
Numa das cenas do livro, a editora de Faye n�o se conforma com ela ter se casado de novo. H� uma reprodu��o do quadro “Salom� com a cabe�a de S�o Jo�o Batista”, de Artemisia Gentileschi, na parede no bar do hotel onde est�o sentadas. Artemisia foi a �nica mulher reconhecida da escola barroca italiana do s�culo 17. A editora n�o se conforma com o fato de Faye ter se casado de novo e estar sujeita � tirania dos homens, como ela pr�pria depois de se separar do marido e de ele a esmagar na primeira oportunidade, arrancando sua cabe�a como � do decapitado no quadro, porque essas s�o as leis, segundo ela, que regem as separa��es.
Faye responde: “Eu tinha esperan�a de derrotar essas leis, falei, atendo-me a elas. Meu filho mais velho certa vez fizera uma c�pia daquele quadro na parede, falei, com a diferen�a de que tinha deixado de fora todos os detalhes e apenas indicado em blocos as formas e as rela��es espaciais entre elas. O interessante, falei, era que sem esses detalhes e a hist�ria � qual eles estavam associados, o quadro se tornava um estudo n�o sobre o assassinato, mas sobre a complexidade do amor.”
� dif�cil comentar “M�rito” sem mencionar os outros livros. Sua arquitetura lembra “Esbo�o”. Aqui temos Faye novamente a bordo de um avi�o recebendo confiss�es �ntimas de um desconhecido na poltrona ao lado. Ela viaja a trabalho, desta vez para um festival liter�rio no Sul da Europa, e n�o para dar aula de escrita na Gr�cia.
Como nas duas obras anteriores (a segunda � “Tr�nsito”), o leitor pouca coisa sabe a respeito de Faye. Seu nome s� � dito uma �nica vez em cada livro. Sua hist�ria � tecida com farrapos e se desvanece o tempo todo, assim como os fragmentos das outras personagens que cruzam por ela, como o do vizinho do avi�o, num desfile de transitoriedades humanas que comp�em o mosaico da sua fic��o. A sustent�-lo est�o as cidades e sua arquitetura habilmente descritas. O resto � pura elipse.
Ela se encontra com colegas, agentes, tradutores, jornalistas, leitores, organizadores de festivais e at� um guia. Como se fosse dotada de dutos, todos lhe contam partes dolorosas de suas vidas e o que pensam a respeito da literatura. “O que todos os publishers estavam buscando, continuou ele – o santo graal do mundo liter�rio moderno, por assim dizer –, eram autores com um bom desempenho no mercado que ao mesmo tempo mantivessem uma conex�o com os valores da literatura; em outras palavras, autores de livros que as pessoas pudessem de fato apreciar sem se sentir diminu�das ao ser vistas lendo-os”, diz seu agente.
Mais adiante, ele diz que as pessoas querem desfrutar do prazer de ler sem ter de passar por dificuldades e cita Robert Musil e T. S. Eliot como amostras do tipo de literatura desconfort�vel. N�o � toa, festivais liter�rios sinonimizam o lugar onde escritores e p�blico conseguem alcan�ar sua sintonia, desde, claro, que os primeiros caprichem nas apresenta��es, como a personagem que faz sua entrada em seguida, Linda.
O papel do escritor n�o � mais o que ele escreve, � sua performance, como as de Linda, que passa a vida de evento em evento como animadora de audit�rio, ao contar por exemplo a cena de uma poeta lendo no palco enquanto seu namorado amarra o tornozelo das pessoas na plateia.
Cusk projeta nos personagens suas pr�prias fragilidades e ang�stias. Linda conta como foi passar 15 dias num castelo no interior da It�lia, numa esp�cie de resid�ncia liter�ria patrocinada por uma vi�va aristocrata, cercada de escritores. Ela se sentia prostitu�da, pois sua fun��o ali dentro, como a dos demais, era apenas massagear o ego da patronesse. Ela come�ou a sentir saudades do marido e da filha no seu apartamento pequeno, que cabia dentro do quarto ornamentado onde estava hospedada. Mas ao finalmente decidir telefonar em desespero para o marido, descobre que a vida familiar era t�o enfadonha quanto desfrutar das solicitudes dos empregados e luxos do castelo.
Ao contr�rio da romancista Elizabeth Costello, da novela hom�nima do sul-africano J. M. Coetzee, as palestras sobre literatura n�o s�o narradas nos livros da trilogia de Cusk, embora a vacuidade de suas vidas de escritores itinerantes guarde muitas seme- lhan�as.
Do bar onde se levantam para a apresenta��o naquela tarde, M�rito pula para a primeira das v�rias entrevistas agendadas para Faye em sua breve estada na cidade – em todas ela nada responde.
A jornalista que a espera no jardim do hotel � a mesma que a entrevistou h� 10 anos e quando ela lhe informa sobre esse encontro se surpreende quando Faye diz se recordar de cada frase do seu relato, de como a invejara pela rotina tranquilizadora com o marido e filhos numa cidadezinha pr�xima dali. Ela a invejava porque a vida de Faye era o contr�rio disso, ao mesmo tempo em que tudo o que ela pr�pria desejava era desfrutar daquela paz imersa num tempo que n�o a sacudisse. Essa revela��o t�o v�vida daquele encontro � o disparador para a verdade que ocultava o relato de 10 anos atr�s, pois a jornalista na realidade tivera apenas a inten��o de causar-lhe inveja, quando sua pr�pria vida era marcada pela inveja que sentia da sua irm�. E como acontece em Cusk, quem passa a falar � o outro.
“A verdade era que vinha me perguntando havia muito tempo o que poderia existir fora do mundo circunscrito do meu casamento e que liberdade e prazeres poderiam estar � minha espera ali; parecia-me que eu havia me comportado de modo bastante honrado com minha fam�lia e minha comunidade e que aquele era um momento no qual eu podia, por assim dizer, renunciar a isso sem causar raiva nem m�goa e fugir na calada da noite”, conta a jornalista.
Todos os personagens de Cusk – incluindo Faye – s�o v�timas do que julgam ser vidas melhores e mais livres que as suas e acabam presas em ilus�es. Todas se consideram merecedoras por seu sacrif�cio autoimposto – a palavra m�rito aparece em v�rios trechos do romance.
Rachel Cusk n�o � Sheila Heti conquanto ambas tenham humor e sintam-se amb�guas com rela��o � maternidade. Cusk � mais s�bia porque ouve mais e tempera sua prosa com po��es menores de ironia, enquanto Heti exagera nos ingredientes picantes e soa muitas vezes sentenciosa. Cusk tampouco se parece com Karl Knausg�rd, ela n�o est� interessada em narrar cada minuto de sua vida em milhares de p�ginas como o cultuado escritor noruegu�s. Cusk tem algum parentesco com Chris Kraus, mas sem rumina��es muito te�ricas e toda aquela infla��o intelectual. No entanto, muitos cr�ticos, premidos para encaix�-la em algum g�nero, a rotulam como autora de au- tofic��o. Se Cusk se aproxima de algu�m em sua trilogia � da Pr�mio Nobel Svetlana Aleksi�vitch, a grande escritora da escuta e empatia.
*Andr� Nigri � jornalista e autor das fic��es “Com a corda no pesco�o” e “Paralisia”

M�RITO
.Rachel Cusk
.Editora Todavia
.192 p�ginas
.R$ 59,90
.R$ 46,90
TRECHOS
“'Vez ou outra', continuou ela pouco depois, 'encontrei pessoas que tinham se libertado de seus relacionamentos fami- liares. Mas sempre parece haver nessa liberdade uma esp�cie de vazio, como se para abrir m�o dos parentes essas pessoas tivessem sido obrigadas a abrir m�o de uma parte de si. Como o homem na geleira que cortou fora o pr�prio bra�o'”, disse ela com um leve sorriso. 'N�o pretendo fazer isso. Meu bra�o �s vezes d�i, mas considero meu dever ficar com ele.'”
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“'Minha m�e � muito boa conosco', disse ela, 'apesar de eu ser a primeira pessoa da minha fam�lia a me divorciar e de isso ser um estigma para ela, que ela n�o consegue me permitir esquecer. Olha para o meu filho quando sabe que a estou observando e leva a m�o � boca como se algum objeto de valor incalcul�vel tivesse acabado de cair no ch�o e se espatifado em mil peda�os bem diante dos seus olhos. Ela o trata como se ele tivesse alguma doen�a terr�vel', disse ela, 'e talvez ele tenha mesmo, mas nesse caso cabe a ele sobreviver � doen�a, mesmo que os outros demonstrem empatia.'”