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Estado de Minas POESIA

Poesia de Charles Simic ganha tradu��o no Brasil

O livro 'Meu anjo da guarda tem medo do escuro' re�ne 33 poemas do escritor nascido em Belgrado e radicado nos EUA


23/04/2021 04:00 - atualizado 23/04/2021 07:49

O sérvio Simic nasceu em Belgrado, em 1935, e mora nos EUA desde 1954(foto: EDITORA TODAVIA/DIVULGAÇÃO)
O s�rvio Simic nasceu em Belgrado, em 1935, e mora nos EUA desde 1954 (foto: EDITORA TODAVIA/DIVULGA��O)

Os poemas de Charles Simic reunidos em “Meu anjo da guarda tem medo do escuro” (Todavia) oferecem ao leitor brasileiro a oportunidade de travar contato com um dos mais importantes poetas de l�ngua inglesa em atividade. Escolhidos em colet�neas de versos publicadas em um per�odo de 30 anos (de 1983 a 2013), os 33 poemas constituem um retrato preciso e revelador da po�tica deste curioso autor, que nasceu em Belgrado, na S�rvia, em 1935 e vive nos EUA desde 1954.

Esta � a primeira reuni�o de poemas de Simic publicada no Brasil, o que supre uma lacuna lament�vel, por tratar-se de uma das mais importantes obras po�ticas contempor�neas, j� abordada por um n�mero significativo de cr�ticos que se t�m esfor�ado por mapear os vetores mais ressaltados de sua poesia. Basta ler os primeiros poemas para verificar que s�o aspectos fundamentais dessa poesia a estranheza, a inquietude, o desconcerto, as influ�ncias surrealistas e uma ambi�ncia l�rica que combina desola��o com naturalidade.

A po�tica de Simic � um caleidosc�pio de refer�ncias extremamente original, que provoca e inquieta sem, entretanto, ceder a enquadramento r�gido em nenhuma corrente ou movimento est�tico. Pela posi��o espec�fica de poeta exilado e reconhecido e pela dic��o distinguida que inventa, Simic � um raro e bem-sucedido caso de outsider laureado. A partir dessa condi��o, sua poesia d� vaz�o a uma consci�ncia l�rica que estrutura um olhar m�tico que tem obsess�o pelo mundo dos homens, pela hist�ria. Emblema desse verdadeiro projeto po�tico votado a perscrutar a desola��o com lentes de inquiedtude � o bel�ssimo poema “Os cubos de gelo est�o em chamas”, em que uma mulher que passa cubos de gelo na face c�lida � o centro de uma cena sufocante.

A poesia de Simic � pr�diga na constru��o de cenas sum�rias e precisas, as quais, voltadas ao registro po�tico da viol�ncia, constituem verdadeiros antimonumentos � hist�ria. Um primeiro aspecto estrutural dessas cenas deve-se aos seus “inesperados padr�es imag�ticos”, que explodem de modo radical, por exemplo, num poema, “Departamento de Monumentos P�blicos”. Simic sempre surpreende pelo ins�lito das correla��es estabelecidas entre referenciais de origens muito distantes, que s�o postos, pelo ordenamento l�rico, sob uma mesma atmosfera desconcertante.

O que aumenta a sensa��o de desconcerto nesses casos � o car�ter acachapante das imagens, constru�das atrav�s de um esfor�o intenso de economia de recursos formais. O resultado, assim, s�o associa��es imprevistas e lancinantes que d�o corpo a um posicionamento pol�tico radical e essencialmente cr�tico da vida contempor�nea. O melhor da poesia de Simic, salvo engano, nasce deste n�cleo de intensidade imag�tica, que � uma constante orientada para a amplifica��o de possibilidades expressivas do g�nero l�rico. Uma tal intensidade vincula, de modo determinante, a poesia de Simic ao ch�o da vida, como no poema “Noite de ventania”: “Este mundo velho precisa de uma escora”.

Conforme destaca o poeta e tradutor Ricardo Rizzo no “Posf�cio” da obra, uma “media��o central” da po�tica de Simic seria a experi�ncia da migra��o for�ada, a qual convoca para o �mbito dos textos tanto a condi��o de emigrado, refugiado ou perseguido quanto um quadro de dicotomias altamente produtivo marcado pelos �mbitos da vida adulta na Am�rica e da inf�ncia na Europa em guerra. Rizzo lan�a, ent�o, uma hip�tese intensa e abrangente sobre o significado contempor�neo e hist�rico da poesia de Simic: “O percurso dessa poesia n�o estaria definitivamente marcado pela experi�ncia de ser bombardeado?” Seja como for, tudo na leitura dos textos encaminha, envolvido num estado de perigo iminente, que, em alguns momentos, faz tremer e o poema “Fim de setembro” e registra de modo quase literal esse estado: “H� no ar uma amea�a/de trag�dias em preparo”.

A poesia de Simic, nesses termos, instala um curioso elo entre presente, mem�ria e trauma, tudo embalado por uma ironia ambivalente: pesada e sutil, como ocorre no in�cio do poema que empresta t�tulo � colet�nea: “Meu anjo da guarda tem medo do escuro. Finge n�o ter, me manda ir na frente, diz que me alcan�a num instante”. A perspectiva aqui sublinhada explicita o dilema existencial grave que indica em Simic a viv�ncia tr�gica do indiv�duo, indelevelmente marcada pelos des�gnios arbitr�rios dos “donos do poder”.

Poesia empenhada na constru��o de cenas que implicam as v�sceras do contempor�neo, a obra de Simic direciona o olhar preferencialmente a personagens marcantes que o poeta constr�i: trabalhadores da ral� e do lumpesinato urbano, oper�rios pobres, presidi�rios, as ins�litas vidas de por�o, as v�timas redivivas da guerra e do progresso etc... � o que est� nos primeiros versos do fort�ssimo poema “Preocupados an�nimos”: “Somos uma seita apocal�ptica/ Com adeptos que chegam aos milh�es”.

No limite, os seus poemas provocam o leitor com uma poesia pol�tica ir�nica e terr�fica, de alta voltagem, como bem resume a cr�tica Helen Vendler: “Seus emblemas ir�nicos superam, no seu esmero, a severidade de grande parte da poesia social, enquanto apenas permanecem mais terr�veis em suas implica��es humanas do que como expl�cita documenta��o pol�tica”. Atesta essa for�a pol�tica um poema conciso e genial como “Rabiscos no escuro”, cujos versos finais remetem facilmente o leitor brasileiro � aurora drummondiana de “Morte do leiteiro”: “Fios de sangue na sarjeta/ Esperam o amanhecer”.

Se as cenas constru�das com tal peso pol�tico e ficcional s�o desconcertantes para o leitor, vale sublinhar que elas s�o marcadas, como j� indicado acima, pela desola��o. Entretanto h� tamb�m uma insist�ncia no registro do andamento natural da vida, que segue a produzir-se apesar do terror, do caos, do perigo. O paroxismo dessa condi��o � a alus�o cr�tica � figura humanizada de Cristo, de que os poemas “Mec�nica popular”, “Obscuramente ocupado” e “Luz de ver�o” s�o paradigm�ticos.

Poemas feito esses, ordenados em um conjunto coerente o agora dado a lume no Brasil, esbo�am a figura de Simic como a de um talentos�ssimo criador de joias, em cuja obra a concis�o e a agudeza s�o alcan�adas por uma adequa��o perfeita e total entre recursos expressivos, �ngulo cr�tico, mat�ria po�tica e subst�ncia pol�tica. Note-se este talento refletido, finalmente, num trecho de poema em prosa: “No sil�ncio teu cora��o soa como um grilo negro”.

Como se v�, portanto, Simic � autor de uma obra incontorn�vel para quem queira compreender por dentro, e atrav�s da poesia, o nosso tempo, que o poeta aborda indiretamente, num drible po�tico h�bil que exprime de modo radical a sua percep��o da vida, remetendo-nos ao passado para falar de hoje: “Descartes sentia o cheiro/ De bruxas queimando/ Enquanto pensava/ Numa verdade t�o �bvia/ Que ainda n�o conseguimos v�-la”.

*Alexandre Pilati � professor de literatura brasileira da Universidade de Bras�lia e poeta. Autor, entre outros, de “Autofonia” (Penalux, 2018)

ENTREVISTA

RICARDO RIZZO, tradutor

“Simic � mestre nas aberturas e desenlaces”

Que crit�rio foi decisivo na sele��o dos textos de “Meu anjo da guarda tem medo do escuro”?
Comecei a traduzir muitos desses poemas h� muito anos, por volta de 2003, inicialmente em parceria com o poeta Fabio Weintraub, que me apresentou a obra de Simic. Acho que os crit�rios variaram, at� porque inclu� poemas de livros que o poeta lan�ou nos anos seguintes. Mas alguns desses crit�rios est�o refletidos na estrutura do posf�cio ao livro, dividido em quatro partes: sua posi��o na poesia norte-americana e sua rela��o com o surrealismo e o modernismo; a centralidade da experi�ncia da hist�ria como guerra e migra��o; a imagem e a forma po�tica; e o car�ter “inquietante” dessa poesia, relacionado a uma ideia fundamental de justi�a que surge nas transfigura��es do humano. Acho que a sele��o acabou perseguindo na obra dele a rela��o entre estranhamento, deslocamento, inquieta��o e humanidade.

Como foi para voc�, que tamb�m � poeta, a experi�ncia de tradu��o da poesia de Simic, que tem tantas sutilezas e refer�ncias?
Com suas sutilezas e refer�ncias, mas tamb�m com uma rede interna de articula��es e imagens recorrentes, � uma obra que vai ficando mais exigente � medida que se articula internamente, o que tornou a tradu��o, para mim, uma experi�ncia mais imersiva. � poss�vel que isso tamb�m tenha influenciado a sele��o dos poemas de que falei acima: ela pode ter sido levada de arrasto por algumas imagens centrais. Acho que, traduzindo Simic, me vi diante da necessidade de estar “do lado de dentro” de uma voz muito l�mpida, de suas experi�ncias, terrores, fixa��es. Aprende-se muito, desse ponto de vista, a atentar para os arcos internos da escrita. De quebra, Simic � um mestre dos t�tulos, das aberturas e dos desenlaces.

No processo de tradu��o, voc� descobriu alguma dimens�o da poesia de Simic que antes n�o conseguia perceber e que lhe parece decisiva para a obra?
Como essas tradu��es vieram de uma conviv�ncia muito longa, n�o consigo separar muito a leitura da tradu��o. Um aspecto que me parece mais decisivo, muito �nico no Simic, e que se revela na leitura mais sistem�tica, � como o ar dos poemas � contaminado por expectativa de amea�a, desalinho, uma prem�ncia, que tem a ver com a armadura das imagens e da forma, e que se resolve entre o inesperado e a incompletude. Um poema muito famoso – “Feira” – caracteriza bem esse m�todo.

Ali somos levados a observar personagens sobre os quais paira algum mist�rio sutil, e um estranho c�o de seis patas. A meio caminho, nos damos conta de que o “estranho” ali � de outra ordem, e diz respeito ao observador: “...que noite fria, escura / para se estar numa feira”.

“Meu anjo da guarda tem medo do escuro”
Charles Simic
Tradu��o de Ricardo Rizzo.
Todavia
112 p�ginas
R$ 59,90 
E-book: R$ 39,90  


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