
O desejo � a maior pot�ncia humana. Belo e assustador, escancara nossas ambiguidades com luz e sombras. Cuidado para n�o confundir com instinto, caracter�stica geral de uma determinada esp�cie. O desejo, ao contr�rio, � aquilo que individualiza as hist�rias, as particularidades de cada sujeito.
Enquanto os instintos nos igualam, os desejos nos diferenciam. Por isso que � dif�cil falar deles, sobretudo quando temos de afian��-los diante da realidade, da cultura. � poss�vel que essa seja a grande miss�o da vida: encontrar um espa�o de afirma��o, sem culpa ou vergonha, de seu pr�prio desejo.
A filosofia pensa o desejo h� muito tempo. Em um primeiro momento, tentou neg�-lo ou desmerec�-lo. Vemos isso com Plat�o, por exemplo, e a primazia da raz�o, mundo intelig�vel, sobre as emo��es e o mundo das sensibilidades. No pensamento medieval tamb�m percebemos essa t�nica, com a fuga do mundo e a ideia de que a verdadeira vida n�o est� aqui, na terra. � com a modernidade e a contemporaneidade que chegamos em outro patamar.
Schopenhauer � preciso ao afirmar que a vida � regida n�o pela raz�o, mas por uma for�a cega, potente, sem responsabilidade de nos agradar a todo momento: o mundo � comandado pela vontade desordenada. Quando essas vontades se chocam, chamamos isso de rela��o humana. �s vezes o encontro � �spero, violento, outras vezes ele tem a for�a do afeto, causa de alegrias.
Com Nietzsche encontramos a forma do desejo sob o nome de vontade pot�ncia, a for�a residente em cada sujeito. Ao neg�-la, cada pessoa deixa de ser um indiv�duo e passa a fazer parte de um rebanho, coletivo amorfo, sem identidade, que sempre caminha sob o comando de um pastor.
O sujeito de desejo � diferente. Ele � forte, se assume como ser em seus acertos e erros, caminhos e err�ncias. N�o carrega culpa de ser quem �. N�o suporta o peso de negar a todo momento uma vida real, fantasiando uma vida ideal. Simplesmente vive. Por isso ele � o Super Homem. H� quem diga que Freud, em sua teoria sobre o desejo, bebeu diretamente nas fontes nietzschianas.
Assusta a pasteuriza��o do desejo causado pelas redes sociais. � com se todos estivessem � merc�, esvaziados de si, procurando saber como algu�m, de fora, vai saber a melhor forma de conduzir essa subst�ncia, interna, �nica e irrepet�vel em cada pessoa.
Mas n�o � s� nas redes que a tentativa de colonizar o desejo alheio acontece. No trabalho, nos espa�os de lazer, na igreja e na fam�lia sempre haver� algu�m querendo legislar sobre a melhor forma que cada indiv�duo deve conduzir sua vida amorosa, suas decis�es pessoais, suas atividades sexuais, seus posicionamentos pol�ticos e seus gostos est�ticos. Pense bem: um outro, que n�o vive a sua vida, autorizado a decidir o que � melhor para voc�?
Como um instrumento musical produzido por um luthier, cada indiv�duo carrega um eco espec�fico de seu pr�prio som. O vazio que nos habita favorece a equaliza��o de uma m�sica �nica. Tentar tapar esse buraco (tarefa fantasiosa e fadada ao fracasso) � um erro contempor�neo. Se a abrir para escutar seu pr�prio desejo � um bom passo. Saber que ele � feito de uma mat�ria singular faz toda a diferen�a.
Mas cuidado: o pior dos autorit�rios � aquele que tenta gerenciar o desejo alheio. Sempre andam por a� gritando: fa�a isso! N�o fa�a aquilo! Acorde mais cedo! N�o durma! Fa�a diferente! Caminhe por onde eu pisei! Descobriram que a rela��o de cada sujeito com seu desejo � complexa e, por isso, tentam vender a facilidade de neg�-lo. L�gico, sempre com ares de bondade e altru�smo, como toda pilantragem que reveste qualquer marketing existencial.
O m�ximo que podemos fazer diante de algu�m, na tentativa de ajud�-lo nessa rela��o conflitante, �, em primeiro lugar, se desnudar de um pretenso poder sobre o outro e, em seguida, colocar-se, com sincera disponibilidade, em uma postura digna para escut�-lo.
No entanto, escutar desejos n�o � tarefa simples. N�o existe a teoria mais eficiente, a t�cnica mais eficaz ou os setes passos do sucesso eterno e imediato. N�o significa atender o outro em todas as suas demandas, mas ajud�-lo na compreens�o e elabora��o daquelas que s�o originalmente suas, separando-as de outras, geralmente depositadas nele – pelo grupo social ou pela fam�lia - de forma falsificada, como um gesto de pirataria tosca.
A disponibilidade para escutar o outro sem a pretens�o de mud�-lo, com essa subst�ncia original que faz dele um ser �nico, � um gesto �tico. Por isso que, diante de n�s, como o mais precioso or�culo, sempre deve estar o aviso moral: cuidado! Ningu�m tem a miss�o de salvar o outro do desejo que � s� dele.