete a m�dica. “As pesquisas cl�nicas buscam medir a diminui��o de mortalidade, por exemplo, o que � complicado nesse caso porque o nosso objetivo n�o � reduzir a mortalidade.”

Desde que entrou efetivamente em cuidados paliativos, Carrari afirma ter melhorado sua qualidade de vida. “Para mim, � importante tomar banho de p�, fazer gin�stica, coisas que a quimioterapia me impede de fazer, por isso, para mim n�o vale a pena”, diz a paciente. Foi com a ajuda da equipe de cuidados paliativos que ela conseguiu optar por tratamentos que lhe permitem levar uma vida normal. Sua rotina inclui atividades f�sicas (muscula��o duas vezes por semana e caminhadas di�rias), medita��o, consultas peri�dicas com um oncologista, psic�loga e nutricionista, al�m de outras atividades n�o relacionadas � sa�de, mas que s�o fundamentais para o seu bem-estar.

Diariamente, Carrari faz trabalho volunt�rio na Oncoguia oferecendo suporte para outras mulheres diagnosticadas com c�ncer e enviando perucas para pacientes que perderam os cabelos ao longo do tratamento. Ela tamb�m faz gradua��o em Sa�de P�blica, na Universidade de S�o Paulo (USP), cuida da casa, dos filhos e de seus pets. “Tenho uma vida normal, mas estou vivendo muito intensamente, me considero mais saud�vel do que muita gente que n�o tem c�ncer, �s vezes esque�o que sou paciente”, afirma a estudante.

“Falo que minha vida tem um a.C/d.C, Anne antes do c�ncer e Anne depois do c�ncer. Antes, eu queria agradar todo mundo e vivia no piloto autom�tico, n�o me priorizava, mas depois foi um renascimento, encontrei um prop�sito na vida, n�o importa quanto tempo eu tenho”, diz Carrari.

Seu sonho atual � que todos os hospitais p�blicos tenham equipes paliativas. Para realiz�-lo, sempre que pode ela participa de muitos eventos, como congressos e palestras e mant�m uma p�gina no Instagram (@sobrevivi_ao_cancer_de_ovario) para falar sobre sua doen�a e contar detalhes de sua vida. Assim como a atriz Angelina Jolie, Carrari tem uma muta��o gen�tica chamada de BRCA 1, o que significa que ela tem um risco aumentado para desenvolver c�ncer. “Estou com a doen�a ativa e controlando uma progress�o, ent�o fa�o exames a cada tr�s meses”, conta. “Sou famosa no hospital”, brinca.

Qualidade de vida e de morte

Al�m da qualidade de vida, os cuidados paliativos buscam oferecer tamb�m qualidade de morte. “N�o � um processo para prolongar a morte, mas permitir que ela aconte�a da maneira mais natural poss�vel, no tempo da doen�a e controlando os sintomas do paciente”, explica Christina, do Einstein. 

“A morte � feia, mesmo quando acontece sem sofrimento, ent�o precisamos preparar as pessoas para isso”, defende a especialista. Por isso, os cuidados paliativos se estendem para quem precisa encarar a perda, os familiares, amigos e cuidadores. “N�o termina quando a pessoa morre, a gente acompanha a fam�lia no luto”, diz a especialista.

Para Carrari, conviver com a ideia de morte possibilita que ela encare a finitude e d� valor para o presente. “J� tive mais medo da morte, tenho medo de sentir dor”, diz ela, que tamb�m teme o sofrimento que sua morte causar� para sua fam�lia. Carrari tem tr�s filhos e � casada h� 30 anos. Com orienta��o da equipe de cuidados paliativos, j� deixou documentado como deseja morrer. “Quero ter conforto para morrer em paz, n�o quero morrer sozinha em uma UTI”, afirma. Para ela, os cuidados paliativos s� s�o fornecidos no fim de vida porque n�o h� equipes suficientes para oferec�-los mais cedo.

Antes de ser diagnosticada, a estudante viu sua sogra receber cuidados paliativos por conta do avan�o de um quadro de Alzheimer. “Ela morreu aos 99 anos em casa, sem dor, sem estar em uma UTI”, relembra. Mesmo sem reconhecer ningu�m em volta, a sogra de Carrari teve uma equipe ao seu lado e fam�lia em suas �ltimas horas. “Isso � dignidade para morrer”, reflete.

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Idosos ainda s�o a principal faixa et�ria de pessoas em cuidados paliativos. O perfil mais comum ainda � o de pacientes oncol�gicos, de acordo com os profissionais de sa�de, al�m de pessoas com doen�as neurol�gicas, como dem�ncia, Parkinson e Alzheimer. 

“Quando n�o h� a possibilidade de cura, o paciente fica exclusivamente em cuidados paliativos”, afirma Liberato, da ONG. Ela refor�a que, mesmo sendo associados � morte, os cuidados paliativos s�o para qualquer pessoa que recebe um diagn�stico de doen�a que amea�a a vida, mas que n�o necessariamente vai matar o paciente. “A gente se prepara para o pior, mas espera o melhor”, comenta Christina. “Mas muitas pessoas recebem alta dos cuidados paliativos”, diz.

Em 2006, Liberato foi tanto especialista quanto paciente. Aos 49 anos, foi diagnosticada com c�ncer de mama. “Meu progn�stico, naquele momento, foi um ano de vida”, diz a psic�loga. “Eu vivia como se fosse sempre o �ltimo dia da minha vida. Fui fazer aulas de dan�a, encontrei um grupo de amigos que sa�a frequentemente para conviver e dan�ar, trabalhava todos os dias com prazer, era a vida que eu tinha e fazia quest�o de viver intensamente”, conta Liberato, que trabalha com cuidados paliativos desde 1994. 

Mesmo livre da doen�a, ela ainda se v� como uma pessoa em cuidados paliativos em rela��o ao c�ncer: “Fa�o quest�o de cuidar muito bem de mim, da minha apar�ncia, da minha sa�de f�sica, mental e espiritual. Eu sou a minha prioridade.”