
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 7 setembro de 2021.
O soldado Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga (1761-1799), o marceneiro e militar Lucas Dantas do Amorim Torres (1744-1799), e os alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira (1775-1799) e Jo�o de Deus Nascimento (1771-1799) s�o nomes praticamente esquecidos da historiografia nacional. Pois eles lideraram um movimento popular que pedia independ�ncia pol�tica quando aquele que se tornaria dom Pedro I (1798-1834) n�o passava de um rec�m-nascido.
A Conjura��o Baiana, tamb�m conhecida como Revolta dos Alfaiates ou Revolta dos B�zios, foi um movimento emancipacionista popular que se iniciou em 12 de agosto de 1798, exatamente dois meses antes do nascimento de Pedro I. E terminou no fim de 1799 — em 8 de novembro daquele ano os quatro l�deres acima mencionados foram executados em pra�a p�blica.
Diferentemente da maneira como o processo de independ�ncia brasileira acabou sendo costurado, culminando no 7 de setembro de 1822, era uma articula��o popular que, entre suas bandeiras, pedia o regime republicano e o fim da escravid�o.
Muitos dos participantes do movimento, inclusive Virgens e Veiga, Amorim Torres, Santos Lira e Deus Nascimento, eram negros.
Revoltas como esta ocorreram nas d�cadas que precederam a Independ�ncia brasileira e, cada vez mais, s�o exemplos recuperados por historiadores de como a historiografia oficial do pa�s acabou ofuscando a participa��o do negro em epis�dios importantes. Ao mesmo tempo, suscitam a reflex�o: se uma luta assim tivesse conseguido prosperar, a sociedade brasileira poderia ter sido organizada de forma completamente distinta, com aboli��o da escravid�o quase um s�culo antes e regime republicano sem passar pelos dois governos imperiais, conduzidos por descendentes da mesma casa portuguesa."� interessante perceber o quanto a hist�ria do Brasil � contada do ponto de vista do colonizador e do branco. A independ�ncia foi um desses momentos que atendeu apenas a uma elite, n�o dando conta de garantir a liberdade para a maior parte da popula��o brasileira, os negros e ind�genas", comenta o pesquisador da hist�ria negra Guilherme Soares Dias, consultor em diversidade.
"N�o aprendemos sobre esses fatos sob outra perspectiva e nem temos esses debates nas escolas. Esse era um momento efervescente da busca pela aboli��o com v�rias revoltas no Brasil e outros pa�ses conquistando essa liberdade do povo negro. A hist�ria ainda retrata apenas um lado e a gente ainda precisa buscar outras informa��es sobre esse per�odo", completa ele. "Esse apagamento das lutas negras faz parte de um racismo estrutural que � resqu�cio daquele momento em que o negro n�o era visto como humano e sim como coisa. A sua hist�ria, seus costumes, sua cultura, seus pensamentos n�o importavam, j� que ele era animalizado. As pessoas precisam ter raiz."
- Leopoldina: a mulher que assinou a independ�ncia do Brasil
Dias afirma que a primeira coisa tirada pela escravid�o foi a pr�pria hist�ria da popula��o negra. "Ainda hoje precisamos fazer essa busca e jogar luz para her�is, lutas e acontecimentos que foram importantes para as pessoas negras", diz. "Essa � a narrativa que a hist�ria do Brasil ainda n�o conta."
Lutas contra o dom�nio portugu�s
Professora na Universidade Federal Fluminense e integrante da Rede de Historiadores e Historiadoras Negros, a historiadora Yna� Lopes dos Santos cita tr�s como os principais movimentos que pediam a separa��o de Portugal antes do famoso 7 de setembro. Al�m da Revolta dos B�zios, tamb�m destaca a Inconfid�ncia Mineira, de 1789, e a Revolu��o Pernambucana, de 1817.

"Foram os mais expressivos. Mas sem sombras de d�vidas a Conjura��o Baiana foi o com a maior participa��o efetiva da popula��o negra, tanto a livre quanto a escravizada", ressalta. "E foi um movimento que pensava o processo de Independ�ncia correlatamente com o processo de aboli��o da escravid�o, algo que n�o aparecia nos outros dois movimentos insurgentes."
Santos cita, inclusive, que isso fez com que muitos negros que haviam aderido a essas revoltas tenham as abandonado em seguida, t�o logo compreenderam que "era algo que n�o lhes dizia respeito".
Para o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador do tema na Universidade Estadual de Campinas, � preciso olhar para v�rios processos de emancipa��o que n�o estavam diretamente ligados �s elites. "E a Conjura��o Baiana � um exemplo, que pensava tamb�m na liberta��o dos escravos, o que n�o era pensado pelas elites que dependiam do regime escravocrata", exemplifica.
"Grande parte dos movimentos e revoltas do Brasil de ent�o tinha a participa��o dos mulatos e negros, que eram o maior contingente populacional. Reivindicavam melhores condi��es de vida, igualdade de direitos", afirma o historiador Francisco Phelipe Cunha Paz, membro da Rede de Historiadores e Historiadoras Negros e da Associa��o Brasileira de Estudos Africanos.
Mas ele lembra que � importante "n�o cair na tenta��o" de homogeneizar os grupo - nem os negros, tampouco os n�o negros. "Eles eram atravessados por entendimentos, expectativas e la�os diferentes, por vezes internamente antag�nicos", ressalta.
Paz conta que houve participa��o de negros, homens e mulheres, em revoltas no Par�, no Maranh�o, no Piau�, al�m da Bahia. Neste caso mais emblem�tico, inclusive, ele ressalta que at� mesmo a quest�o dos nomes — Conjura��o Baiana, Revolta dos Alfaiates, Revolta dos B�zios — guarda uma disputa de narrativas.
"Ao contr�rio dos outros nomes, a nomenclatura 'dos B�zios' faz liga��o direta com as popula��es negras envolvidas no levante popular que foi um dos primeiros movimentos por independ�ncia e fim da escravid�o", diz. "Faz justi�a, assim, ao grande contingente de pessoas de cor por tr�s da sua exist�ncia."
O jogo de b�zios � muito presente em religi�es tradicionais africanas. E os revoltosos desse epis�dio utilizavam essas conchas como pulseiras, como forma de identifica��o.
"[A Revolta dos B�zios] foi formada basicamente por escravizados, livres e libertos, trabalhadores pobres e alguns membros da elite branca liberal", explica Paz. A recupera��o dessa nomenclatura foi feita gra�as a uma articula��o baiana de movimentos sociais negros.
Para o historiador Paz, isso � simb�lico do que deve ser a tarefa atual: "conseguir destacar as agendas das popula��es negras e os seus descontentamentos com o governo portugu�s e a sociedade escravista no Brasil".
"Al�m de disputar as mem�rias p�blicas em torno do processo de Independ�ncia do Brasil, que n�o se reduz ao ato administrativo de sua proclama��o oficial", acrescenta. "Pelo contr�rio, �, sem sombra de d�vidas, tamb�m produto das articula��es pol�ticas e sociais das popula��es negras."
Reis ressalta ainda o fato de que essas revoltas que ocorreram costumam ser tratadas apenas como motins, como rebeli�es contra o poder estabelecido, mas comumente n�o s�o vistas como lutas que tinham em seu cerne o ideal de emancipa��o, "de independ�ncia da na��o". "E quando a Independ�ncia de fato ocorre, ela � uma Independ�ncia repressora, que acaba massacrando as revoltas que ocorrem depois, sob o argumento da manuten��o do Estado nacional brasileiro", comenta.
Consolida��o da Independ�ncia
No imagin�rio popular, est� dom Pedro levantando a espada, gritando heroico "independ�ncia ou morte", tal e qual no famoso quadro criado em 1888 por Pedro Am�rico (1843-1905). Longe de ser uma fotografia, retrata de forma pomposa e distante da realidade o que aconteceu em 7 de setembro de 1822. Mas foi a narrativa que venceu, sob o prisma do homem branco europeu — o mesmo colonizador.
"O Brasil Imperial, proclamado independente no 7 de setembro de 1822, foi uma articula��o 'de portas fechadas' entre escravocratas, comerciantes e a pr�pria fam�lia real portuguesa, com uma promessa clara - a manuten��o do tr�fico transatl�ntico e da escravid�o", define Paz.
"O movimento da Independ�ncia ofuscou os outros movimentos que ocorriam na �poca, principalmente a quest�o abolicionista, porque acabou sendo um movimento de elite, uma elite preocupada em manter a autonomia que havia sido conquistada desde a chegada da corte ao Brasil em 1808", explica o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre personalidades que viveram no per�odo, como o pr�prio Pedro I.

A transfer�ncia da fam�lia real portuguesa para o Rio de Janeiro, nesse contexto de fuga das tropas napole�nicas no in�cio do s�culo 19, acabou sendo crucial para que ocorresse no Brasil uma hist�ria da independ�ncia t�o diferente do que ocorreu em outros pa�ses latino-americanos — a come�ar, por n�o vir junto com um regime republicano.
"O Brasil j� tinha uma elite de funcion�rios p�blicos, funcion�rios do governo e latifundi�rios que n�o queriam perder as conquistas adquiridas com a chegada da corte portuguesa", completa Rezzutti.
"A n�o ser no caso do Haiti, n�o h� nenhum pa�s da Am�rica Latina em que a Independ�ncia n�o tenha sido conquistada pela elite [branca]. Aqui no Brasil houve o agravante: tornou-se imp�rio porque acreditava-se que a elite brasileira n�o fosse t�o esclarecida intelectualmente quanto o restante da elite latino-americana. Ent�o se temia que o Brasil se fragmentasse em diversos pa�ses", explica o pesquisador.
"A ideia de manter o regime mon�rquico foi para garantir a integridade do Estado nacional. Mas isso acabou tendo a consequ�ncia de que a parte hegem�nica da elite pensava totalmente contra a aboli��o", prossegue ele.
Essa acabou se tornando a narrativa preponderante, afinal, como lembra Rezzutti, "a hist�ria � escrita pelos vencedores, e a elite foi a vencedora da Independ�ncia". "Uma elite escravocrata, formada por latifundi�rios e burocratas que dependiam do trabalho escravo", afirma.
A historiadora Yna� Lopes dos Santos ressalta que � preciso diferenciar "o que foi o processo de independ�ncia do Brasil" e "a hist�ria que se contou sobre isso".
"Temos um acesso muito limitado ao processo de Independ�ncia, que faz parte de um projeto nacional de contar a hist�ria como se fosse um fato que come�a e termina no 7 de Setembro", pontua ela. "Na verdade, foi algo mais complexo, envolvendo uma s�rie de interesses. A forma de cont�-la tem o prop�sito de marcar a hist�ria do Brasil como uma hist�ria pouco conflituosa e pouco combativa."
Para Santos, o ponto-chave nessa compreens�o est� em encarar a homogeneidade �tnica e cultural daqueles que ocupavam os altos postos do poder nas primeiras d�cadas do s�culo 19 — os deputados que representavam as capitanias brasileiras na Assembleia de Lisboa e, com a Independ�ncia, os que formam a Assembleia do Rio de Janeiro.
"Esse alto escal�o pol�tico brasileiro era formado majoritariamente por homens brancos escravocratas, formados na mesma universidade, de Coimbra, ensinados pelos mesmos professores", define ela. "Comungavam as mesmas experi�ncias e vis�es de mundo."
Por isso, ela explica, n�o existiu nesse momento da Independ�ncia um debate em rela��o � manuten��o ou n�o da escravid�o. "Foi uma quest�o silenciada. A manuten��o da escravid�o se deu pelo pr�prio silenciamento da exist�ncia da escravid�o na carta constitucional de 1824", afirma a historiadora. Citando o historiador Luiz Felipe de Alencastro, ela repete que "o Brasil foi um pa�s que nasceu apostando no futuro da escravid�o".
"Aposta esta que silenciava justamente o que era a jurisdi��o, colocando-a na salvaguarda da propriedade privada", explica.
"Existia um acordo da classe pol�tica brasileira, em sua imensa maioria, para que fosse constru�do um pa�s soberano alicer�ado na manuten��o da escravid�o", complementa. "Porque havia a compreens�o que a pr�pria unidade nacional estava vinculada � manuten��o da escravid�o. A escravid�o acabou sendo a institui��o que ordenou o funcionamento da sociedade brasileira, n�o s� economicamente, mas tamb�m pol�tica e socialmente."
Outro aspecto lembrado pela professora s�o as tantas revoltas que ocorreram para consolidar a independ�ncia. E a� novamente � preciso olhar para a Bahia, que acabou revivendo os ideais da Revolta dos B�zios no in�cio da d�cada de 1820 — com a guerra da independ�ncia ocorrida, de fato, em 2 de julho de 1823.
"Naquela prov�ncia, vimos os contornos mais radicais da efetiva��o da Independ�ncia, com as pessoas expulsando as tropas portuguesas de seus territ�rios", diz Santos.
"Um olhar um pouco mais cr�tico em rela��o � Independ�ncia do Brasil pressup�e pelo menos uma an�lise de duas escalas desse processo: aquele feito pela classe pol�tica, pela oligarquia pol�tico-econ�mica brasileira; de outro lado, o ch�o das prov�ncias, as pessoas que realmente transformaram esse projeto de Independ�ncia em um fato real", explica a historiadora. "Nesse ponto, h� uma presen�a muito forte de sujeitos que tiveram suas hist�rias silenciadas, homens e mulheres, negros, mesti�os, pobres, etc."
Mas a historiografia oficial acabou real�ando apenas o primeiro grupo. E esse apagamento ocorreu n�o s� dessas revoltas p�s 7 de Setembro, como tamb�m dos movimentos que ocorriam antes. "As revoltas do Brasil colonial, muitas tinham objetivos separatistas, abolicionistas e republicanos. Isso acabou suprimido da hist�ria oficial brasileira", complementa a professora.
Racismo estrutural
Ao apagar a participa��o do negro, a hist�ria cria um arcabou�o para a manuten��o do racismo estrutural. "A leitura oficial do 7 de Setembro � calcada e estruturada pelo racismo. Isso faz parte de um projeto de na��o que se constituiu que se refor�ou ao longo dos anos, inclusive com o advento da Rep�blica, j� que boa parte do que � ensinado sobre a Independ�ncia foi gestado no per�odo republicano", frisa a historiadora Santos.
"A maneira como aprendemos a hist�ria da Independ�ncia do Brasil � mais um dos expoentes sintomas do racismos estrutural brasileiro, que silencia as in�meras hist�rias e participa��es da popula��o n�o branca na forma��o do pa�s", acrescenta ela.
"A invisibilidade � uma das marcas desse poder que nega e silencia os sujeitos hist�ricos negros e ind�genas", diz o historiador Paz. "Essa 'hist�ria escrita por m�os brancas', como sentencia a historiadora negra brasileira, Beatriz Nascimento, � produzida tanto no apagamento do negro na hist�ria do Brasil, quanto no descr�dito das suas narrativas no presente."
Para o historiador, o pr�prio movimento de independ�ncia do Haiti — guerra travada de 1791 a 1804 que acabou resultando na primeira rep�blica americana governada por pessoas de ascend�ncia africana — deixava as elites brasileiras apreensivas que algo parecido pudesse ocorrer.
"Acredito que as disputas pelos sentidos em torno do 'grito do Ipiranga' e a pr�pria independ�ncia em si, da maneira que se deu, significa menos uma ruptura anticolonial e mais uma articula��o antinegra, muito pelo medo dos rumores que desciam do Haiti", comenta ele.
Para Reis, na consolida��o do Estado nacional brasileiro houve uma inten��o de "n�o lembran�a", de "n�o significa��o" dos elementos de luta negra, ind�gena, de g�nero e, "sobretudo, de classe". "Eles s�o apagados em nome da manuten��o do poderio da elite local, que 'faz', enfim, a Independ�ncia e d�o sentido a ela."