
H� pouco mais de 2 meses escrevi sobre um m�dico de MG injusti�ado pela imprensa, ap�s complica��es decorrentes de uma cirurgia. N�o me agrada retornar ao assunto em t�o pouco tempo, mas a gravidade da ocorr�ncia da semana passada em Teresina/PI demanda uma forte rea��o de todos que se preocupam com a situa��o, pois desta vez a consequ�ncia foi fatal.
A v�tima � um dedicado cirurgi�o pedi�trico de 50 anos, com mais de 20 mil procedimentos de sucesso realizados na carreira. Seu pai foi um pediatra de brilhante carreira no estado do Piau�, um dos profissionais mais renomados de sua gera��o. Em fevereiro deste ano o m�dico foi o respons�vel pelo procedimento cir�rgico de uma paciente de 6 anos de idade, que sofria com insufici�ncia renal grave e fazia hemodi�lise.
O inqu�rito conduzido pela pol�cia civil foi conclu�do em 23 de junho, com o indiciamento do m�dico por homic�dio culposo. Cinco dias depois, a imprensa noticiou amplamente o caso, ap�s ter acesso ao inqu�rito (possivelmente de forma il�cita). Como de costume, o caso foi amplamente divulgado equiparando o m�dico a um homicida, jogando no lixo uma bela hist�ria constru�da por duas gera��es daquela fam�lia, na pediatria. No dia seguinte, o cirurgi�o foi encontrado sem vida em seu apartamento, vitimado pela ang�stia e injusti�a. O m�dico, que seguia os passos do pai com uma brilhante carreira de altru�smo e dedica��o aos pacientes mais jovens, se foi, deixando para tr�s esposa e 2 filhos.
Em primeiro lugar, � preciso esclarecer que a medicina n�o � uma ci�ncia exata, e que complica��es cir�rgicas n�o s�o sin�nimo de erro m�dico. O cirurgi�o n�o possui total dom�nio sobre o desfecho de uma cirurgia, sua obriga��o � utilizar a melhor t�cnica visando o melhor resultado, exatamente o que o foi feito no presente caso. A complica��o ocorrida � apontada pela literatura m�dica como um dos principais riscos do procedimento (sobretudo no caso da paciente, que conforme relatos possu�a uma diferen�a anat�mica que pode ter contribu�do para a ocorr�ncia).
Em segundo lugar, precisamos relembrar que o m�dico goza da presun��o de inoc�ncia, como qualquer outra pessoa. O erro precisa ser provado, e nunca presumido! Um inqu�rito policial n�o prova absolutamente nada, � somente um procedimento inicial e unilateral (sem defesa ou contradit�rio) onde a autoridade policial colhe ind�cios, para serem submetidos � justi�a. A culpa somente pode ser apurada em um processo judicial, com ampla defesa e contradit�rio. Somente ao final da a��o (e esgotada a via recursal) algu�m pode ser declarado culpado (e nem sempre isso ocorre, pois no Brasil, j� existem pessoas “descondenadas”).
Portanto, ser indiciado pela pol�cia, em hip�tese alguma, � sin�nimo de condena��o ou culpa. Isto s� representa a mera opini�o de um delegado, que via de regra, pouco entende sobre o assunto. Por este motivo o inqu�rito deve correr sempre em sigilo, evitando constrangimentos indevidos e fatalidades, como a presente. Muito embora, em muitos casos, este sigilo seja quebrado pela pr�pria autoridade policial, que chega a promover coletivas para a imprensa para ter 15 minutos de fama, destruindo ilicitamente reputa��o e a sa�de mental alheia, e indiciando investigados sem a exist�ncia de ind�cios, baseadas somente em sua absoluta ignor�ncia sobre o assunto.
Ap�s a fatalidade, foram emitidas in�meras “notas de rep�dio” por parte de diversas institui��es de classe da �rea m�dica. Atitude louv�vel, sem d�vidas! Mas sinceramente, penso que de forma geral, as entidades de classe deveriam refletir sobre o lament�vel atraso com o qual costumam manifestar seu apoio os m�dicos que passam por situa��es an�logas.
Em alguns casos igualmente cr�ticos, a �nica coisa que os m�dicos recebem das entidades que os representam, � um ensurdecedor sil�ncio. Negligenciam a prerrogativa de se posicionar em defesa do m�dico quando � necess�rio (por conveni�ncia) e depois de uma fatalidade se posicionam (por politicagem). Isso precisa mudar!
H� casos ainda piores, nos quais o m�dico � covardemente massacrado pela imprensa e redes sociais, e alguns conselhos se limitam a informar publicamente: “uma investiga��o foi instaurada, estamos apurando.” Com isso, ratificam (ainda que indiretamente) a condi��o do m�dico, de acusado e investigado, agravando a situa��o. E a �nica defesa das v�timas acaba vindo por parte de colegas m�dicos (como diretor do Hospital Universit�rio da UFPI, no presente caso) e de pessoas comuns (como eu, e muitos outros) que sequer conhecem a v�tima, mas se sensibilizam com a situa��o e decidem arriscar seu pr�prio nome, se posicionando em defesa de outro ser humano.
Fatalidades como a presente precisam gerar uma grande reflex�o, sobretudo por conta do papel de atores principais que imprensa e a pol�cia tiveram, quando na verdade, deveriam zelar pelos direitos dos cidad�os. Contudo, agem de forma contr�ria, construindo narrativas absurdas de forma totalmente irrespons�vel. E o m�dico, que via de regra � t�o v�tima quanto o paciente nestes casos, � condenado sumariamente e apedrejado pela sociedade, atrav�s das redes sociais.
Casos como este precisam ser abordados pela imprensa e pelas autoridades de forma isenta e profissional, livre do preconceito e do estigma com o qual constantemente perseguem os m�dicos. Atualmente, a maior taxa de suic�dio mundial ocorre entre os m�dicos, alcan�ando o dobro dos �ndices da popula��o geral. Nossa sociedade massacra covardemente a sa�de mental dos m�dicos, mas cobra deles algo quase divino, com cada vez mais amor e empatia. Quem cuida dos pacientes est� doente por culpa da pr�pria sociedade, e essa l�gica precisa ser revista com urg�ncia.
A grande ironia � que, a imprensa s� publica todo esse lixo, porque a nossa sociedade o consome com avidez. Trata-se de um deprimente ciclo vicioso, pois os ve�culos de informa��o que mais ganham engajamento e likes, s�o justamente os que mais massacram pessoas inocentes. E a nossa sociedade, cada vez mais doente, tortura cruelmente a sa�de mental da v�tima do dia, sem pensar que amanh�, o alvo pode ser um de seus entes queridos. Precisamos debater este assunto e combater esta nociva cultura, antes que o dano seja irrevers�vel.
Por fim, n�o deixa de ser interessante notar que, no caso do �bito da paciente, a pol�cia e a imprensa n�o hesitaram em acusar publicamente quem imaginavam ser o culpado, antes mesmo de qualquer possibilidade de defesa, julgamento ou condena��o. Contudo, no caso da fatalidade do m�dico… reina o sil�ncio! As autoridades policiais e imprensa seguem cautelosos, investigando com todo o sigilo que a lei imp�e, e sequer revelaram publicamente a causa do �bito. A cautela � total, para n�o violar os direitos dos envolvidos e eventuais culpados. Quanta conveni�ncia…
- Renato Assis � advogado, especialista em Direito M�dico e Odontol�gico h� 16 anos, conselheiro jur�dico e cient�fico da ANADEM e fundador do escrit�rio que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o pa�s.
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