
Os tr�s primeiros condenados j� est�o encapuzados. Mas, quando os rifles s�o apontados para eles, rufam os tambores e um oficial de campo chega a cavalo com a mensagem do czar suspendendo a pena de morte e transformando-a em trabalhos for�ados na long�nqua e gelada Sib�ria. Dostoi�vski, que j� sofre crises nervosas, passa, ent�o, depois deste terr�vel trauma e do degredo, a sofrer pelo menos um ataque de epilepsia por m�s durante toda a vida. Como Machado de Assis (1839-1908), maior escritor brasileiro, o maior escritor russo tamb�m sofreu muito com a epilepsia.
O pelot�o de fuzilamento, entretanto, � apenas um teatro, porque a deporta��o para a Sib�ria e a pena de trabalhos for�ados j� est�o decididas. Para passar a imagem de piedoso, Nicolau I reduz ou perdoa penas propositalmente aumentadas pelos tribunais do regime imperial. S�o farsas macabras que implantam o terror com fachada de bondade, deixando advers�rios desesperados, mas acreditando na clem�ncia do regente.
23 de janeiro de 1850: Dostoi�vski, com a sa�de debilitada, acaba de chegar ao pres�dio da cidade de Omsk, na Sib�ria, a mais de 3 mil quil�metros de S�o Petersburgo, capital do Imp�rio Russo, para cumprir quatro anos de trabalhos for�ados. Mesmo com forma��o de engenheiro, ele n�o tem of�cio de utilidade pr�tica na pris�o e � mandado para servi�os pesados, cozer tijolos e carreg�-los em pilhas para constru��o, trabalhar no desmanchee de uma velha barca, com a �gua gelada do Rio Irt�ch at� os joelhos, calcinar alabastro e fazer outros trabalhos sob o insuport�vel frio de 40 graus negativos, que congela seus p�s, como tamb�m dir� depois a Mikhail.
� no hospital militar da cidade, durante suas v�rias interna��es, que Dostoi�vski passa grande parte do tempo e faz anota��es no Caderno Siberiano (Sib�rskaia tietr�d). Tem autoriza��o do m�dico-chefe, Ivan Iv�novitch Troitski, que permite que leia e escreva, porque o �nico livro liberado no pres�dio � a B�blia. O caderno, em breve, ter� quase 500 notas numeradas, escritas entre 1852 e 1854. Cont�m a rotina de sofrimento, mas tamb�m de supera��o e dignidade do escritor e vai dar origem ao livro Escritos da casa morta, publicado em 1861/62 – e que acaba de chegar ao mercado brasileiro pela Editora 34, encerrando a publica��o de toda a fic��o do autor no Brasil.
O mart�rio de Omsk, entretanto, ainda n�o � tudo. Em 2 de mar�o de 1854, Dostoi�vski � alistado como soldado no 7º Batalh�o de Linha da Companhia Siberiana do Ex�rcito Russo, na pequena Semipal�tinsk, nas estepes quirguizes (atual Cazaquist�o), perto da fronteira com a China. Ap�s quatro anos de trabalhos for�ados em Omsk, no pres�dio que ele chamou de “inferno”, come�a vida nova, obrigado apenas a cumprir suas obriga��es de militar.
Humilha��o e preconceito
O Dostoi�vski que sai da Sib�ria � um homem marcado por profundas transforma��es em suas convic��es, inclusive espirituais. Nenhum outro grande escritor russo passou por experi�ncia t�o traum�tica. O jovem crist�o secular e simp�tico ao socialismo ut�pico n�o � mais o mesmo. Em Omsk, ele conheceu os seres humanos em sua ess�ncia, durante a conviv�ncia com mais de 200 condenados, a maioria criminosos comuns, ladr�es, homicidas, parricistas e portadores de outras patologias da vilania. Como intelectual, Dostoi�vski sofreu preconceito, humilha��es e persegui��o de quem n�o se julga � sua altura.
Konstantin Motchulski, um dos seus principais bi�grafos, explica no posf�cio de Escritos da casa morta: “Em carta a seu irm�o mais velho, Mikhail, j� tendo deixado a pris�o, Dostoi�vski escreveu: 'Quantos tipos e caracteres folcl�ricos eu levei da pris�o...! Quantas hist�rias de andarilhos e ladr�es... � o bastante para in�meros tomos”. Todos esses tipos est�o no Caderno Siberiano, com “trechos de di�logos, can��es e prov�rbios ouvidos das conversas dos gal�s”. Por volta de 1860, j� livre, Dostoi�svski come�a a redigir o semiautobiogr�fico Escritos da casa morta e a public�-lo no jornal Mundo Russo. Logo depois, ele e Mikhail fundam a revista liter�ria O Tempo, que passa a reproduzir cap�tulos da obra. O livro �, finalmente, impresso em 1862, abrindo nova fase na carreira liter�ria do escritor.
�rf�o de m�e e pai assassinado
A Sib�ria dividiu em duas a vida do homem cuja vida daria um belo romance, como revela Joseph Frank, em Doistoi�vski – Um escritor em seu tempo – A biografia. A vida inteira lutou contra a pobreza, vivendo de adiantamentos de editoras para obras que iria escrever, e com d�vidas, inclusive de jogo e empr�stimos. E ainda perdeu dois filhos pequenos e sofreu com pro- blemas de sa�de, principalmente a epilepsia, que o atormentou at� a morte.
Dostoi�vski nasceu em Moscou, em 11 de novembro de 1821 (30 de outubro, pelo calend�rio juliano vigente na R�ssia), num hospital para indigentes onde seu pai trabalhava como m�dico. Em 1837, ainda adolescente, perdeu a m�e, v�tima de tuberculose. No ano seguinte, ingressou na Escola de Engenharia Militar de S�o Petersburgo, para estudos liter�rios. Em 1839, o pai foi assassinado por servos de sua pequena propriedade rural.
Sozinho e sem dinheiro, Dostoi�vski abandonou a carreira militar e escreveu o primeiro romance, Gente pobre, em 1846. Depois de ser preso na Sib�ria, lan�ou Escritos da casa morta e nas duas d�cadas seguintes suas principais obras, incluindo Os dem�nnios, Crime e castigo, O idiota e Os irm�os Karam�zov. Em 1857, Doistoi�vski se casou com Maria Dmitrievna e fundou em S�o Petersburgo, com Mikhail, a revista liter�ria O Tempo, fechada pela censura em 1863. Em 1864, lan�ou outra revista, A �poca, e perdeu a mulher e o irm�o. Dois anos depois, conheceu Anna Grig�rievna, com quem teve quatro filhos e viveu at� fim de sua vida, em 9 de fevereiro de 1881.

“'Quantos tipos e caracteres folcl�ricos eu levei da pris�o...! Quantas
hist�rias de andarilhos e ladr�es... � o bastante para in�meros tomos”
Trecho de carta de Dostoi�vski ao irm�o mais velho, Mikhail

» Escritos da casa morta
» Fi�dor M. Dostoi�vski
» Tradu��o, apresenta��o e notas de Paulo Bezerra
» Posf�cio de Konstantin Motchulski
» Xilogravuras de Oswaldo Goeldi
» Editora 34
» 408 p�ginas
» R$ 79
TRECHO DE ESCRITOS DA CASA MORTA
Assassino de criancinhas
“Aquele G�zin era um ser pavoroso. Produzia em todos uma impress�o de horror, angustiante. Sempre me pareceu que nada podia haver de mais feroz e monstruoso do que ele. Em Tobolsk, vi o bandido K�meniev, famoso por suas atrocidades; depois vi o soldado desertor Sokolov, um terr�vel assassino que aguardava o julgamento na pris�o. Mas nenhum deles provocou em mim uma impress�o t�o repugnante como G�zin. �s vezes, eu tinha a impress�o de estar diante de uma aranha enorme, gigantesca, do tamanho de um homem. Ele era t�rtaro; de uma for�a monstruosa, era mais forte que todos do pres�dio; estatura acima da m�dia, complei��o herc�lea, cabe�a disforme, desproporcionalmente grande; andava corcovado, olhava de esguelha. No pres�dio, corriam estranhos rumores a seu respeito: sabia-se que vinha do meio militar, mas os presidi�rios argumentavam entre si, n�o sei se com ou sem raz�o, que ele era um fugitivo de Niertchinsk (…) Contavam tamb�m que antes ele gostava de esfaquear criancinhas unicamente por prazer: levava a crian�a para um lugar prop�cio, primeiro a assustava, torturava e, depois de plenamente satisfeito com o pavor e o tremor da pobre e pequena v�tima, esfaqueava-a em sil�ncio, devagarinho, saboreando o prazer.”
