(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas SA�DE MENTAL

Voc� tem nojo de pessoas gordas?

A gordofobia recreativa que norteia o filme 'A Baleia' e nos faz questionar: desprezo ou empatia?


06/03/2023 17:00 - atualizado 06/03/2023 17:19

Brendan Fraser caracterizado de Charlie em 'A baleia'. Ele usa um fat suit e chora com expressões exageradas e desesperadas
(foto: Reprodu��o)

“Voc� me acha nojento?”. Essa � uma das perguntas que Charlie, vivido por Brendan Fraser no filme “A Baleia” (Darren Aronofsky) faz aos outros personagens e, quase sempre, recebe a resposta literal ou velada – no olhar, no medo, no desgosto e no desd�m de estarem perto dele. 

E eu repito essa pergunta: voc� tem nojo de pessoas gordas? 


A �nica maneira de fazer um filme sobre luto n�o elaborado � tentar ‘humanizar’ uma pessoa gorda a partir da humilha��o e do escracho p�blico? 

Pare, pense e responda a si mesmo antes de continuar esse texto. Porque eu falo sobre isso. Eu falo sobre isso o tempo todo e eu SEI que as pessoas t�m nojo de mim, do meu corpo gordo e de tudo que est� relacionado a isso. 

Voltemos ao filme. 

� um filme comovente. � um filme dram�tico. � um bom filme. A atua��o de Brendan Fraser � �tima. � um filme sobre luto, sobre a n�o elabora��o de um luto, sobre compuls�o, sobre sexualidade, sobre religi�o, sobre sonhos, sobre proje��o, sobre fam�lia. Fala sobre os monstros de cada um de n�s e eu adoro escrever a partir da minha pr�pria monstruosidade. � um prato cheio para as quest�es psicanal�ticas que todos n�s temos. 

Mas � tamb�m um filme cujo julgamento moral em cima de um corpo gordo chove no molhado quando a quest�o � desumanizar para chocar.  Em resumo: o filme se utiliza da gordofobia recreativa para tentar humanizar, mas parte da desumaniza��o para isso. 

Charlie � um professor universit�rio que d� aulas de reda��o online, est� vivendo um luto de um companheiro que morreu por anorexia em raz�o de uma quest�o mal resolvida com a religi�o e a sexualidade, e tenta estabelecer la�o com uma filha adolescente que abandonou h� 8 anos e se distrai na compuls�o pela comida, retratada de uma forma grotesca e desumana. 

Vive num apartamento sujo e mal iluminado e est� prestes a morrer em decorr�ncia de problemas de sa�de, al�m de se recusar a ir para o hospital, dizendo n�o ter dinheiro para isso  – o filme se passa nos EUA e, diferentemente do Brasil, l� n�o existe SUS e/ou atendimento p�blico gratuito de sa�de. 

Preciso dizer que seria �timo se o personagem principal n�o fosse tratado o tempo todo como algo monstruoso. At� mesmo a disposi��o das c�meras e o tamanho pensado para a tela sugerem isso. Em cenas de maior emo��o, ele preenche toda a tela e vi espectadores se encolhendo diante do tamanho. 

Confesso que pensei muito antes de ir ou n�o ao cinema assistir, sendo eu uma mulher gorda. O que n�o faltou foi ler que o personagem era pat�tico. E a� eu penso se essa leitura � porque ele � gordo, ou por que, de fato, � pat�tico? Mas ser� que a dor � pat�tica? O luto � pat�tico?

S� por isso, eu j� poderia entrar na discuss�o que pautou boa parte dos cin�filos nas �ltimas semanas, se � ou n�o um filme gordof�bico. Inclusive, j� foi discutido aqui neste ve�culo, tanto na “O preconceito por tr�s da sensibilidade de A Baleia”, como em “Gordofobia volta a ser pauta com o filme A Baleia” e ainda  “Filme A Baleia questiona preconceitos que todos n�s tentamos esconder”

N�o me agrada a forma como o corpo gordo � representado, porque isso valida uma s�rie de quest�es com as quais eu tento lutar diariamente. E eu falo de acessos: ao afeto, ao amor, � sa�de, � vida. 

Elencar as quest�es do filme � um desafio e tanto. O t�tulo, que � uma alus�o ao cl�ssico Moby Dick, � tamb�m uma alus�o ao tamanho de Charlie, que, comecemos por aqui, ganha vida de forma incr�vel com Brendan Fraser. No entanto, fico me questionando se, em toda ind�stria cinematogr�fica, n�o havia um ator sequer, gordo, que pudesse representar o personagem?

O diretor precisou mesmo escolher algu�m n�o gordo e lan�ar m�o do fat suit - t�cnica utilizada para engordar pessoas magras no cinema em pleno 2023? Quando j� discutimos o qu�o ofensivo pode ser fazer blackface e/ou colocar pessoas cisg�neras para interpretar pessoas trans no cinema, mas sequer pensamos que N�O EST� TUDO BEM escolher um ator magro para viver um homem gordo. Temos atores gordos igualmente competentes. Por que n�o escal�-los? Ou n�o havia ningu�m � altura do personagem? Algu�m que topasse? 

� preciso que a gente questione e entenda que, a n�o escolha de um ator gordo, por si, j� � uma pr�tica gordof�bica, haja vista que estamos falando de invisibiliza��o de corpos que j� s�o marginalizados e, num filme que se pretende, em algum momento, tratar dessa bestializa��o, nada mais justo do que empregar e dar chance ao Oscar ao um ator gordo e n�o alimentar, ainda mais, tal exclus�o. Pessoas gordas t�m menos acesso ao mercado de trabalho, sobretudo nas artes e, vet�-las de um papel que poderiam justamente fazer � cruel. 

Tudo no filme � uma alegoria – e sim, sabemos que esse diretor ama alegorias – sobre o corpo gordo. E � tamb�m um lugar comum. Quando voc� imagina uma pessoa gorda, qual a primeira coisa que voc� pensa?

Das conclus�es subjetivas que o drama oferece, o que eu mais ouvi ao sair do cinema foi: � por isso que � preciso cuidar da sa�de, para n�o acabar desse jeito. 

Pois �, o filme traz exatamente isso: um personagem comendo pizza e frango frito de forma desesperada, num sof�, em frente a televis�o. Comendo chocolate ao amanhecer. Embalagens vazias de comida pela casa toda. H� um desprezo no olhar da dire��o em toda e qualquer atividade que o personagem gordo realize. 

Ao assistir, senti como me sinto em grande parte da minha vida: tendo que justificar a minha exist�ncia. Tendo que dizer que tudo bem ser gorda, porque sou saud�vel. Que tudo bem, afinal, eu me amo. Que tudo bem, afinal, aprendi a viver sozinha. Que tudo bem, afinal, sou inteligente. Que sim, sou limpa. Que claro, tomo banho. Que n�o, n�o me atraso para o trabalho. 

E se faz necess�rio eu repetir: nem toda pessoa gorda � compulsiva por comida. Magreza n�o � sinal de sa�de. Pessoas magras tamb�m morrem. 

N�o precisa me dizer nada. Eu sei que no imagin�rio, pessoas gordas s�o pensadas assim. O que me choca � que h� uma cena em que o personagem toma banho. Fiquei surpresa por n�o mostrarem ele tamb�m sem banho, j� que muita gente insinua que gordos n�o tomam banho. 

Segundo a pesquisa mais recente da Federa��o Mundial da Obesidade, at� 2035 ao menos 51% da popula��o do mundo ser� gorda. J� no Brasil, o n�mero � de 57,25%, ou seja, mais da metade da nossa popula��o � gorda. Diante de tais dados, seria de se esperar que as pessoas tratassem melhor as pessoas gordas, mas n�o � o que acontece. 

Muita gente se diz preocupada com a alimenta��o e o aumento no consumo de ultraprocessados, mas isso � assunto para outra coluna, num outro dia. 

Adentrando as camadas do filme, para al�m do corpo que � mostrado de forma a causar repulsa e nojo, temos uma pessoa gorda que, como a maioria de n�s, oferece algo em troca de companhia. Um pai que oferece dinheiro a sua filha para que ela lhe escreva algo honesto. 

Temos um total de uma pessoa preocupada com n�o apenas a sa�de, mas a exist�ncia de Charlie. Liz � sua cunhada que perdeu o irm�o para a anorexia vendo Charlie ir pelo mesmo caminho, mas num mecanismo oposto. Ainda assim, a enfermeira o trata com afeto, tenta reduzir os inc�modos causados pela press�o alta, o alimenta, implora para que ele v� ao hospital e � resiliente quando ele diz que n�o vai. 

Liz � quem d� dignidade e afeto a um corpo que ningu�m ousa chegar perto. � ela quem beija e abra�a o cunhado e sofre com a morte iminente, mas tenta tornar tudo mais tranquilo e menos doloroso para ele. 

H�, ainda, o entregador de pizzas, que parece um sujeito legal e preocupado. Charlie se esconde, deixando o dinheiro da entrega e a gorjeta na caixinha de cartas. E, ao ver a sombra se afastar pela porta, aproxima-se para pegar a comida. Na �nica cena em que eles se veem, o entregador, que at� ent�o tinha minha simpatia, foge, com olhar de nojo e desaprova��o, numa rea��o de ‘susto’ diante da imagem de Charlie. 

Aqui eu penso: o qu�o fora da realidade uma pessoa precisa ser para se assustar com outra por ela ser gorda? O qu�o privilegiada ela � de viver na pr�pria bolha e s� se relacionar com pessoas magras?

Quanto um diretor precisa odiar a imagem de pessoas gordas para escrever uma cena como essa? Se Charlie j� era deprimido por ter apostado numa rela��o com um homem que morreu v�tima da anorexia, imagina diante de um tratamento de desprezo t�o intenso e imenso?

N�o venha falar de autoamor e autoaceita��o. Todo mundo precisa de afeto – que n�o seja nojo, �dio ou raiva – para seguir existindo no mundo. E o personagem Charlie nada, feito uma baleia desgarrada, em busca de algu�m que lhe ou�a. Me lembra muito o que pratico aqui, semanalmente, escrevendo essa coluna: eu s� quero ser ouvida. 

Eu n�o quero que voc� me diga que sua preocupa��o � com a minha sa�de, que eu vou terminar como o Charlie se “n�o me cuidar”, que eu preciso me amar o suficiente. Eu quero que voc� sente, me olhe, me pergunte e me ou�a dizer sobre meus lutos. Isso melhora minha sa�de. E � sobre isso que voc� deve/ou deveria se preocupar. 

Como bem nos lembra a ativista feminista e gorda Lola Aronovich, em sua cr�tica sobre o filme, a Aubrey Gordon disse: “tudo que lembra como � tr�gico ser gordo, e como � superior ser magro”. Eu mesma j� falei sobre isso aqui, no texto “A superioridade das pessoas magras”e no “Por que voc� maltrata pessoas gordas?”. Falei ainda no “Voc� tem empatia com quem sofre opress�o?” 

Ou seja: estou falando disso h� anos por aqui. H� pessoas falando sobre isso diariamente no Brasil e no mundo e a �ltima coisa que a gente precisa � de gente dizendo que o filme � de utilidade p�blica, porque incentiva as pessoas a emagrecer. S�rio?

Houve quem chorasse durante o filme. H�, claro, quem se identifique com a escrotid�o que � cometida com o personagem. Mas isso me faz lembrar muito sobre o “12 anos de escravid�o” e ainda sobre “O Conto da Aia”. S�o obras que colocam o sofrimento de pessoas oprimidas em primeiro plano. Em “12 anos de escravid�o” temos in�meras cenas de um corpo preto sendo a�oitado. Sabemos que h� um gozo nessa pervers�o de ver o outro sendo subjugado. � o que chamamos de racismo recreativo. A mesma coisa em “O Conto da Aia”, em que mulheres s�o submetidas a viol�ncias terr�veis, como o estupro, na tela. Eu mesma, n�o dei conta de assistir, dado o mal estar. 

� ok, ent�o, bestializar uma pessoa gorda, animalizando-a como uma baleia, em tela extensa, para que quem est� assistindo pense na gordofobia que comete? Ou o filme � s� mais um endosso para que digam: “mas eu s� estou preocupado com a sua sa�de”. Para mim, � um a�oite ver o personagem sem conseguir andar, sem conseguir se mover, mas comendo enlouquecidamente at� vomitar. 

Em momento algum, boa parte dos espectadores, conseguem entender que a sa�de em jogo ali n�o � a f�sica, mas a mental. 

Eu fiquei exausta de esbarrar em coment�rios como: “ser gordo tudo bem, mas o personagem sofre de obesidade m�rbida”. E quer saber? Eu, segundo o IMC, os m�dicos, etc, tenho obesidade m�rbida. E, pasmem. Eu fa�o tudo que uma pessoa magra faz – e n�o que eu deva dar essa carteirada, tampouco a da sa�de, mas � importante lembrar que � poss�vel ter o que chamam de obesidade m�rbida e viver uma vida. 

E n�o, n�o estou ‘romantizando’ o fato do protagonista do filme n�o conseguir andar ou fazer atividades b�sicas em raz�o do peso. Mas, essa n�o � a quest�o central. Antes de pesar 270 kg, em algum momento, ele pesou 100 kg. E a� talvez esteja o pulo do gato. O que o levou a uma vida reclusa, compuls�ria e sem desejo de tratamento m�dico?

No meu caso, posso dizer hoje que sim, a sa�de f�sica est� OK. J� a mental � desgra�ada e eu fa�o acompanhamento psiqui�trico e psicanal�tico h� anos para dar conta do chorume que a gordofobia produz e provoca na subjetividade de uma pessoa gorda. 

Seria muito ‘mais f�cil’ se eu emagrecesse? Talvez! Mas e se eu estou bem, por que deveria? 

E nesse embate, eu sigo aqui, concentrando todo meu �dio de uma sociedade extremamente gordof�bica na minha escrita e, tal qual era o desejo do personagem, segue para voc�s: TOTALMENTE HONESTA. 

Falando em honestidade, h� uma camada que fica muito escondida no filme, mas que trata da religi�o e da moral diante da sexualidade. O personagem Thomas (Ty Simpkins) � um mission�rio religioso que quer evangelizar Charlie a todo custo e, cheio de moral, questiona a orienta��o sexual do protagonista, mas tamb�m declara nojo do seu corpo. 

O moralismo evang�lico julga, pune e condena o personagem pelas escolhas feitas, mas reafirma que, se ele aceitar a palavra de Deus, ter� sua alma salva, j� que est� prestes a morrer. 

H� aqui uma quest�o n�o resolvida. Um ponto sens�vel que passa a mensagem de que, caso escolha viver um grande amor fora das normas que s�o reguladas pela igreja e/ou pela sociedade, seu fim pode ser como o de Charlie – com um corpo gordo e doente – ou como o de Alan, seu companheiro – um corpo magro e sem vida. 

Ainda no que diz respeito � moral, o filme se encaminha para um final que d� pena em quem assiste. E, longe de mim querer que sintam pena de mim. Eu quero que entendam como a vida da pessoa gorda � dif�cil, n�o porque ela � gorda e/ou n�o teria sa�de, mas porque o �dio gratuito e o nojo que sentem impossibilita qualquer imagin�rio de futuro saud�vel – e n�o estou falando de corpo. 

O filme faz o espectador sentir um dos que considero os piores sentimentos – d�. E n�o h� reden��o. N�o h�, sequer, um aprofundamento nas quest�es que provocam e causam depress�o em algu�m de luto – e est�o al�m da quantidade de pizza di�ria que essa pessoa come. 

Em tese, o que leva o personagem ao fracasso n�o � o corpo gordo, mas um luto que ele sofreu, cujo companheiro morreu com anorexia em raz�o de uma moral religiosa e a sexualidade

Quem se atenta para isso? 

Ao final, o personagem Charlie, que � um personagem bom,  diz que “as pessoas s�o incr�veis”. Eu queria acreditar muito nisso. Mas sou movida a �dio. Sei que elas s�o s� crueis e gordof�bicas.  

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)