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Estado de Minas RA�ZES RACISTAS

SP registra aumento de intoler�ncia religiosa em 2023

Foram 181 casos no primeiro trimestre, 87,4% do total do ano passado


10/07/2023 16:54
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SP registra aumento de intolerância religiosa
(foto: Eric Ty Od�)
No primeiro trimestre deste ano, a pol�cia civil de S�o Paulo registrou 181 casos de intoler�ncia religiosa em todo o estado, o que pode passar longe da quantidade real, j� que muitas v�timas preferem n�o recorrer �s autoridades para prestar queixa.

O total representa 87,4% das ocorr�ncias reportadas entre janeiro de 2019 e mar�o de 2023, demonstrando que houve uma alta significativa ao longo dos anos, e sinalizando que as pessoas podem estar tendo mais est�mulo para comunicar viol�ncias.

No relat�rio com os n�meros, obtidos pela Ag�ncia Brasil pela Lei de Acesso � Informa��o (LAI), � poss�vel identificar que os casos de intoler�ncia religiosa v�m em contextos de confronto f�sico, tipificados como "vias de fato", amea�as, inj�ria, difama��o, les�o corporal, dano, ultraje a culto e impedimento ou perturba��o de ato a ele relativo, praticar a discrimina��o e at� mesmo viol�ncia dom�stica. Por vezes, h� mais de um desses crimes indicados no boletim de ocorr�ncia, e a reportagem optou por contabilizar como um mesmo caso.
Em duas ocorr�ncias, as v�timas que deram parte na pol�cia eram adolescentes. Ambos foram amea�ados. H� ainda um caso relacionado a uma tentativa de suic�dio motivada por intoler�ncia religiosa, em Campo Belo, o que evidencia o peso que as tentativas de se doutrinar e converter algu�m podem ter. V�rias ocorr�ncias aconteceram no meio da rua.

Um dos locais que sofreram ataque, em mar�o deste ano, � o terreiro de candombl� Egb� Od� �kuer�n, que completou 12 anos de exist�ncia e fica no bairro Jardim S�o Jos�, em Cajati, munic�pio de 28 mil habitantes, a cerca de 230 quil�metros da capital paulista. No boletim de ocorr�ncia, o que ficou documentado, com cita��o do artigo 163 do C�digo Penal, foi o dano que o agressor, um vizinho do terreiro, causou � estrutura f�sica, ao jogar um tijolo sobre o telhado local.

Lei do sil�ncio

Conforme relata o babalorix� que comanda o terreiro, Eric Ty Od�, de 27 anos, esse mesmo vizinho ganhou o im�vel onde mora do pr�prio terreiro e tem uma esposa evang�lica. Segundo o l�der candomblecista, em respeito � lei de sil�ncio, o terreiro funciona, no m�ximo, at� as 22h30, e que o homem nem sempre demonstrou desagrado diante dos rituais realizados, o que come�ou apenas recentemente. "S� n�o machucou as pessoas embaixo porque o tijolo ficou preso no forro", observa o l�der do terreiro.

Essa n�o era a primeira vez que o vizinho os afrontou. A pol�cia, inclusive, j� havia sido acionada anteriormente, mas os boletins de ocorr�ncia n�o adiantaram. Al�m disso, o vizinho praticava o ataque e entrava correndo em casa, o que dificultava a a��o dos agentes, e chegou a intimidar os frequentadores, segundo o babalorix�.

"At� que perdemos a paci�ncia e abrimos um processo contra ele, por danos morais e danos patrimoniais, que est� correndo na justi�a. Foram registrados seis boletins de ocorr�ncia. Ele amea�ava as pessoas que iam ao terreiro, ficava armado na rua, andando para l� e para c�, chamando os integrantes da casa para ir l� conversar", acrescenta.

Medo e persegui��o

Vanessa Alves Vieira, coordenadora do N�cleo de Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria P�blica de S�o Paulo, afirma que, de fato, muitos l�deres de terreiro n�o denunciam os primeiros epis�dios de viol�ncia. Por detr�s do medo de se oficializar a queixa, h� tamb�m a desconfian�a da postura da pol�cia, j� que, conforme salienta a defensora p�blica, "h�, �s vezes, uma abordagem mais violenta, mais agressiva".

Ela ressalta que, embora o �rg�o n�o disponha de estudos que comprovem a hesita��o, os servidores que fazem esse tipo de atendimento a identificam nas falas dos denunciantes.

"�s vezes, as pessoas demoram para denunciar por temor, por desconhecimento dos caminhos jur�dicos poss�veis e tamb�m por n�o acreditar no sistema de justi�a para lidar com essas quest�es, que tamb�m t�m um fascismo institucional e estrutural que o permeia. Muitas vezes, h� esse receio sobre quais ser�o esses desdobramentos, se vai ter consequ�ncia ou n�o", diz ela, para quem o caso da demoli��o do terreiro de candombl� da yalorix� Odecidarewa M�e Zana, em Carapicu�ba, em dezembro de 2022, � uma hist�ria que ilustra o desrespeito e o apagamento que atingem as religi�es de matriz africana.

O docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador Alexandre Marcussi esclarece que, quando o subtexto dos ataques n�o � propriamente ser contra uma religi�o que n�o pertence � linha crist�, e sim o racismo.

"N�o � porque n�o s�o crist�os que os terreiros de candombl�, umbanda e matriz afro s�o constantemente atacados no Brasil. No Brasil, n�s n�o temos intoler�ncia religiosa significativa ou ataques contra praticantes do budismo, por exemplo, que tamb�m n�o s�o crist�os, mas n�o sofrem esse tipo de tratamento [de hostilidade]. N�o � exatamente o fator religioso que est� por tr�s. As religi�es como umbanda e candombl� s�o atacadas porque est�o historicamente associadas � �frica e � popula��o negra. Por isso que a gente fala nesses casos, n�o apenas em intoler�ncia religiosa, mas em um racismo religioso, porque a motiva��o � racial, de preconceito racial", diz Marcussi.

Ele explica que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, os ideais de inferioridade racial, que exaltavam os brancos, deixaram de ser aceitos e, com isso, deslocou-se o racismo de um campo para o outro. Assim, o racismo assumiu apenas uma nova roupagem. Como afirma o professor da UFMG, o que era um rep�dio por quest�es biol�gicas, como a cor da pele, se transforma em um rep�dio cultural.

Marcussi ainda destaca que a rela��o entre as religi�es de matriz africana e a sociedade brasileira sempre foi conflituosa. "Elas eram proibidas na �poca do Brasil colonial, foram permitidas durante o imp�rio, mas tratadas sempre de maneira inferiorizada e foram enquadradas criminalmente no in�cio do per�odo republicano, no final do s�culo XIX, in�cio do s�culo XX. Muitas dessas pr�ticas eram criminalizadas, alegando-se que eram formas de curandeirismo, charlatanismo, etc. A rela��o da sociedade e do Estado brasileiro com essas religi�es sempre foi muito conflituosa", afirma o docente, cuja produ��o acad�mica orbita em torno de temas como o pensamento social africano, Brasil colonial e religi�es afro-brasileiras.


Vida de sacrif�cios

Eric Ty Od� recebeu, h� pouco tempo, o t�tulo de Doutor Honoris Causa por sua contribui��o � sociedade, em virtude dos conhecimentos sobre religi�es de matriz africana. Casado com uma mulher que exerce a fun��o de yakeker� (ou m�e pequena) do terreiro, figura que o auxilia nas tarefas, ele diz ter consci�ncia de que ser babalorix� significa abdicar de, basicamente, todos seus planos pessoais, a fim de se dedicar exclusivamente ao funcionamento do terreiro.

"Vou te falar a realidade: a gente abdica da vida da gente para poder cuidar das pessoas e do orix�. A minha hist�ria come�a aos 13 anos de idade, quando fui visitar um terreiro de umbanda, que era esse do meu av�. Eu nunca tinha ido. Ent�o, achava aquilo fant�stico. Ele tocava �s sextas-feiras, pessoal de umbanda tem mania de tocar em dia de sexta. Ficavam na rua eu e meus amigos. A gente ficava ouvindo o barulho dos atabaques. Muitas vezes, a gente via meu av� passando, incorporado, pela garagem. E a gente falava...nossa, que legal, aquela coisa sat�nica, como o povo diz. E eu falei, um dia eu vou para ver isso, como � falar com o diabo. Porque a sociedade implanta na vida da gente que o terreiro � coisa do diabo", relata.

O terreiro Egb� Od� �kuer�n come�ou, conta Eric Ty Od�, a receber as pessoas em um banheiro. At� chegar ao est�gio em que est� hoje, de um barrac�o, levou certo tempo e uma dose a mais de f�. J� chegou a reunir filhos de santo debaixo de um p� de manga, que era onde dava, na �poca.

Filho de Ians� e Ox�ssi, o babalorix� afirma que nunca teve empecilhos com autoridades locais para abrir e registrar formalmente o terreiro, o primeiro de candombl� da cidade onde vive e ao qual v�o autoridades da cidade, que apoiam as a��es sociais que articula. Contudo, ele comenta que demorou para que os respons�veis pela regulariza��o do local compreendessem que estaria sujeito �s mesmas regras de templos ou igrejas de outras vertentes.

"Como � o primeiro, n�o sabiam como colocar nos documentos. Eu falei, n�o, a documenta��o � como se fosse de uma igreja, um templo religioso, normal. 'E a gente vai precisar cobrar imposto?'. Eu disse, n�o, isso � tudo conforme um templo religioso de qualquer igreja. Falaram, t� bom, a gente j� conseguiu entender", lembra ele, que iniciou as atividades estando � frente de um terreiro de umbanda, religi�o de seu av�, que teve o seu pr�prio em Carapicu�ba, interior de S�o Paulo, por 52 anos.

Eric Ty Od� recorda-se de sua primeira gira, que provocou encantamento com a umbanda. "Ali eu achei o meu lugar, porque eu fui a v�rias igrejas evang�licas e nunca me encontrava. Comecei a frequentar a umbanda. Com um ano, o meu av� incorporava uma entidade chamada Z� Pelintra e o Z� Pelintra disse, olha, meu filho, n�o tem mais muito tempo de vida aqui nessa terra e voc� vai cuidar disso aqui para ele. Voc� j� pode come�ar isso agora. E eu encarei aquilo como um desafio, e eu adoro desafios. Comecei. Auxiliava, perguntava, onde p�e essa vela, essa bebida? Como vai ser? Como n�o vai ser? Me ensina a abrir e fechar trabalho? Depois, eu conheci o candombl�, depois de uma visita que eu fiz. A�, eu vi que a umbanda me completava 80% e o candombl�, 100%", afirma.

"O orix� determinou que a gente deveria se mudar da cidade de Carapicu�ba para Cajati. Um desafio. Ele falou que seria aqui que eu iria construir meu nome, a minha hist�ria. Cheguei aqui, n�o tinha terreiro, nada. O �nico pai de santo da cidade", adiciona.

Contribui��o ao racismo

Obter a papelada para assegurar o funcionamento dos terreiros � um dos principais obst�culos impostos por quem os marginaliza ou tenta marginaliz�-los, ao mesmo tempo que se deixa de cobrar alvar� de igrejas cat�licas e evang�licas, alerta o presidente do Instituto de Defesa dos Direitos das Religi�es Afro-Brasileiras (Idafro), H�dio Silva J�nior.

Ele cita, como exemplo, um caso recente que atendeu, no interior de Minas Gerais, em que a prefeitura proibiu o terreiro de umbanda de realizar rituais para Exu, orix� muito associado ao diabo, por quem desconhece as religi�es de matriz africana e que busca desqualific�-las.

Ele afirma, ainda, que "a destrui��o do outro" sempre existiu no �mbito das religi�es de matriz africana no Brasil, e que, � medida em que elas avan�am e reivindicam legitimidade, h� rea��es. Realmente, quanto mais [avan�am], ainda que em um n�vel de organiza��o, de defesa, de afirma��o de direito incipiente, h� uma contrapartida, uma resposta a isso. Agora, eu diria que, na verdade, o problema fulcral � que a intoler�ncia religiosa no Brasil cresce absurdamente, e o que impressiona � que � envernizada por uma aura de naturalidade. Essa � que � a quest�o central", pondera.

Como estrat�gia de enfrentamento ao racismo religioso, muitas lideran�as religiosas acabam adotando nomes como "casa esp�rita" para, de certa forma, disfar�ar a natureza dos rituais que ali s�o realizados, pois quem procura na internet, por exemplo, pode achar que se trata de uma casa ligada ao espiritismo kardecista. Nem mesmo isso funciona, em alguns casos, para que os terreiros se protejam dos ataques.
H� diversos modos de persegui��o, que podem partir das organiza��es e o Estado, fazendo com que o racismo institucionalizado tamb�m ganhe forma. "A intoler�ncia religiosa n�o distingue nem por cor, nem por segmento religioso, � todo mundo macumbeiro. Vejo terreiros localizados em �rea rural, com vizinhos a uma dist�ncia significativa, de 100, 200, 300 metros, havia at� com 400 metros de dist�ncia da ch�cara e o cara vai reclamar", diz H�dio.

"Primeiro, a instrumentaliza��o do Estado, e a� isso se aplica a conselho tutelar. A gente teve casos de grande repercuss�o, de pais que perdem a guarda de filhos porque s�o da umbanda e do candombl�. Voc� tem vizinho que aciona a pol�cia, a prefeitura, agente fiscal e se vale, pretende valer da legisla��o. E a� eu sempre digo, as religi�es afro-brasileiras t�m que levar em considera��o esse aspecto, que a lei � aplicada com muito mais rigor, e a� voc� tem que considerar que o pa�s � racista", declara.

H�dio acrescenta que "h� um aparelhamento da m�quina p�blica preocupante, porque corr�i a democracia, e h�, certamente, uma aplica��o seletiva dessa legisla��o. Essa legisla��o tende a ser, n�o por coincid�ncia, mais rigorosa com os templos de religi�o afro-brasileira, isso � verdade", completa.

Para o presidente do Idafro, "a demoniza��o � exclusivamente direcionada �s religi�es afro-brasileiras". "E o problema � que a viol�ncia simb�lica, a viol�ncia verbal, da palavra, ela incentiva a viol�ncia f�sica", argumenta.

A Ag�ncia Brasil pediu posicionamento da Secretaria da Seguran�a P�blica sobre qual a postura que os policiais devem assumir ao atender um chamado de intoler�ncia religiosa, mas n�o teve retorno at� o fechamento desta mat�ria. 


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