
“N�o coloque as pessoas em terreno movedi�o, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas expe- ri�ncias. A� reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um tel�o de TV e mont�-lo novamente, e a maioria consegue, est� mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a r�gua de c�lculo, medir e comparar o universo, que n�o ser� medido e comparado sem que o homem se sinta bestial e solit�rio. (…) N�s resistiremos � pequena mar� daqueles que querem deixar todo o mundo infeliz com teorias e pensamentos contradit�rios. N�o deixe a torrente de filosofia melanc�lica e desanimadora engolfar nosso mundo. Dependemos de voc�. Pelo menos uma vez na carreira, todo bombeiro sente uma coceira. 'O que ser� que os livros dizem?', ele se pergunta. Pode acreditar, os livros n�o dizem nada. Nada que se possa ensinar ou em que se possa acreditar. Quando � fic��o, � sobre pessoas inexistentes, inven��es da imagina��o. Caso contr�rio, � pior: um professor chamando outro de idiota, um fil�sofo gritando mais alto do que seu advers�rio. Todos eles correndo, apagando as estrelas e extinguindo o Sol. Voc� fica perdido. (…) Voc� pergunta o porqu� de muitas coisas e, se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz.”
Essa declara��o de �dio aos livros foi foi escrita h� quase sete d�cadas, em 1953, pelo norte-americano Ray Bradbury (1920-2012), para o seu livro mais importante, Fahrenheit 451. Descreve uma advert�ncia e uma recomenda��o de Beatty, o chefe dos bombeiros e inquisidor, a Guy Montag, seu bombeiro subordinado, numa �poca atemporal em que os livros s�o proibidos e queimados porque tornam as pessoas “infelizes”. Pois agora, curiosamente, o Minist�rio da Educa��o brasileiro cogita tirar recursos de filosofia e sociologia nas escolas e destin�-los para veterin�ria, engenharia e medicina, com o argumento de que � preciso “respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando os jovens a fazer contas e um of�cio que gere renda para a pessoa e bem-estar para a fam�lia”. Em outras palavras, n�o � preciso refletir sobre o mercado, pensar filosoficamente, � preciso apenas ler manuais e operar aparelhos para garantir o sustento e a satisfa��o imediata, como se n�o fosse poss�vel trabalhar e pensar no dia a dia.
"Deve haver alguma coisa nos livros"
Fahrenheit 451 apresenta uma narrativa linear e simples, mas provoca grandes reflex�es. Conta a hist�ria de Guy Montag, bombeiro que tem como miss�o apreender e queimar livros, porque n�o precisa mais apagar inc�ndios em casas � prova de fogo. Fahrenheit 451 � a temperatura da incinera��o. Mas, depois de 10 anos, ao testemunhar a morte de uma mulher que � incinerada com seus livros por se recusar a abandon�-los, Montag come�a a questionar: “Deve haver alguma coisa nos livros, coisas que n�o podemos imaginar, para levar uma mulher a ficar numa casa em chamas; tem que haver alguma coisa. Ningu�m se mata assim a troco de nada”. Seu pensamento cr�tico, entretanto, tem graves consequ�ncias e o torna v�tima do sistema. Sua pr�pria casa vira alvo e ele ter� de ser reeducado ou ser preso.
Embora seja tratada como fic��o cient�fica, a obra de Bradbury n�o deve ser vista como tal, � realista e inquietante e muito diferente de outros livros seus – o fascinante O homem ilustrado e os fantasiosos Os frutos dourados do sol e Cr�nicas marcianas. Mesmo muito distante de prever o surgimento da internet, do e-book e das controvertidas redes sociais, Bradbury criou uma obra vision�ria com o intuito de criticar a massifica��o causada pela incipiente TV, ent�o nos anos 1950, e o efeito manada ou o “destino bovino” da humanidade. O que diria hoje Bradbury, que faria 100 anos em 2020? A divers�o da “manada” agora s�o milhares de curtidas e compartilhamentos, a maioria est�reis, nas redes sociais.
Afinal, n�o � preciso mais pensar, s� exercer atividade aut�matas, apenas curtir e compartilhar. Pensar pra qu�? Para criar d�vidas? Para sofrer? J� disse Fernando Pessoa em seu tocante e extenso poema O guardador de rebanhos: “Pensar incomoda como andar � chuva, quando o vento cresce e parece que chove mais”...
A obra de Bradbury � mais atual do que a de seus contempor�neos George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admir�vel mundo novo), que criaram duas distopias influenciadas pelo totalitarismo de Hitler e de St�lin. No caso de Fahrenheit, a ditadura � mais sutil, porque a pr�pria sociedade se patrulha, inclusive pela intoler�ncia m�tua e pelo denuncismo, n�o precisa mais ser mandada. � v�tima (in)consciente n�o apenas de um regime totalit�rio, mas tamb�m da massifica��o cultural, temas hoje usuais vislumbrados pelos papas da comunica��o acad�mica, como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Marshall McLuhan e tantos outros da Escola de Frankfurt. � a “sociedade de consumo e seu corol�rio �tico – a moral do senso comum”, como diz Manuel da Costa Pinto na introdu��o do livro.
Em Bradbury, o big brother de Orwell � a TV, n�o como espi�, mas como pacificadora alienante. “Os bombeiros s�o agentes da higiene p�blica que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidad�os honestos, cujas inquieta��es s�o cotidianamente sufocadas por doses maci�as de comprimidos narcotizantes e pela onipresen�a da televis�o”. As pessoas dependem da televis�o para “passar o tempo”. A TV, entretanto, por mais que tenha “alienado” e “pacificado” a sociedade nas �ltimas sete d�cadas, tem um lado s�, torna o cidad�o um sujeito passivo. Mas em tempos de internet e redes sociais, todos est�o num campo de batalha virtual controlado por artif�cios tecnol�gicos e ningu�m � mais passivo. E ainda reina a intoler�ncia no meio da manada. Mas a intoler�ncia � entre os internautas, nunca contra o sistema. “A sociedade do espet�culo � uma esp�cie de servid�o volunt�ria”, diz um personagem do livro.
"Precisamos de conhecimento"
No mundo imagin�rio de Bradbury, o (des)controle come�a com o crescimento da popula��o e o avan�o da tecnologia. O bombeiro chefe rememora: “Veio a fotografia, veio o cinema no in�cio do s�culo 20. O r�dio, a televis�o, as coisas come�aram a possuir massa. E porque tinham massa ficaram mais simples. Antigamente, os livros atra�am algumas pessoas, aqui, ali, por toda parte. Elas podiam se dar ao luxo de ser diferentes. O mundo era espa�oso. Entretanto, o mundo se encheu de olhos, cotovelos e bocas. A popula��o duplicou, triplicou, quadruplicou O cinema e o r�dio, as revistas e os livros, tudo isso foi nivelado por baixo”. Ent�o, “a escolaridade foi abreviada, as filosofias, as hist�rias e as l�nguas foram abolidas, gram�tica e ortografia pouco a pouco negligenciadas e, por fim, quase totalmente ignoradas”. A vida � imediata, o emprego � que o conta, o prazer est� por toda parte, depois do trabalho. “Por que aprender alguma coisa al�m de apertar bot�es, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”
Livros fazem as pessoas pensarem, ser infelizes, ent�o vamos queim�-los, alerta o chefe. “Eu sempre disse: poesia e l�grimas, poesia e suic�dio e choro e sensa��es ruins, poesia e doen�a: � tudo uma besteira sentimental”, complementa a senhora Bowles, personagem “bovina” do livro. O contraponto vem com Faber, mestre de Montag: “Precisamos de conhecimento. Os livros servem para nos lembrar quanto somos est�pidos e tolos. Os livros s�o um convite � transcend�ncia, ao desvario, � err�ncia, ao desvio em rela��o ao destino bovino da humanidade conformada”. O chefe contra-ataca: “Um livro � uma arma carregada na casa vizinha”.
Mas, queimados os livros, qual seria o pr�ximo passo da barb�rie? Queimar os pr�prios homens para apagar de vez a mem�ria dos livros? Bradbury acena com esperan�a. Que tal cada pessoa decorar um livro, se tornar um homem-livro, uma mulher-livro. “Eu sou A rep�blica, de Plat�o. Esse sujeito aqui � Charles Darwin e este aqui � Schopenhauer. Somos tamb�m Mateus, Marcos, Lucas e Jo�o”, diz um homem-livro a Montag. Ser� essa a solu��o para sobreviver? Ent�o,para destruir o conhecimento, ser� preciso destruir o ser humano.
Adapta��o e Truffaut
Entre games e duas adapta��es para o cinema, a melhor vers�o de Fahrenheit 451 � a de 1966, de Fran�ois Truffaut (1932-1984), o �nico filme que ele fez em l�ngua inglesa e seu primeiro em cores. � bem fiel � obra de Ray Bradbury, com Oscar Werner como Montag e Julie Christie no elenco, inclusive com personagens at� mais bem-elaborados do que no livro. Um dos mestres da Nouvelle Vague e diretor de obras-primas como A noite americana (1973) e Os incompreendidos (1959), Truffaut fez um filme menor, segundo cr�ticos, mas isso parece preconceito com a fic��o cient�fica. O filme explora bem a mensagem do livro e cumpre a miss�o mais importante da obra: faz o espectador refletir sobre o mundo em que vive, exercer o livre-arb�trio. Em 2018, o diretor americano Ramin Bahrani lan�ou p�ssima vers�o de Fahrenheit ao transformar o drama filos�fico em filme de a��o que simplesmente “queima” a obra de Bradbury.

FAHRENHEIT 451
De Ray Bradbury
Biblioteca Azul
215 p�ginas
R$ 39,90