
Em Invent�rio das coisas ausentes (2014), de Saavedra, Mar azul (2012), de Vidal, e O quarto branco (2019), de Aguerre, o cen�rio pol�tico surge como mola propulsora do itiner�rio de sujeitos compelidos a trocar de pa�s e de idioma em fun��o de regimes implantados � for�a.
"Corpo intermin�vel", o meu novo romance, j� est� nas livrarias. pic.twitter.com/xv32PQe7rd
— Claudia Lage (@ClaudiaLage) November 22, 2019
Nascida nos anos de chumbo, essa gera��o toma para si a urg�ncia de narrar o horror de governos autorit�rios e ideologias perversas – � poss�vel afirmar que, em seus relatos, as escritoras ecoam de distintas formas a formula��o da cr�tica Jeanne Marie Gagnebin, ao assinalar que a testemunha n�o seria somente aquela que viu com seus pr�prios olhos, mas tamb�m quem “consegue ouvir a narra��o insuport�vel do outro e aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a hist�ria do outro”.
A imagem da corrida de revezamento parece adequada para pensar essas escritas – uma pr�tica que exige f�lego e explos�o muscular, mas tamb�m conten��o da velocidade, no movimento exato de depositar na m�o da outra pessoa algo muito precioso, no momento certo. As ficcionistas referidas, e tantas outras e outros que n�o caberiam neste espa�o, perseguem a tarefa de entregar uma hist�ria que ainda d�i e lateja.
Mem�ria da viol�ncia
S�o rastros de vidas, resqu�cios de narrativas, fragmentos de fotografias, como no potente O corpo intermin�vel (2019), de Claudia Lage. A escritora e roteirista carioca, tamb�m autora do romance Mundos de Eufr�sia (2009) e da premiada novela Lado a lado (com Jo�o Ximenes Braga), foi laureada com o Pr�mio S�o Paulo de Literatura na semana passada. Lage pertence a essa gera��o que herda o trauma da ditadura, constituindo-se em testemunha indireta daquele momento.
“� um assunto que sempre me incomodou, esse sil�ncio sobre essa �poca da nossa hist�ria. Minha gera��o sempre teve um desconhecimento muito grande, embora fosse uma gera��o de filhos da ditadura,” disse a autora, � �poca do lan�amento, � rep�rter Nahima Maciel, do Correio Braziliense. Ao receber como legado a mem�ria da viol�ncia, se p�e em marcha para narrar cicatrizes da nossa hist�ria coletiva, encarando a fera gigantesca, como nomeia um dos narradores do romance.
“� um assunto que sempre me incomodou, esse sil�ncio sobre essa �poca da nossa hist�ria. Minha gera��o sempre teve um desconhecimento muito grande, embora fosse uma gera��o de filhos da ditadura,” disse a autora, � �poca do lan�amento, � rep�rter Nahima Maciel, do Correio Braziliense. Ao receber como legado a mem�ria da viol�ncia, se p�e em marcha para narrar cicatrizes da nossa hist�ria coletiva, encarando a fera gigantesca, como nomeia um dos narradores do romance.
Tamb�m no plano da narrativa a imagem do revezamento se materializa: por vezes n�o identificadas, como tantas das v�timas dos regimes autorit�rios, v�rias vozes se intercalam. Duas se sobressaem: Daniel e Melina, casal enamorado e atravessado por dores profundas: ele, filho de desaparecida pol�tica, de quem foi separado ao nascer; ela, fruto de um casal aparentemente alheio ao que ocorria no Brasil de ent�o. Mas nem tudo � simples, ou claro. � diferen�a dos pais, Melina quer abrir os olhos, entender, fotografar este mundo repleto de de sequ�ncias interrompidas.
Trecho do livro
N�o lembro de nenhuma sensa��o de conforto ao dormir na cama da minha m�e, n�o era nela nem em seu sorriso que pensava, mas na sua aus�ncia e na sua morte nunca confirmada, no seu corpo que n�o estava, que n�o se podia ver nem tocar, isso me assombrava, como um monstro no arm�rio, mas muito pior do que um monstro no arm�rio, porque eu sentia em minha pele, era um horror real. (....) esse � o verdadeiro sofrimento desse filho, que n�o consegue imaginar a m�e como uma pessoa que se pode encontrar na esquina, uma pessoa que existiu (...).
J� Daniel escreve para compreender lacunas ao longo de sua exist�ncia – criado por um av� silencioso, busca por meio da escrita capturar pessoas e sentimentos que lhe foram subtra�dos. Nesse caminho, outro elemento fundamental, a personagem Alice, do livro preferido de sua m�e.
Daniel possui v�rias edi��es do romance de Lewis Carroll, j� que o volume pertencente � m�e lhe chega com p�ginas a menos. Nas demais, grifos, frases, a letra materna, uma materialidade da presen�a dessa mulher que n�o conheceu. “O que um livro pode dizer sobre o seu leitor?”, indaga-se.
Daniel possui v�rias edi��es do romance de Lewis Carroll, j� que o volume pertencente � m�e lhe chega com p�ginas a menos. Nas demais, grifos, frases, a letra materna, uma materialidade da presen�a dessa mulher que n�o conheceu. “O que um livro pode dizer sobre o seu leitor?”, indaga-se.
Esse leitor � uma leitora, e esse dado n�o � gratuito. Elas povoam as p�ginas do romance de Lage, que apresenta personagens femininas de muitas facetas: algumas questionam a maternidade compuls�ria, outras querem a luta e o combate, algumas silenciam, muitas s�o silenciadas. E os corpos s�o o territ�rio por excel�ncia para contar essas hist�rias – eles adoecem, engravidam, s�o violados, desaparecidos, metabolizam com dificuldade o que � imposto a eles. A pele registra todos esses movimentos, reagindo � ferocidade dos fatos e � brutalidade dos homens.
Trecho do livro
(...) o sol frio, o port�o florido, a fam�lia de f�rias, a casa branca, a menina com o cachorrinho, o pai no volante, a m�e no banco do carona, as f�rias passando pela casa branca e seguindo, isso � o mais importante, pass�vamos pelo pior toda hora, entre os passeios, a ida � padaria, ao mercado, � pracinha, fic�vamos semanas t�o perto dos por�es escuros e n�o ouv�amos um grito, um choro, um tiro, nada.
O corpo intermin�vel � um romance lido tamb�m com o corpo – n�o � poss�vel permanecer indiferente diante do que se narra, de como se narra. Claudia Lage n�o se det�m diante da dificuldade de nomear as atrocidades e a viol�ncia, mas ao mesmo tempo oferece um olhar que ampara esses personagens: mesmo um tanto aturdidos como Alice em sua trajet�ria, eles ainda amam, desejam, tocam as superf�cies feridas por tanta dor.
Da for�a e beleza ineg�vel do romance, gosto de reter a imagem do narrador decorando as p�ginas que faltam do livro materno, � semelhan�a dos personagens de Farenheit 451, romance de Ray Bradbury.
Se os livros desaparecerem, forem queimados, roubados, escondidos, sempre haver� quem os guarde n�o s� na mem�ria, mas na ponta da l�ngua, resistindo teimosamente, mesmo quando tudo em volta insiste em aniquilar.
*Stefania Chiarelli � pesquisadora e professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF)

O corpo intermin�vel
• Claudia Lage
• Editora Record
• 194 p�ginas
• R$ 54,90