
Pois bem, s�o dois fatos distintos, mas que conversam entre si em tantos pontos que � preciso escolher um para falar. E o que mais em intrigou nesse manancial de loucura � o fato de que o Supremo Tribunal Federal est� julgando, em 2023, se o argumento de leg�tima defesa da honra tem validade!
Eu entrei na faculdade de Direito h� quase 20 anos e, desde os primeiros per�odos, ouvi falar desse argumento como algo do passo obscuro de um processo penal baseado na revitimiza��o e na absoluta desconsidera��o de qualquer direito das mulheres. Esse julgamento do STF me fez sair da minha “bolha” e perceber que o Brasil � muito grande e meu microcosmo (reduzido a tr�s ou quatro), definitivamente n�o reflete a realidade da vida e dos tribunais brasileiros.
Veja que, se o STF est� julgando esse neg�cio, � porque a mat�ria passou por um juiz de primeira inst�ncia ou pelo j�ri (no j�ri, o juiz de direito s� aplica a pena), por um tribunal e eventualmente pelo Superior Tribunal de Justi�a antes de chegar ao STF. Da� ou o juiz de primeira inst�ncia acolheu ou negou, e algu�m recorreu. Percebe? Em algum lugar algo est� muito errado.
E o primeiro lugar que isso est� muito errado � na advocacia! � impressionante como � f�cil criticar o Judici�rio, mas pouco se diz dos membros da advocacia que lan�am m�o de um argumento absurdo desse. No s�culo 21, um advogado que usa um argumento desse para uma tese de defesa deveria ter a sua aptid�o profissional avaliada pela OAB, porque � uma vergonha para a profiss�o.
A advocacia criminal deve ser aplaudida e merecer o devido respeito da sociedade porque � composta por valorosos profissionais que atuam na defesa de um dos bens mais preciosos que o cidad�o pode ter, que � a liberdade. Entretanto, como tudo nesta vida, h� limites. N�o h� direito absoluto a nada e muito menos seria nesse caso.
H� zonas ditas “cinzentas”, onde os posicionamentos ideol�gico, filos�fico ou pol�tico s�o capazes de alterar o entendimento jur�dico, e isso � perfeitamente compreens�vel. J� ultrapassamos a fase de fingir que somos “isent�es” e temos maturidade profissional o suficiente para compreender que lugar de fala � algo inerente ao ser humano.
Entretanto, essa percep��o n�o pode servir de argumento para permitir atrocidades em nome do exerc�cio do direito de defesa. H� limites e aqui entendo que h� limites �ticos que n�o podem ser tolerados.
E o motivo se d� exatamente pelo fato ocorrido nesta segunda em BH, onde uma mulher (mais uma entre tantas que a gente nem escuta falar) foi tratada como coisa por algu�m que lhe retirou o aspecto mais elementar do ser humano: a dignidade.
Veja que, para o Direito Penal, a denominada “res derelictae” � a coisa abandonada e, sendo abandonada, a sua tomada por terceiros n�o � pass�vel de acusa��o criminal. Sacou? N�o d� �nfase ao termo “abandonada”, mas ao termo “coisa”.
A mo�a abandonada foi tratada como “coisa abandonada” e, por isso, dispon�vel para ser subtra�da por aquele que passasse. A leg�tima defesa da honra faz a mesma coisa, posto que trata a integridade e a dignidade da mulher como um atributo de outra pessoa e, por isso, merecedor de interven��o e destina��o de acordo com o seu “dono”.
Ou seja, esse tipo de discurso, de forma nem t�o sorrateira assim, legitima essa percep��o lingu�stica, cultural e comportamental de objetifica��o, que precisa muito ser combatida. E se as institui��es n�o fazem o seu papel, muito menos h� de se esperar que o resto da popula��o assim o fa�a.
Falhou feio a advocacia brasileira e suas institui��es ao permitir, sem se manifestar, que esse tipo de discurso ainda permeie as manifesta��es expressas do exerc�cio do direito de defesa. E essa falha contribuiu (obviamente que n�o de forma direta e muito menos como causa �nica) para mantermos essa bruta realidade que se faz presente todos os dias e em todas as regi�es do pa�s.
As institui��es s�o importantes porque o cidad�o, de regra, vive de forma isolada em um c�rculo social muito restrito. Como acabei de dizer, eu que estudo, vivo e convivo com gente do direito h� quase 20 anos, n�o fazia ideia que esse tipo de argumento ainda era lan�ado nos tribunais do pa�s.
E ainda h� muitas outras bolhas para serem furadas sobre esse tema, que � t�o politizado e, ao mesmo tempo, tratado com t�o pouca seriedade. N�o se trata de agitar bandeiras para lado nenhum, dado que, independente do espectro pol�tico ou filos�fico, este tema deveria ser convergente, pois n�o h� argumento capaz de validar uma situa��o como esta.
O caso aqui � de resguardar o m�nimo que um ser humano pode ter, que � o respeito pelo corpo do outro. � t�o nonsense tratar disso, pois h� na��es (e n�o quero fazer disso uma compara��o, mas uma reflex�o) em que as pessoas n�o precisam se preocupar com bens (coisas) deixadas na rua. Nestes locais, de regra (e � preciso sempre frisar que n�o existe para�so na terra), essas coisas n�o ser�o tomadas por ningu�m, ainda que diante da aus�ncia de vig�lia.
No Brasil, a nossa “dor” � muito pior, pois nem se trata de propriedade, mas de pessoas. Nem as pessoas podem ficar na rua. Se essa pessoa for do sexo feminino, ela n�o pode ficar na rua, andar na rua ou fazer qualquer coisa na rua sem a inseguran�a de que, a qualquer momento, a sua liberdade, dignidade e humanidade possam ser violadas.
� s� mais uma mostra de que estamos falhando miseravelmente como sociedade e � urgente pensar onde estamos falhando e o que podemos fazer para tentar melhorar como povo. O problema disso tudo � pensar que, neste momento, tem gente falando que a culpa � da mo�a que “ca�ou com as m�os” porque bebeu demais...