
Nesse sentido, L�cio Cardoso (1912-1968) � daqueles autores de dif�cil classifica��o: cronologicamente modernista, sua obra alcan�ou express�es deste e de outros estilos, dialogando com tend�ncias rom�nticas, realistas e simbolistas em diversos momentos. Na verdade, L�cio excede as fronteiras das defini��es lineares e simplistas, t�o comuns nos nossos manuais de ensino de literatura, em geral pautados pela l�gica da cronologia.
Entre os tantos escritores que admiraram e/ou desprezaram o mineiro de Curvelo, M�rio de Andrade foi, certamente, aquele que mais “sofreu” para construir uma opini�o honesta sobre o autor da “Cr�nica”. Escrevendo a Fernando Sabino, em 2/2/1944, assim M�rio afirmou: “O caso do L�cio Cardoso tem sido uma das trag�dias do, n�o sei si diga do meu pensamento, ou si duma opini�o apenas mais indecisa, mas na certa uma das trag�dias do meu pensamentear”.
Tal afirma��o ilustra bem o entre-lugar de L�cio no contexto liter�rio da �poca, deixando claro o n�o consenso cr�tico em rela��o � sua obra. Todavia, o mesmo M�rio de Andrade, tendo falecido em 1945, n�o conseguiu ler a “Cr�nica da casa assassinada”, que penso, certamente, teria transformado a sua opini�o acerca do autor de Curvelo.
Tal afirma��o ilustra bem o entre-lugar de L�cio no contexto liter�rio da �poca, deixando claro o n�o consenso cr�tico em rela��o � sua obra. Todavia, o mesmo M�rio de Andrade, tendo falecido em 1945, n�o conseguiu ler a “Cr�nica da casa assassinada”, que penso, certamente, teria transformado a sua opini�o acerca do autor de Curvelo.
Dimens�o epistolar
Neste sentido, este romance � uma experi�ncia totalmente h�brida no que concerne �s fronteiras e presen�as do pr�prio g�nero narrativo, no qual temos grafias de cartas, di�rio, mem�rias, (auto)biografia etc., tudo hibridizado na economia do seu enredo. Ou seja, trata-se de uma narrativa assaz polif�nica n�o apenas no que concerne �s vozes que nela atravessam, mas tamb�m o � na sua estrutura, na (des)organiza��o dos g�neros que a comp�em, fator este que contribui para a sua riqueza expressiva. Entretanto, um aspecto desta obra deve ser sempre lembrado e ressaltado: a sua dimens�o epistolar.
De fato, creio que cada cap�tulo � uma carta enviada a um destinat�rio m�ltiplo e sempre renovado. Na “Cr�nica”, os cap�tulos (cartas) exp�em n�o apenas o universo �ntimo de cada personagem e os seus sentimentos mais rec�nditos, mas tamb�m as motiva��es e porqu�s das suas atitudes e op��es. Podemos pensar numa esp�cie de narrativa dentro da narrativa, isto �, o texto epistolar se funde ao todo do romance provocando esta simbiose que se interliga em sentidos e sintomas, explicando e problematizando determinadas situa��es da hist�ria romanesca e suas intrigas.
Podemos dizer que a “Cr�nica” � um “romance para dentro” dos personagens e dos seus dramas existenciais. Todos vivem trancados dentro da Ch�cara dos Meneses, lugar de conviv�ncia problem�tica e sempre tensa, onde o tradicionalismo � putrefato e necrosa as rela��es e afetos, dando a certeza de que a tragicidade � o fim mesmo de cada um.
Desejos e taras
Lembro aqui de uma das afirma��es mais contundentes do di�rio pessoal de L�cio Cardoso: “N�o h� pior sofrimento do que permanecer � margem”. � essa a sensa��o que se tem ao tornarmo-nos c�mplices, via leitura, das inquieta��es ontol�gicas de cada morador da fat�dica ch�cara da fam�lia Meneses: ningu�m est� no centro, mas todos orbitam � margem de si pr�prios e dos seus horrores pessoais, dos seus desejos e taras sexuais mal resolvidos, da tradi��o amargamente herdada dos antepassados, do sil�ncio emudecedor que se faz presente � for�a.
S� me lembro aqui da mudez imposta a Tim�teo, a quem o narrador descreve como “um rebotalho humano, decr�pito e enxundioso, que mal conseguia se mover e que j� atingira esse grau extremo em que as semelhan�as animais se sobrep�em �s humanas”. S� essa caracteriza��o j� antecipa muito do que o leitor encontrar� ao abrir este livro.
S� me lembro aqui da mudez imposta a Tim�teo, a quem o narrador descreve como “um rebotalho humano, decr�pito e enxundioso, que mal conseguia se mover e que j� atingira esse grau extremo em que as semelhan�as animais se sobrep�em �s humanas”. S� essa caracteriza��o j� antecipa muito do que o leitor encontrar� ao abrir este livro.
H� muito que n�o se publicava a “Cr�nica da casa assassinada”, hiato este preenchido e resolvido nesta edi��o da Companhia das Letras. Trata-se de um belo trabalho de resgate e divulga��o da obra m�xima de L�cio Cardoso, que nos chega enriquecida de um pref�cio, assinado por Chico Felliti, no qual temos uma excelente hermen�utica deste romance: “A narrativa de ‘Cr�nica da casa assassinada’ � um exerc�cio de claustrofobia liter�ria”; penso que seja isso mesmo. Mas essa edi��o tamb�m traz a inesquec�vel cr�nica de Clarice Lispector, cuja paix�o juvenil por L�cio � sempre lembrada quando se fala de ambos.
Finalmente, completa este volume a nota biogr�fica escrita por �sio Macedo Ribeiro, sem d�vidas, a maior autoridade que temos em assuntos cardosianos. Neste texto, sabemos que a “fam�lia Meneses realmente existiu, e que tinha uma ch�cara pr�xima da cidade de Cataguases, Minas Gerais”. Um fato realmente interessante, pois sempre houve dissenso em rela��o � veracidade ou n�o deste fato.
Finalmente, completa este volume a nota biogr�fica escrita por �sio Macedo Ribeiro, sem d�vidas, a maior autoridade que temos em assuntos cardosianos. Neste texto, sabemos que a “fam�lia Meneses realmente existiu, e que tinha uma ch�cara pr�xima da cidade de Cataguases, Minas Gerais”. Um fato realmente interessante, pois sempre houve dissenso em rela��o � veracidade ou n�o deste fato.
Enfim, L�cio Cardoso nos convida novamente � leitura de sua “Cr�nica”. Um exerc�cio complicado e dif�cil que nos tira do nosso ch�o seguro, que nos interpela e causa uma certa sensa��o de n�usea, que nos desorganiza e, em certos leitores, pode provocar um v�mito positivo – met�fora do que a literatura pode despertar e (re)construir.
*Leandro Garcia � professor da Faculdade de Letras da UFMG e organizador do livro “L�cio Cardoso – 50 anos depois” (Relic�rio)
Trecho
“Dir�o que isto talvez n�o passasse de impress�o exagerada, mas a verdade � que de h� muito eu pressentia um mal qualquer devorando os alicerces da Ch�cara. Aquele reduto, que desde a minha inf�ncia – h� quanto tempo, quando a estrada principal ainda se apertava entre ricos vinh�ticos e p�s de aroeira, tortuosa, cheia de brejos e de ciladas, um pr�mio quase para quem se aventurasse t�o longe... – eu aprendera a respeitar e admirar como um monumento de tenacidade, agora surgia vulner�vel aos meus olhos, fr�gil ante a destrui��o pr�xima, como um corpo gangrenado que se abre ao fluxo dos pr�prios venenos que traz no sangue. (Ah, esta imagem de gangrena, quantas vezes teria de voltar a ela – n�o agora, mais tarde – a fim de explicar o que eu sentia, e o drama que se desenrolava em torno de mim.
Gangrena, carne desfeita, arroxeada e sem serventia, por onde o sangue j� n�o circula, e a for�a se esvai, delatando a pobreza do tecido e essa eloquente mis�ria da carne humana. Veias em f�ria, escravizadas � alucina��o de um outro ser oculto e monstruoso que habita a composi��o final da nossa trama, fam�lico e desregrado, erguendo ao longo do terreno vencido os esteios escarlates de sua vit�ria mortal e purulenta.)”
Gangrena, carne desfeita, arroxeada e sem serventia, por onde o sangue j� n�o circula, e a for�a se esvai, delatando a pobreza do tecido e essa eloquente mis�ria da carne humana. Veias em f�ria, escravizadas � alucina��o de um outro ser oculto e monstruoso que habita a composi��o final da nossa trama, fam�lico e desregrado, erguendo ao longo do terreno vencido os esteios escarlates de sua vit�ria mortal e purulenta.)”
De novo no cinema
Escrito por um mineiro, "Cr�nica da casa assassinada" chegar� novamente ao cinema em adapta��o dirigida por outro mineiro. Jos� Luiz Villamarim, diretor de s�ries como "Onde nascem os fortes" e da novela "Amor de m�e", encomendou um roteiro de longa-metragem ao parceiro George Moura, com quem trabalhou em "Redemoinho", adaptado do livro de Luiz Ruffato. "Nunca tinha lido Cardoso e j� mergulhei no seu romance mais complexo por ossos do of�cio. Entrei de cabe�a na hist�ria de Nina e Ana e no decl�nio da fam�lia Meneses", contou o roteirista.
Moura descreve a leitura do livro de L�cio Cardoso como "uma vertigem": "� uma floresta densa repleta de reviravoltas movidas a desejos vividos e outros tantos reprimidos: � alta literatura, com uma min�cia barroca de tirar o f�lego, perturbador." A primeira adapta��o do livro foi dirigida por Paulo C�sar Saraceni em 1971 e, com o t�tulo "A casa assassinada", recebeu o Candango de Melhor Longa-Metragem do Festival de Bras�lia no mesmo ano.
Moura descreve a leitura do livro de L�cio Cardoso como "uma vertigem": "� uma floresta densa repleta de reviravoltas movidas a desejos vividos e outros tantos reprimidos: � alta literatura, com uma min�cia barroca de tirar o f�lego, perturbador." A primeira adapta��o do livro foi dirigida por Paulo C�sar Saraceni em 1971 e, com o t�tulo "A casa assassinada", recebeu o Candango de Melhor Longa-Metragem do Festival de Bras�lia no mesmo ano.

“Cr�nica da casa assassinada”
De L�cio Cardoso
Companhia das Letras
560 p�ginas
R$ 84,90
E-book: R$ 39,90
“L�cio me transformou em mineira”
Clarice Lispector*
“L�cio, estou com saudade de voc�, corcel de fogo que voc� era, sem limite para o seu galope (...). De sua doen�a restaria tamb�m o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto pre�o do jogo (...). Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a beleza em seus tra�os.
Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora n�o ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolesc�ncia. Naquela �poca, ele me ensinava como se conhecem as pessoas atr�s das m�scaras, ensinava o me- lhor modo de olhar a lua. Foi L�cio quem me transformou em ‘mineira’: ganhei diploma e conhe�o os maneirismos que amo nos mineiros.
N�o fui ao vel�rio, nem ao enterro, nem � missa porque havia dentro de mim sil�ncio demais. Naqueles dias eu estava s�, n�o podia ver gente: eu vira a morte.”
Trechos de cr�nica de Clarice Lispector publicada no Jornal do Brasil em 11 de janeiro de 1969, quatro meses depois da morte de L�cio Cardoso. A �ntegra foi inclu�da na nova edi��o de “Cr�nica da casa assassinada”