Imagem da logo da 123 milhas na parede de um aeroporto

Dois operadores desse mercado disseram � reportagem terem negociado cerca de R$ 350 mil, no total. Ambos est�o na fila de credores da 123milhas, com a incerteza de se v�o receber

Juca Varella/Ag�ncia Brasil/Arquivo

Na lista de 719.440 credores da 123milhas, n�o h� apenas os que compraram passagens para voos n�o existentes. Um n�mero n�o identificado � de vendedores de milhas a�reas. E essa modalidade de neg�cios sofreu abalo com o fechamento da empresa e de sua parceira, a Hotmilhas.

 

"Tenho um colega que vendeu R$ 120 mil [e n�o recebeu]. Mas h� quem tenha perdido R$ 300 mil, R$ 400 mil. � um rombo enorme. Muita gente se deu mal nisso", afirma Augusto Muraoka, dono do curso Milhas Fora da Caixa, que ensina como acumular e usar milhas a�reas, algo cada vez mais popular nas redes sociais.

 

Dois operadores desse mercado disseram � reportagem terem negociado cerca de R$ 350 mil, no total. Ambos est�o na fila de credores da 123milhas, com a incerteza de se v�o receber. Eles n�o querem ter os nomes divulgados porque usaram tamb�m cart�es de cr�dito e CPFs de parentes para realizarem as transa��es.

 

"� relativamente simples. Basta saber gerar a milha com baixo custo e depois revender. Aproveitar uma promo��o para comprar pontos, transformar em milhas e revender. Muitas pessoas investiram nisso e, como deu certo nas primeiras vezes, come�aram a colocar o que n�o tinham: parcelaram no cart�o de cr�dito, agiotagem... Compra parcelado em 12 meses, recebe o pagamento em cinco e cria um pequeno capital de giro", diz Heron Alonso, propriet�rio dos cursos Mapa das Emiss�es e C�digo das Milhas.

 

Influenciadores nas redes sociais prometem ensinar a lucrar com essas transa��es. Programas de fideliza��o costumam permitir compras de pontos com desconto. Esses depois podem ser convertidos em milhas a�reas e revendidas com lucro. Quase sempre, o comprador era a Hotmilhas.

 

Funcionava assim: ao adquirir as milhas, a Hotmilhas pedia tamb�m o login e a senha da conta do cliente nos programas de fidelidade. Ao vender um bilhete a�reo, a 123milhas usava a as milhas desta conta para pagar a companhia a�rea e emitir a passagem no CPF do comprador final.

 

Para quem juntou as milhas e iniciou a negocia��o, o prazo para receber o dinheiro da 123milhas (ou Hotmilhas) era de cinco meses. Quando elas quebraram, o �nico jeito foi entrar na lista de credores da recupera��o judicial.

 

As empresas a�reas limitam quantos CPFs cada cliente pode usar para emitir passagem. Podem variar de 25 (Latam) a cinco (Azul). Para driblar essa regra, a solu��o encontrada pelos operadores foi criar novas contas com dados de familiares e amigos para investir mais e maximizar os lucros. Quando a 123milhas entrou em recupera��o judicial, ficou o calote.

Para donos de cursos e ag�ncias de turismo consultados pela reportagem, o expediente � legal. Mas a opini�o n�o � compartilhada pela Latam, que administra o programa de fidelidade Latam Pass.

 

"A Latam esclarece que nunca teve nenhuma rela��o comercial com a 123milhas e demais empresas do grupo que comercializam passagens adquiridas com pontos de programas de fidelidade, e refor�a que o regulamento do Latam Pass pro�be a venda de pontos e pune os participantes que vendam pontos, conforme o regulamento do programa", diz a nota enviada pela assessoria de imprensa da companhia.

 

Consultada, a Azul afirmou que n�o iria se pronunciar. A Gol disse que a consulta teria de ser feita ao Smiles, que tamb�m n�o se manifestou. O mesmo vale para a Livelo, a principal empresa de fideliza��o e pontos de milhagem do pa�s.

 

"A partir do momento que as milhas s�o acumuladas pelo cliente, isso acontece pelos gastos, pelas estrat�gias, pelos custos. As milhas s�o dele, n�o s�o conseguidas de gra�a. Nenhuma companhia a�rea sai depositando milhas na sua conta. O cliente est� pagando de alguma maneira para adquirir essas milhas, que s�o para ele fazer o que preferir, viajar ou ceder para algu�m viajar, o que � a venda", defende Rafaela Mol�s, uma das donas do curso Milhas sem Segredo, que afirma j� ter tido mais de 15 mil alunos.

 

Pesquisa da ABEMF (Associa��o Brasileira das Empresas do Mercado de Fideliza��o) apontou que o n�mero de pontos ou milhas emitidos no Brasil em 2022 chegou a 509,4 bilh�es, 61,8% a mais em rela��o a 2021. A maioria foi usada na troca de outros benef�cios oferecidos pelo programa e 6,35% acabaram na compra de passagens a�reas.

 

"A ABEMF entende que os programas de fidelidade possuem uma finalidade pr�pria e espec�fica: premiar consumidores fi�is. Dessa forma, os objetivos s�o proporcionar o ac�mulo de pontos ou milhas pelos consumidores e que eles exer�am seu direito de resgate por novos produtos e servi�os disponibilizados", diz Paulo Curro, diretor executivo da Associa��o.

 

As milhas a�reas surgiram nos Estados Unidos em 1979 como forma n�o s� de fidelizar a clientela, mas tornar mais f�cil a compra de servi�os extras no voo, como melhores assentos ou refei��es especiais. Em 1994, no Brasil, a Varig criou o Smiles, atualmente operado pela Gol.

 

Especialmente na pandemia da Covid-19, entre 2020 e 2021, as empresas tiveram na venda de milhas uma forma de capitaliza��o. Mas trata-se de �rea em que a mesma companhia vende as milhas e determina quantas s�o necess�rias para comprar uma passagem. Isso inflacionou o mercado.

"Em 2014, eu resgatava uma viagem ida e volta para os Estados Unidos, em classe executiva, por 75 mil milhas no Smiles pela Delta [parceira do programa]. Hoje, se eu quiser fazer o mesmo trajeto ser� uns 400 mil", afirma Muraoka, completando que mesmo o mercado de revenda n�o proporciona o lucro da d�cada passada.

"Tem gente que fala hoje em dia em ganhar 15% ou 20% em um ano. Antigamente, ganhava-se 30% ou 40% em um m�s."

 

H� os bancos tamb�m. Institui��es financeiras compram regularmente milh�es de milhas para dar como benef�cio aos seus clientes de cart�es de cr�dito e estimular o uso.

 

"A venda de milhas salvou as empresas a�reas na pandemia. Mas � o mercado em que quem define o valor da passagem � o credor. Define de acordo com o que desejar. Deixou de ser um programa de recompensa h� muito tempo", completa Alonso.

 

A quebra da 123milhas prejudicou os operadores de compra e venda (eles chamam a si mesmos de "traders") que tinham dinheiro a receber, mas n�o acabou com esse mercado. Pequenas ag�ncias de turismo t�m feito essa negocia��o obtendo os mesmos lucros da companhia em recupera��o judicial.

 

"O mercado de milhas n�o vai acabar. Pelo contr�rio, s� tende a crescer. As pessoas v�o continuar juntando milhas, principalmente as que t�m conhecimento. As pr�prias companhias a�reas v�o continuar vendendo para os clientes porque gera renda para elas. Novas empresas e modelos de neg�cio v�o surgir para aproveitar esse espa�o. Quem quer fazer essa revenda tem de se profissionalizar, seja emitindo passagem no particular, para amigos, familiares ou cedendo para uma ag�ncia de viagem que confie", garante Rafaela.