
N�o sei como reagiria � perda das minhas mem�rias. Delas, sustento meu dia a dia e o meu trabalho. Dizem que tenho boa mem�ria, que lembro datas e fatos pouco comuns. Pode ser. Entretanto, n�o tenho nenhuma mem�ria musical expressiva. Parto do princ�pio de que minha voz n�o � afinada o suficiente para expor os outros a ouvir-me cantando. Ent�o, n�o memorizo as letras, propositalmente. Mas listo mentalmente informa��es, nem sempre comuns, que acredito serem importantes para a compreens�o de determinado assunto, durante as minhas aulas. Essas, eu as levo na bagagem das mem�rias sempre preservadas.
Esquecer, segundo os cientistas, � um mecanismo natural do c�rebro para garantir agilidade de decis�es. Muitas lembran�as criam um estoque de dados, que dificulta, entre outras coisas, a tomada de decis�o. � fundamental o esquecimento para o c�rebro focar no que realmente importa.
Esquecer, entretanto, n�o � uma tarefa cerebral f�cil. Quando ocorre de forma passiva, a lembran�a, simplesmente, esvai, mas quando esquecer � uma obriga��o, os processos neurais envolvidos s�o mais complexos e o c�rebro tem dificuldade de realiz�-lo. O esquecimento volunt�rio exige muito mais que o esquecimento acidental. Que o digam os apaixonados n�o correspondidos e a fixa��o, do�da, na imagem do ser amado. Esquecer, inconscientemente, � f�cil. Esquecer, deliberadamente, n�o. � quase imposs�vel de ser realizado.
Os processos cerebrais de armazenamento e de esquecimento s�o distintos. Para armazenar os dados, o c�rebro produz uma rede de neur�nios, que ser� ativada para guardar as informa��es. Para que haja o armazenamento, essa rede precisa ser consolidada pois, no primeiro momento, h� instabilidade cerebral. Isso explicaria, por exemplo, a import�ncia da releitura de uma li��o para que, realmente, ocorra a estocagem das informa��es, que ir�o compor os rastros da mem�ria.
O esquecimento, segundo os cientistas, envolve dois mecanismos. O primeiro � resultado do enfraquecimento das sinapses das redes de neur�nios criados para formar os tra�os da mem�ria. O segundo vem da cria��o de novos neur�nios. Quando o c�rebro cria esses neur�nios, h� uma polui��o do local onde as mem�rias est�o registradas, enfraquecendo os circuitos que as armazenam.
Ap�s aprender algo, naturalmente, provocamos a cria��o de outros neur�nios, que estar�o envolvidos em distintas redes de conhecimento. Ironicamente, esse processo pode levar ao esquecimento. As crian�as tendem a criar muitos deles, o que explicaria por que esquecem com mais facilidade.
Admiravelmente, o c�rebro gasta muita energia para criar jovens redes neurais, que acabam por enfraquecer as mem�rias (n�o dos apaixonados, diriam os poetas, mas a paix�o passa, espera um pouco e vai esquecer tamb�m). Ter muitas lembran�as pode ser t�o danoso quanto n�o t�-las. Esquecer � uma forma de favorecer as escolhas.
O c�rebro busca simplificar o volume de informa��es parasitas, que dificultam a absor��o e adapta��o �s novas situa��es. As informa��es sup�rfluas, que s�o eliminadas, garantem maior agilidade cerebral. Assim uma boa mem�ria � aquela que seleciona e prioriza o que � importante, segundo a ci�ncia.
O mais ir�nico de tudo isso � que na mem�ria do esquecimento est� toda a riqueza do que foi vivido. Aquilo que foi eliminado guardava as sutilezas de um olhar, da sonoridade de uma gargalhada gostosa de ouvir, do r�pido crescimento dos filhos, do calor das m�os dos av�s que partiram. Guardamos momentos, mas os dias vividos, se foram com as mem�rias perdidas. Talvez seja a �nica forma de preservar o que, realmente, � relevante. N�o se pode ter tudo.
Esquecer � um mecanismo espetacular de defesa contra a ansiedade ou contra o excesso de emo��o que pode caus�-la. No amor � o esquecimento que permite redescobrir todas as manh�s a pessoa ao lado de quem dormimos e am�-la novamente, ainda mais e melhor. Se n�o esquec�ssemos, seria imposs�vel amar com o tempo.
Todavia, algumas mem�rias devem ser sempre lembradas, principalmente aquelas que envolvem uma coletividade. Essas devem ser ativadas de forma cont�nua, para que atos n�o sejam repetidos. Os horrores das grandes guerras, as bombas at�micas, os campos de concentra��o, a escravid�o, o genoc�dio das minorias, as ditaduras militares, o abandono dos menos favorecidos. Isso n�o pode cair no esquecimento. Os livros, as artes, as imagens sobre esses eventos devem ser produzidos e popularizados, para que os erros cometidos n�o sejam olvidados.
O que � repetido � mais f�cil de processar e se torna mais s�lido. As informa��es verdadeiras armazenadas na mem�ria s�o menos vulner�veis �s alega��es falsas que proliferam nos tempos atuais. As verdades ilus�rias somente s�o absorvidas na aus�ncia do real conhecimento. Por isso, a import�ncia de n�o esquecer fatos importantes da hist�ria humana.
O dever de alimentar as lembran�as dos grandes fatos coletivos est� na raiz da constru��o do nosso futuro. As mem�rias individuais s�o mut�veis. As mem�rias da hist�ria mundial n�o. Nesse contexto, a m�xima “temos a mem�ria curta” n�o se aplica.