
Se este encontro fosse presencial, convidaria voc� leitor(a) para dentro da minha cozinha, ou talvez para debaixo de uma mangueira, lugar, para mim, de troca de saberes e sabores, de afago e aconchego. Como tudo � poss�vel na nossa imagina��o, o(a) convido(a) a elevar seus pensamentos, “bora”, subir as ruas, becos, escadas e vielas da favela do Morro do Papagaio, regi�o centro sul de Belo Horizonte e adentrar a minha cozinha.
Seja bem-vindo(a)! Chego a sentir o cheiro dos condimentos e dos temperos diversos que adoro usar no preparo dos alimentos, j� escuto a chula e o miudinho sendo tocados, a viola carinhosamente dedilhada e os tambores vibrando um samba de amor. Enquanto o alimento � preparado, a nossa prosa discorre sobre os mais variados assuntos: as indaga��es pol�ticas, os causos corriqueiros, as conquistas individuais e coletivas, a viagem de uma amiga, a formatura de um vizinho, a transforma��o do carnaval da cidade, a rede solidaria da favela e por a� vai, os assuntos s�o muitos.
O ambiente da cozinha dentro de uma casa de favela ou de um quilombo traz heran�as ancestrais e, assim, como s�culos atr�s, desempenham um papel fundamental. Durante o criminoso per�odo escravocrata, as m�es negras eram respons�veis pela alimenta��o da fam�lia escravizada e, muitas vezes, eram as �nicas a ter acesso aos alimentos, mas ali tamb�m era espa�o de resist�ncia e troca de informa��o, e sobretudo espa�o de manter viva as tradi��es e a identidade, esperan�ar e organizar a luta pela liberdade. Muitas das tradi��es culturais do Brasil s�o mantidas e evolu�das na cozinha, como � o caso do Samba, que encontra inspira��o e se renovava diariamente, demostrando como a culin�ria e a m�sica est�o interligadas.
Al�m disso, a cozinha desempenha um papel social de extrema relev�ncia, haja visto as cozinhas comunit�rias espalhadas pelas favelas do Brasil afora e que, durante a pandemia causada pelo novo coronav�rus e/ou nas enchentes provocadas pelas fortes chuvas, desempenharam e continuam desempenhando papel crucial para alimentar milhares de fam�lias tendo as mulheres como lideran�as a frente desta miss�o. A cozinha tamb�m representa lugar de fala importante, de pensamentos intelectuais, de cria��o de projetos, de experimentar, de cria��o de c�digos, de ocupar espa�o.
Sobre a import�ncia de ocupar espa�o, cito uma das mais importantes intelectuais do feminismo negro, Lelia Gonzales. Para Gonzales, ocupar espa�o constitui ocupar o lugar que lhe � devido na sociedade, e isso � essencial para garantir a igualdade de g�nero e o empoderamento das mulheres. � importante que as mulheres estejam presentes em todas as esferas da sociedade, incluindo a pol�tica, a economia e a cultura. De acordo com ela, ao ocupar espa�o, as mulheres conseguem mudar a hist�ria e colocar em pauta assuntos importantes, como a viol�ncia contra as mulheres, a discrimina��o de g�nero, a desigualdade salarial.
Cito, tamb�m, outra importante feminista, Patricia Hill Collins. Para ela, ocupar espa�o exprime reivindicar o direito � exist�ncia e � presen�a, tanto na sociedade quanto na cultura. Ela acredita que ocupar espa�o � uma forma de resist�ncia contra as estruturas opressivas e as narrativas dominantes, e que ao faz�-lo, as pessoas negras podem lutar contra o racismo e a desigualdade racial e afirmar sua exist�ncia. � neste espa�o sustent�vel, onde quem n�o cozinha, se alimenta, lava, limpa, toca, dan�a, escreve. � a partir deste ambiente acolhedor que me apresento a voc� leitor(a), e digo que estaremos juntos �s segundas-feiras.
Ocupo este papel ativo na sociedade para prosear sobre os mais variados assuntos. Eu sou mulher negra, filha de Luzia Alencar e Manoel Alencar, irm� de Eduardo e Elis�ngela, m�e de Dara Ayana e esposa de Francis Santos. Nasci em Belo Horizonte, criada na favela do Morro do Papagaio. Vou compartilhar um pouco aqui com voc� aspectos que considero importantes da minha cria��o.
Meus pais me ensinaram desde pequena a me colocar e a ter meu lugar de fala. As conversas mais s�rias, os conselhos, os pux�es de orelha, eram ao redor da mesa, onde faz�amos nossas refei��es. A cozinha sempre esteve presente e meu pai e minha m�e tinham como regra que ao menos uma das refei��es tinha que ser juntos. Deste modo, compartilh�vamos nossas viv�ncias.
Cresci livre: para muitos daqueles anos 90, uma garotinha n�o podia brincar de pipa, carrinho de rolim�, bolinha de gude, finc�o, carinho, mas eu podia e brincava. Era, inclusive, ensinada e estimulada pelo meu pai, presen�a importante para minha afirma��o. Pude correr a favela inteira nas brincadeiras de pega-pega, subir em �rvores e, sim, fui chamada de “machinho” muitas vezes por isso.
Com os meus pais, aprendi a solidariedade: sempre tinha comida para quem precisava, ou um cantinho para quem vinha do interior e n�o tinha onde ficar at� se organizar na cidade grande. O espirito coletivo tamb�m herdei deles, que recebiam os amigos para jogar truco, os vizinhos para assistir televis�o, os primos e tias eram acolhidos quando por algum motivo se desentendiam com os c�njuges, ou simplesmente para um almo�o em fam�lia.
Car�ter e respeito foi me ensinado desde cedo e foram, inclusive, as �ltimas palavras ditas a mim antes da partida do meu pai para outro plano espiritual. Ele disse: “filha, o car�ter e o respeito s�o base para tudo na vida", ensinamentos que passo hoje para minha filha.
Sou apaixonada pela vida, entusiasta pela busca do conhecimento, sou potente e grata ao universo.
Meus pais me ensinaram desde pequena a me colocar e a ter meu lugar de fala. As conversas mais s�rias, os conselhos, os pux�es de orelha, eram ao redor da mesa, onde faz�amos nossas refei��es. A cozinha sempre esteve presente e meu pai e minha m�e tinham como regra que ao menos uma das refei��es tinha que ser juntos. Deste modo, compartilh�vamos nossas viv�ncias.
Cresci livre: para muitos daqueles anos 90, uma garotinha n�o podia brincar de pipa, carrinho de rolim�, bolinha de gude, finc�o, carinho, mas eu podia e brincava. Era, inclusive, ensinada e estimulada pelo meu pai, presen�a importante para minha afirma��o. Pude correr a favela inteira nas brincadeiras de pega-pega, subir em �rvores e, sim, fui chamada de “machinho” muitas vezes por isso.
Com os meus pais, aprendi a solidariedade: sempre tinha comida para quem precisava, ou um cantinho para quem vinha do interior e n�o tinha onde ficar at� se organizar na cidade grande. O espirito coletivo tamb�m herdei deles, que recebiam os amigos para jogar truco, os vizinhos para assistir televis�o, os primos e tias eram acolhidos quando por algum motivo se desentendiam com os c�njuges, ou simplesmente para um almo�o em fam�lia.
Car�ter e respeito foi me ensinado desde cedo e foram, inclusive, as �ltimas palavras ditas a mim antes da partida do meu pai para outro plano espiritual. Ele disse: “filha, o car�ter e o respeito s�o base para tudo na vida", ensinamentos que passo hoje para minha filha.
Sou apaixonada pela vida, entusiasta pela busca do conhecimento, sou potente e grata ao universo.
O titulo parafraseia a m�sica do saudoso Zeca Pagodinho: “Quem � ela?”
Eu Sou Patr�cia Alencar, e ser� um prazer estar com voc� neste espa�o de troca a partir de agora.
