*Os nomes de todos os entrevistados nesta reportagem foram alterados para preservar sua privacidade
"Ele estava dormindo e eu levei o celular para o banheiro. N�o precisa de um grande esquema secreto para a troca de mensagens, dos nudes.... Todo mundo carrega o telefone pra todo canto, pro banheiro, pra cozinha, n�o � algo t�o calculista como pode parecer", conta a arquiteta Bianca*, 36, que est� em isolamento social com o namorado Gabriel, no Rio de Janeiro (RJ) desde mar�o.
Os dois est�o juntos h� cinco meses, mas Bianca conta que as consequ�ncias da pandemia do novo coronav�rus foram decisivas para a maneira como o relacionamento foi constru�do. "Antes da quarentena, n�o tinha um status de namoro. Gosto do Gabriel e de estar com ele, mas n�o queria que nosso relacionamento tivesse se aprofundado tanto como aconteceu por causa da pandemia", confessa ela, que se sente "traindo" o parceiro.- A ind�stria de rob�s sexuais � uma amea�a � sociedade?
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"Continuo em contato com outros homens e uma mulher, trocando mensagens, nudes e praticando sexo virtual, mas me sinto um pouco culpada. N�o sofro por isso, mas n�o acho que seja justo com ele. S� que tamb�m n�o consigo abrir m�o do conforto emocional que o namoro me traz e nem da vida sexual que eu gostaria de estar levando e estaria, sem culpa e sem amarras, se n�o fosse pela pandemia", diz ela.
Tamb�m no Rio, a publicit�ria Luciana*, 35, divide o apartamento com o marido - como o reconhece e chama - h� cinco anos. Como Bianca, ela sentiu os efeitos do isolamento social sobre seu relacionamento, que j� estava, como conta, em crise.
"Antes de a pandemia 'estourar' eu j� estava cogitando a possibilidade de me separar. Sentia que a gente estava se afastando afetivamente, sexualmente e emocionalmente. Da� veio a quarentena e a crise ficou meio 'em stand by'. N�o ouso 'mexer neste vespeiro' porque n�o tem como resolver. N�o tem como a gente se separar em meio a este caos, n�o tem como dar um tempo, ent�o prefiro manter uma conviv�ncia minimamente harm�nica enquanto isso durar", explica ela.
Apesar de destacar um conv�vio agrad�vel com o marido - "gosto da companhia dele", ela diz -, Luciana conta que se aproximou, durante a pandemia, de um outro homem, um conhecido de faculdade. Os dois se reencontraram em uma festa de amigos em comum no in�cio do ano e passaram a trocar mensagens.
"Come�ou como uma amizade e de uns meses para c�, falarmos abertamente sobre o interesse que temos um no outro. S� n�o tem nada em tom explicitamente sexual: troca de nude, sexo virtual, nada disso. Mas falamos sobre nosso dia, conto meus planos para o futuro, ele fala dos dele, mandamos fotos do cotidiano. De certa forma, me sinto como se f�ssemos um casal, tirando as rela��es sexuais/er�ticas, at� porque pela pandemia, n�o tem a press�o da possibilidade de um encontro f�sico. Mas me sinto envolvida afetivamente, conectada sentimentalmente, com uma rotina a dois de certa forma com ele, de um jeito que eu n�o me sinto mais em rela��o ao meu marido", confessa.

Desejo de 'estar fora'
Segundo Cl�udio Paix�o, doutor em psicologia social e professor da Escola de Ci�ncia da Informa��o da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o isolamento social necess�rio como medida de preven��o contra a covid-19 causa uma redu��o do espa�o f�sico vivenciado pelas pessoas, o que n�o acontece com os espa�os ps�quicos, impactando a maneira como vivenciam seus desejos.
"As pessoas est�o o tempo todo em di�logo com o mundo, em seu trabalho, sua vida social, outros lugares que n�o a casa e o pr�prio relacionamento. Com o isolamento, h� uma redu��o deste espa�o f�sico de interatividade, mas o campo psicol�gico n�o passa por isso de pronto. Ent�o as pessoas n�o entendem ou aceitam imediatamente que sua rede de relacionamentos tamb�m est� limitada. Isso faz com que se olhe para fora: de casa, do relacionamento. � um desejo de 'estar fora'. Isso aparece nos memes de saudades do bar, da vontade de 'se aglomerar', de praticar atividades f�sicas, os mais diversos desejos de troca, inclusive a sexual e afetiva. E o que se tem feito como alternativa � uma virtualiza��o das rela��es para suprir estes desejos", aponta o especialista, citando exemplos como troca de nudes e a pr�tica de 'sexting', sexo virtual por mensagens.
Sem sair desde mar�o da casa em que vive com o namorado em Belo Horizonte (MG), o pesquisador Caio, de 28 anos, passou a utilizar o que ele chama de "aplicativos de pega��o" e tem participado de chats em busca de parceiros sexuais.
"Acho que sempre tivemos um relacionamento aberto velado. J� fiquei com outros caras e sei que ele tamb�m. Mas era algo espor�dico, quando rolava um clima numa festa, coisa de momento. N�o falamos sobre isso, e nunca busquei esses encontros ativamente, acredito que nem ele. Agora na pandemia, me vi mais impelido a fazer isso, tenho usado aplicativos de 'pega��o', inclusive trocando nudes neles e em chats como do Facebook, coisa que nunca tinha feito. N�o sei se ele tamb�m faz, mas n�o me incomodaria".
Caio diz que isso n�o afetou sua rela��o com Igor, com quem mora h� 8 anos. "Apesar de estarmos na mesma casa, que � antiga e enorme, n�o ficamos o dia todo no mesmo ambiente. Al�m disso, eu trabalho muito tempo diante do computador, ent�o temos uma certa privacidade. N�o frequento esses aplicativos e chats descaradamente, na frente dele. Nossa vida sexual continua bastante ativa e nosso envolvimento afetivo e emocional continua o mesmo de antes, mais intenso at�, eu diria. Sinto que nosso relacionamento � muito est�vel".

'Tinderiza��o' das rela��es
Para o psic�logo Cl�udio Paix�o, outro fator que impacta a busca por rela��es extraconjugais � um padr�o de se relacionar que ele chama de 'tinderiza��o' (refer�ncia ao aplicativo Tinder, que permite intera��o entre as pessoas a partir de um "match", fun��o que aponta interesse m�tuo entre dois usu�rios).
"Com o advento das redes sociais, criou-se a possibilidade de se navegar e ver outras pessoas, possibilidades de relacionamento diferentes das que se tem. Surge um card�pio maior de possibilidades, o que sugere, ati�a uma s�rie de outros desejos, ainda que baseados em fantasias, porque na internet as pessoas se mostram como querem ser vistas."
Cl�udio sugere, ainda, que essa 'tinderiza��o', trazendo a grande possibilidade de outras escolhas sexuais e afetivas, tamb�m tende a tornar as gera��es atuais menos tolerantes aos aspectos que as desagradam em seus parceiros.
"H� a tend�ncia de redu��o de toler�ncia ao erro do outro. Antes voc� acabava convivendo por um tempo, ia estreitando la�os com algu�m para aprender sobre a pessoa em diversos n�veis. Neste momento de tinderiza��o, as pessoas t�m muitas escolhas e um baixo limiar de resist�ncia � frustra��o de expectativas. Voc� v� o outro, se interessa e come�a a conversar. Se surge algo que desagrada, � s� 'jogar pro lado' e interromper o contato", aponta o especialista, destacando como o isolamento social impacta este efeito.
"Neste momento, o que h� de bom e ruim nas rela��es se sobressai ao mesmo tempo em que h� essa diminui��o da toler�ncia. Somando a isso fatores como o cuidado com filhos e com pessoas idosas, o teletrabalho e o ensino � dist�ncia, cria-se um desgaste da rela��o a dois. Isso pode fazer com que o interesse da pessoa se volte 'para fora' da rela��o confinada naquele espa�o de tens�o. Por isso � sempre importante dialogar."
Moraliza��o dos relacionamentos
Apesar dessa tend�ncia em se querer experimentar "o que est� fora" de um relacionamento monog�mico diante do confinamento, a pandemia do novo coronav�rus pode trazer uma certa moraliza��o dos modelos conjugais. � a an�lise feita pelo antrop�logo Ant�nio Pil�o, doutor em Ci�ncias Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com p�s-doutorado em g�nero e sexualidades em andamento no Programa de P�s-Gradua��o em Ci�ncias Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGCSO- UFJF).
"Vejo uma rela��o muito estreita com o fen�meno da aids nos anos 1980 e 1990. O mundo havia sa�do de um contexto de experimenta��o afetiva e sexual dos anos 1970. Com a aids, houve uma remoraliza��o dos desejos e pr�ticas, porque entendia-se que a prolifera��o do HIV era proveniente da promiscuidade sexual. Ent�o a limita��o das experi�ncias afetivas e sexuais e a monogamia como regra foram uma resposta a essa premissa", analisa Ant�nio, um dos pesquisadores pioneiros no estudo de rela��es n�o monog�micas no pa�s.
"Estamos diante de um v�rus que se alastra a partir das intera��es sociais, do abra�o, do beijo. Essas s�o, na sociedade ocidental, porta de entrada para a sexualidade. Com isso, os relacionamentos tornam-se uma discuss�o sanit�ria, o que tamb�m influencia nossa vis�o moral. Antes da pandemia est�vamos em um momento, desde o in�cio dos anos 2000, de maior abertura para o questionamento das limita��es da monogamia. Agora, parece que estamos entrando em uma fase em que ela se apresentaria como a �nica possibilidade conjugal poss�vel, at� por quest�es de sa�de p�blica", avalia o antrop�logo.

"A infidelidade � uma afirma��o da monogamia"
Ant�nio explica tamb�m a diferen�a entre estar em uma rela��o n�o monog�mica e ter relacionamentos extraconjugais:
"A monogamia dificilmente � um acordo. Nascemos em uma sociedade em que essa normatividade est� posta, limitando a sexualidade, a afetividade e o que chamamos de amor (num relacionamento) exclusivamente a outra pessoa. As rela��es n�o monog�micas questionam esse modelo e n�o s�o a aus�ncia total de regula��o, mas a proposta de regula��es e contratos que n�o sejam absolutos como a monogamia. J� a infidelidade � uma afirma��o da monogamia. Driblar os pressupostos e as regras da norma vigente n�o constr�i novos acordos, mas representa uma manuten��o dos antigos, ainda que seja no descumprimento deles. Por isso tamb�m h� o sentimento de culpa, arrependimento, vergonha e as pr�ticas se mant�m clandestinas."
Para Ant�nio, � imposs�vel prever como ser�o constru�dos os modelos de conjugalidade em um poss�vel mundo p�s-pandemia.
"N�o sabemos se no que ano que vem o cen�rio atual vai estar superado. Se vamos passar anos, d�cadas usando m�scara, e temendo o contato com pessoas estranhas, perdendo h�bito de 'ficar', por exemplo. Nesse sentido, a preocupa��o com a infidelidade n�o deve vir de suas quest�es morais, mas do risco iminente de cont�gio. Principalmente num contexto de poss�veis encontros clandestinos, podendo expor pessoas que nem sabem dos perigos que correm. O ideal seria que os casais pudessem conversar e encontrar alternativas de acordos sanitariamente seguros que funcionassem para eles e para a sociedade, j� que se trata de uma quest�o coletiva."
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