
Nas primeiras horas da manh� do �ltimo 7 de julho, os jornais de todo o mundo noticiaram o assassinato do presidente haitiano Jovenel Mo�se e os graves ferimentos da primeira dama, Martine Mo�se. A not�cia chocava pela viol�ncia do ato, mas pouco surpreendia. A instabilidade pol�tica no pa�s � mais recorrente que estabilidade pol�tica.
Um cen�rio, quase an�logo, h� 106 anos, o assassinato do presidente haitiano, Jean Vilbrun Guillaume Sam (o 6º chefe de estado, em quatro anos) em julho de 1915, levou o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, a enviar milhares de fuzileiros navais ao Haiti para, supostamente, manter a ordem - e por l� ficaram at� 1934.
A retirada norte-americana n�o foi acompanhada pelo fim da influ�ncia econ�mica e pol�tica dos ianques sobre o vizinho caribenho nas d�cadas seguintes. Isso explica o apoio dos EUA � ditadura Duvalier. O anticomunismo do ditador serviu de justificativa, principalmente, ap�s a Revolu��o Cubana (01/01/1959), que havia ocorrido exatos 155 anos depois da independ�ncia haitiana (01/01/1804).
As mudan�as geopol�ticas globais dos anos 80 somadas �s tens�es sociais, crises econ�micas, corrup��o, juntamente com a deteriora��o da ordem constitucional levaram ao fim da tr�gica experi�ncia que ocorreu no pa�s durante a Guerra Fria.
Mas a esperan�a depositada em Aristide n�o durou muito e, em 2004, foi obrigado a se retirar do pa�s sem que deixasse um cen�rio mais est�vel. O desenvolvimento de grupos de poder n�o democr�ticos e as incertezas sociais e pol�ticas foram fundamentais para que a ONU aprovasse uma Miss�o de Estabilidade no Haiti (MINUSTAH).
A Miss�o de Estabilidade foi autorizada com a participa��o de milhares de soldados e policiais civis. O Brasil contribuiu com o maior contingente de tropas para a MINUSTAH. Durante 13 anos, o Brasil esteve � frente da miss�o de paz da ONU no pa�s (2004-2017).
A busca, principalmente, por uma vaga no Conselho de Seguran�a da ONU levou o ent�o Presidente Lula a assumir essa responsabilidade. O General Augusto Heleno, atual ministro-chefe do Gabinete de Seguran�a Institucional (GSI), foi primeiro comandante da miss�o.
Mas as den�ncias de abusos cometidos pela for�a de paz, a manuten��o da viol�ncia e a impunidade no pa�s levaram a ONU a pedir uma altera��o do comando do ex�rcito brasileiro no Haiti. Com um certo constrangimento, o Presidente Lula substituiu o General Augusto Heleno, em setembro de 2005. Para muitos, a partir da� o general veio a se tornar um ferrenho militante antipetista. Seu sucessor, o General Urano Bacellar, suicidou-se quatro meses depois, durante o exerc�cio de chefia da miss�o.
Apesar da instabilidade em que o pa�s vivia, em 2006 (ap�s as tentativas fracassadas de realizar as elei��es dos anos anteriores), Rene� Pr�val foi eleito presidente, com pouco mais de 51% dos votos. Pr�val encontrou um pa�s descapitalizado. As promessas externas de apoio financeiro n�o se haviam concretizado.
Segundo ele, em um pronunciamento na Assembleia Geral da ONU, o capital da ajuda financeira beneficiava mais as corpora��es e fornecedores dos pa�ses de origem desse dinheiro, com os acordos que eram firmados, que o pr�prio Haiti. Poucos desses recursos chegavam, de fato, aos haitianos.
Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto de 7.0 na Escala Richter matou, aproximadamente, de 230.000 pessoas, feriu mais de 200.000 e deixou mais de 1,5 milh�o de desabrigados. Estimava-se que cerca de 3 milh�es de pessoas viviam na capital, Porto Pr�ncipe. Este terremoto, considerado o pior desastre da hist�ria do Haiti, agrava, ainda mais, as condi��es socioecon�micas internas.
Assim que a trag�dia ocorreu, os EUA viram a oportunidade de grandes ganhos e assumiram a reconstru��o do pa�s. Os norte-americanos j� buscavam investir no pa�s, atra�dos pela m�o de obra barata, principalmente, para o setor t�xtil. O governo dos EUA enxergava grandes possibilidades financeiras. Em mente, sempre, os lucros que poderiam ser obtidos pelos investidores.
Quando o presidente Pr�val tentou aumentar a hora de trabalho de 0,22 para 0,62 centavos de d�lar, funcion�rios da Embaixada dos EUA, apoiados por Hillary Clinton, ent�o Secret�ria de Estado do governo Obama, pressionam o governo para impedir o aumento, alegando que desencorajaria os investimentos. Sob press�o, o governo aprovou um novo acordo que estipulava a hora de trabalho em 0,38 centavos de d�lar!
O Haiti continuava em ru�nas, desemprego e doen�as se alastravam pelo pa�s. A miss�o da ONU permanece no pa�s depois da destrui��o provocada pelo tremor. O �nus herdado dessa miss�o foi devastador para a sofrida popula��o. A ONU disseminou uma doen�a desconhecida na ilha, o C�lera se espalha entre os haitianos.
A doen�a foi levada pelas miss�es da ONU para o pa�s. A comitiva nepalesa � acusada de ser a transmissora da doen�a. O c�digo gen�tico do embri�o encontrado no Haiti � similar ao encontrado no Nepal. Estima-se que 50 mil haitianos morreram de c�lera. A doen�a nunca havia sido registrada no pa�s.
Assim, como ocorreu recentemente no Brasil com a pandemia da Covid-19, a chefia da ONU e o controle da doen�a cabiam aos generais do Brasil. Os respons�veis pelo controle da doen�a foram, totalmente, ineficazes. A falta de responsabilidade e efici�ncia do ex�rcito brasileira na �rea da sa�de � antiga. Como dizia Caetano, o Haiti � aqui.
As elei��es conturbadas ocorreram onze meses depois: mesmo com o pa�s destro�ado ap�s o terremoto, o Haiti realizou a elei��o presidencial. Centenas de milhares ainda estavam desabrigados e os locais de vota��o em ru�nas, mas os Estados Unidos e seus aliados estavam pagando pela elei��o e insistiram que ela continuasse. O processo foi um caos no primeiro turno, com motins nas ruas e candidatos acusando uns aos outros de manipula��o e fraude.
A confus�o eleitoral aumentou as frustra��es dos americanos com Pr�val; eles culparam sua recalcitr�ncia e ceticismo sobre a interven��o estrangeira pelo lento ritmo de reconstru��o.
A embaixada dos EUA ati�ou a chamas abertamente, dizendo que os resultados eleitorais oficiais conflitavam com uma pesquisa patrocinada pela Uni�o Europeia. As autoridades americanas, ent�o, pressionaram Pr�val a tirar o candidato de seu partido do segundo turno e substitu�-lo por Michel Martelly, que havia ficado em terceiro lugar no primeiro turno.
Martelly, um cantor pop bastante popular, que j� foi caracterizado como o favorito dos bandidos que trabalharam em nome da odiada ditadura da fam�lia Duvalier, antes de seu colapso em 1986, foi a escolha de Washington para vencer. Pressionado, o Presidente cedeu aos interesses dos EUA e Martelly saiu vitorioso. Hillary Clinton teve um papel fundamental nos resultados dessa elei��o ao impedir que a popula��o escolhesse livremente seus l�deres.
Michel Martelly apoiava, entusiasticamente, projetos de investimentos externos e mostrava-se tamb�m receptivo � orienta��o de pol�ticos estrangeiros na condu��o do seu governo, a "tempestade perfeita" para os interesses de Clinton no Haiti. Durante seu governo, muitas obras foram realizadas, mas era acusado de beneficiar a elite e de se afastar das comunidades mais pobres.
No poder, Martelly nunca realizou uma elei��o. Quando saiu, apenas 11 l�deres haviam sido eleitos por voto popular. Seu governo era descaradamente corrupto (foi acusado de desviar capital destinado � reconstru��o do pa�s) e a maioria dos aliados estava envolvido em a��es criminosas, que iam de tr�fico de drogas a sequestros. Os que se opunham ao regime desapareciam, misteriosamente. Martelly criou uma rede de tr�fico, abuso de poder e impunidade.
Em 2016, o presidente foi obrigado a renunciar, mas escolheu a dedo seu sucessor, Jovenal Mo�se, assassinado agora em julho. Seu mandato seria de cinco anos, mas chegou ao poder um ano depois, em 2017. Nesse mesmo ano foi acusado de lavagem de dinheiro.
O atraso do in�cio do seu mandato, garantia, segundo Mo�se, o direito de permanecer mais um ano no poder. Seus opositores discordavam. O presidente governava por decreto desde o in�cio de 2020, depois que adiou as elei��es legislativas. O mandato que se encerraria em 2021 foi estendido por um ano, com o apoio do Departamento de Estado dos EUA. Uma tentativa de retir�-lo do poder resultou em algumas dezenas de presos.
O coronav�rus agrava ainda mais o cen�rio (o Haiti n�o aplicou, at� hoje, uma �nica dose da vacina). O caos afunda o pa�s � medida que as gangues (que o pr�prio presidente criou para espalhar o medo e evitar as manifesta��es) se disseminavam pela capital, Porto Pr�ncipe.
Desde ent�o, uma crise constitucional, marcada por violentos confrontos entre gangues, explodiu no pa�s mais pobre do Hemisf�rio Ocidental. O presidente tentava mudar a constitui��o do Haiti, com novas cl�usulas que poderiam alicer�ar um governo autorit�rio e prolongar sua perman�ncia no poder. A sombra dos Duvalier voltava � mem�ria da popula��o, 35 anos ap�s seu fim, com a sa�da for�ada de "Baby Doc", em 1986.
Mo�se ganhou inimigos na oposi��o e entre antigos aliados. O homem mais protegido do pa�s n�o conseguiu evitar a pr�pria morte. As investiga��es sobre as verdadeiras causas do assassinato, talvez nunca sejam descobertas.
A pris�o de Christian Emmanuel Sanon (63), um m�dico haitiano, com supostas pretens�es pol�ticas, que chegou ao pa�s no �ltimo m�s com 26 mercen�rios colombianos (ex-militares da Col�mbia, considerados experientes, ap�s meio s�culo de conflito de guerrilha, s�o contratados por empresas de seguran�a em todo o mundo) e dois americanos de origem haitiana � o principal suspeito. O FBI acompanha todo o processo.
At� o momento, n�o h� sa�da aparente da crise pol�tica. Pelo menos tr�s homens reivindicam a lideran�a. Existem apenas 10 legisladores no parlamento, depois que os mandatos dos membros da c�mara e da maioria dos senadores expiraram e nenhuma nova elei��o foi realizada. O presidente da Suprema Corte, que poderia ter resolvido a disputa, morreu da Covid-19 no m�s passado.
O pa�s desce, novamente, ao inferno...Ai de ti, Haiti.