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Estado de Minas MATRIARCA DO SAMBA

Senhora da can��o: Dona Ivone Lara tem lugar cativo entre grandes do samba

Dona Ivone Lara, que estaria fazendo 100 anos, tem cadeira cativa no pante�o do estilo, ao lado de grandes nomes, como Cartola, Noel Rosa e Sinh�


23/04/2021 04:00 - atualizado 23/04/2021 07:44

Autora de ''Sonho meu'' e outros sucessos, Dona Ivone Lara deixou um legado de luta pelos direitos humanos e igualdade de gênero(foto: TV BRASIL/DIVULGAÇÃO )
Autora de ''Sonho meu'' e outros sucessos, Dona Ivone Lara deixou um legado de luta pelos direitos humanos e igualdade de g�nero (foto: TV BRASIL/DIVULGA��O )
Conheci Dona Ivone Lara em agosto de 2007, durante a grava��o, no Rio de Janeiro, de “Nasci para sonhar e cantar” (Dona Ivone Lara/D�lcio Carvalho), uma das faixas do CD de estreia do cavaquinista mineiro Warley Henrique. Nessa �poca, a “matriarca do samba” era muito requisitada em todo o pa�s, principalmente por jovens talentos, que viam nela uma fonte de inspira��o e refer�ncia.

Em 2009, a carioca dividiu o palco do Pal�cio das Artes com o trio Dudu Nic�cio, Miguel dos Anjos e Mestre Jonas, em show do projeto “Samba do compositor”. “Convite eu n�o recuso, porque � mais uma oportunidade que tenho de cantar com �timos compositores, conhec�-los e participar do trabalho. Me sinto jovem”, afirmou, demonstrando sua generosidade, tra�o que a marcou por toda a sua vida.

Yvonne da Silva Lara nasceu em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, em 13 de abril de 1921(**). Foi a primeira filha da costureira Emerentina Bento da Silva e do mec�nico de bicicletas Jos� da Silva Lara, ambos integrantes de ranchos carnavalescos, embri�es das escolas de samba. Aos 10 anos e �rf�, entrou para o Col�gio Municipal Orsina Fonseca de onde s� sairia depois da maioridade, aos 18 anos, para morar na casa das tias em Madureira, sub�rbio carioca.

Nesse per�odo de internato, tinha aulas de canto com Za�ra de Oliveira, primeira esposa de Donga, autor de “Pelo telefone”, considerado o primeiro samba registrado no Brasil. Outra figura feminina de refer�ncia na trajet�ria da Dama do Samba � Luc�lia Villa-Lobos, esposa do grande maestro e professora de teoria musical.

O contato com a m�sica erudita, no entanto, n�o afastava Dona Ivone de suas origens. A primeira m�sica composta aos 12 anos foi um samba, “Ti�-ti�”, homenagem a um passarinho da esp�cie ti�-sangue recebido de presente (ela queria uma boneca!) do primo Fuleiro, o grande amigo e incentivador, Maioral da Imp�rio Serrano. No fim dos anos 1940, era por interm�dio dele que a tamb�m chamada Rainha do Samba apresentava suas m�sicas, pois temia o preconceito em um ambiente extremamente machista. Com o pai de Fuleiro, tio Dion�sio, aprendeu a tocar cavaquinho, a base para suas lindas melodias.

Neste m�s em que se celebra o centen�rio de nascimento de Dona Ivone Lara – que entrou para a hist�ria como a primeira mulher a integrar a ala de compositores de uma escola de samba no Rio de Janeiro –, imposs�vel para mim, jornalista e idealizador do projeto Almanaque do Samba – A Casa do Samba de Minas Gerais, n�o reverenci�-la. Essa carioca negra, esposa, m�e de dois filhos e av� de tr�s netos, abriu caminho, � sua maneira, para que uma legi�o de mulheres Brasil afora pudesse, apesar das dificuldades que persistem at� hoje, realizar o direito de se tornar dona do pr�prio destino. Lecy Brand�o, Jovelina P�rola Negra, Nilze Carvalho e Tereza Cristina s�o exemplos dessa linha- gem.

Ali�s, fazer esse resgate temporal, sentimental e hist�rico tem sido um desafio para mim desde que publiquei, em 2007, uma s�rie de reportagens no extinto Di�rio da Tarde (DT), com os perfis de personagens do samba de Minas Gerais. O trabalho foi o impulso necess�rio para que essa pesquisa desaguasse no Almanaque do Samba.

Nessa �poca, j� me chamava a aten��o a pouca presen�a da mulher nos espa�os de poder do samba, ou seja, compondo e cantando sua obra. Em Minas Gerais, a pioneira foi Lourdes Maria (1927-1999), sambista e fundadora da escola de samba Monte Castelo, sediada no Bairro Santo Ant�nio, Zona Sul de BH.

'Foram 10 discos solos gravados, participa��es em colet�neas, v�rios pr�mios e homenagens no Brasil e mundo afora e uma gama de cl�ssicos'



Diferentemente de Dona Ivone Lara, “Lourdes Boc�o” n�o precisava utilizar estrat�gias para assinar suas composi��es, em um universo predominantemente masculino. No fim dos anos 1940, a sambista mineira, m�e do baterista Esdras Nen�m (�cone entre os instrumentistas do Clube da Esquina) e av� do percussionista Guto Padovani, recebia a faixa de Rainha do Samba. Lourdes Maria j� defendia samba-enredo de sua autoria nos desfiles da Avenida Afonso Pena. Relegada pela hist�ria, ganhou homenagem da cantora Dona L�cia Santos (1946-2014) com o CD “L�cia Santos canta Lourdes Maria – A Dama Mineira do Samba”, lan�ado em 2013.

Esse empoderamento feminino no samba � um caminho sem volta. Coletivos, como o Mulheres na Roda de Samba, idealizado por Dorina, e Samba na Roda da Saia, dirigido pela produtora Rosane Pires, criam encontros e espa�os de troca entre artistas j� consagradas e aquelas em fase semiprofissional, potencializando projetos e dando visibilidade �s integrantes. Outra iniciativa de valoriza��o do samba � o projeto Samba de Minas, criado pela produtora Silvana Vilela.

Aline Calixto, Adriana Ara�jo, Aninha Felipe, Cinara Ribeiro, Dona Eliza, Dona Jandira, D�ris, Fernanda Vasconcelos, Lucinha Bosco, Jussara Preta, J�lia Rocha, Maria do Ros�rio, Marina Gomes, Giselle Couto, Manu Dias, Viviane Santos, Silvia Gomes, Vivi Amaral e Fran Janu�rio, Tia Elza,  entre tantas integrantes desses movimentos, comp�em essa mesma �rvore geneal�gica da for�a da mulher no samba, cuja semente foi plantada l� atr�s pela Matriarca do Samba.

Dona Ivone foi, com certeza, uma artista que, pelo conjunto da obra, tem cadeira cativa no pante�o do samba ao lado de grandes nomes, como Cartola, Noel Rosa, Sinh�, entre outros. Ao contr�rio do mundo exterior, em que o samba era marginalizado, no ambiente familiar, Yvonne percebia que o g�nero musical era respeitado. Mesmo assim, relutou muito at� abra�ar a carreira art�stica. Depois de sair do internato, ingressou em uma curso de enfermagem, formando-se ainda em servi�o social, trabalhando por d�cadas com a psiquiatra Nise da Silveira, fundadora da Casa das Palmeiras e pioneira no tratamento humanizado na �rea da sa�de mental.

“Naquela �poca, a m�sica era uma coisa muito ingrata, n�o dava estabilidade a ningu�m. Eu queria estabilidade”, afirma, no livro “Nasci pra sonhar e cantar – Dona Ivone Lara: a mulher no samba”, da jornalista Mila Burns, uma das obras de refer�ncia desse artigo. Ao analisar a vida e obra da sambista, Mila Burns destaca a relev�ncia de Dona Ivone Lara, considerada pela bi�grafa muitas mulheres em uma. “Como todas, mas com uma peculiaridade”, completa. No samba, continua, “n�o � tia, n�o � passista, tampouco � musa inspiradora. Ela simplesmente comp�e e canta, como fazem tantos homens”. Em 1965, Yvonne integrava oficialmente a ala de compositores da Imp�rio Serrano.

S� em 1977, no entanto, com a aposentadoria, ela passa se dedicar exclusivamente � m�sica, sendo lan�ada por Adelzon Alves, o mesmo que lapidou Clara Nunes. O primeiro sucesso foi “Sonho meu”, gravado por Maria Beth�nia e Gal Costa, em 1978, abrindo caminho para a carreira promissora de Dona Ivone em n�vel nacional. No mesmo ano, lan�a “Samba, minha verdade, samba, minha raiz”, seu primeiro LP.

Ao longo dessa estrada mel�dica, foram 10 discos solos gravados, participa��es em colet�neas, v�rios pr�mios e homenagens no Brasil e mundo afora e uma gama de cl�ssicos, a maioria em parceria com D�lcio Carvalho: “Acreditar”, “Algu�m me avisou”, “Alvorecer”, “Enredo do meu samba” (com Jorge Arag�o), “Mas quem disse que eu te esque�o” (com Herm�nio Bello de Carvalho), “For�a da imagina��o” (com Caetano Veloso), “Os cinco bailes da hist�ria do Rio” (com Silas de Oliveira e Bacalhau), entre outros.  Em 2015, Aline Calixto participou da quarta edi��o do projeto Sambabook, que destacou a obra de Dona Ivone, cantando em DVD o tema “N�o chora nen�m” ao lado da pr�pria Diva, um luxo!

Retomando meu encontro com a Dama do Samba, nos idos de 2007, conforme roteiro da produtora Cinara Gomes, a grava��o estava marcada para o per�odo da tarde, no Est�dio Cria��es, do produtor Alceu Maia, em Copacabana, na mesma galeria que abrigou na d�cada de 1960 o subversivo Teatro Opini�o. Andr� Menin�o, amigo e anfitri�o de artistas mineiros que chegam ao Rio, dirigia o Fiat Palio at� o Bairro de Inha�ma, no sub�rbio do Rio, para busc�-la para a grava��o. Antes, uma parada na Tijuca para o embarque da empres�ria Miriam Souza, ex-companheira do lend�rio Abel Ferreira, chor�o de primeira linha.

Impressionou-me o fato de Dona Ivone Lara, apesar de toda a grandeza, morar em um condom�nio simples, a poucos quil�metros da Casa dos M�sicos – conjunto habitacional onde Pixinguinha viveu seus �ltimos anos. Enquanto aguardava na sala, vi em destaque no m�vel, a Palavra, publica��o da Editora Gaia, fundada por Ziraldo e editada em Belo Horizonte, mas com distribui��o nacional. A Dama do Samba foi capa de uma das 16 edi��es da ef�mera revista, em uma deliciosa reportagem assinada por Israel do Vale e Cl�udia Mesquita.

Revi Dona Ivone Lara em abril de 2008, quando veio a Belo Horizonte participar do lan�amento do �lbum, no Teatro Sesiminas. Prestes a completar 87 anos, ela havia sofrido dois baques nesse intervalo de sete meses entre os dois encontros: o primeiro, a morte do filho Odir Lara da Costa, em novembro de 2007. Yvonne ficou muito abalada com a perda e, por consequ�ncia, acaba sofrendo uma queda em casa, prejudicando sua mobilidade.

Mas, quando subiu ao palco, a coisa mudou. Digo sem pestanejar que foi uma das grandes apresenta��es de Dona Ivone Lara nos �ltimos anos de sua vida. Estava prevista a execu��o de quatro m�sicas, incluindo a gravada no CD “Delicado”. Mas o calor do p�blico e a energia do palco fizeram com que ela se superasse. Abandonou v�rias vezes a cadeira para sambar, levando a mo�ada ao del�rio. Lembro-me de que ela n�o queria sair do palco e coube a mim, a pedido de Miriam, que entrasse em cena para a tarefa ingl�ria de retir�-la de cena. Algu�m tem d�vida de quem � a “Dona” do samba?

A Senhora da Can��o virou estrela em 2018, aos 97 anos, e deixou um legado de luta pelos direitos humanos e igualdade de g�nero e contra o racismo. Desde 2019, o 13 de abril foi institu�do como o Dia da Mulher Sambista, em homenagem a Dona Ivone Lara.

(**) Na certid�o de nascimento � 13 de abril de 1921, mas em outros documentos a data � 1922. Com a diverg�ncia, criou-se um mote para que a comemora��o do centen�rio se estenda at� o ano que vem.

*Zu Moreira � jornalista e idealizador do projeto Almanaque do Samba – A Casa do Samba de Minas Gerais, uma plataforma que re�ne um amplo acervo sobre sambistas mineiros, programas de r�dio e a webs�rie Sambistas da Vez, com 48 epis�dios.


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