
Em �ltima an�lise, sedimentou o caminho que daria mais tarde o Nobel de Literatura para a escritora, em 1909, o primeiro concedido a uma mulher, o primeiro para escritor da Su�cia. Mais tarde, em 1914, a autora foi ainda a primeira mulher a fazer parte da Academia Sueca, a mesma que concede o pr�mio anualmente – outros sete suecos, ali�s, j� abocanharam o Nobel desde ent�o, o que deixa claro que, perdido o pudor inicial que parece ter contido o comit� durante uns poucos anos iniciais, a brasa da sardinha brilha com intensidade para aqueles lados.
A regi�o onde nasceu Selma Lagerl�f, no condado de V�rmland (situado a leste da capital, mais ou menos no centro inferior do mapa do pa�s), est� no cerne do romance, que ali�s parece ser inteiro composto de contos relativamente interligados, com personagens que resvalam para lendas locais: duendes, bruxas, gigantes, ninfas, e aten��o especial � dedicada � natureza, ela mesma uma das personagens, em que pese o n�mero grande de fundi��es que movimentam tamb�m a economia local e que conferem esp�cie de contraponto p� no ch�o � prosa de Lagerl�f. Ali�s, esse contraste de lendas e relatos populares com o realismo naturalista ent�o em voga tamb�m na Su�cia foi outro ponto que chamou a aten��o de p�blico e cr�tica.
Bem balanceado
Parte da sagacidade da autora � a mistura em medidas equilibradas entre trag�dias e um tom esperan�oso e otimista. “O ano se arrastava em uma pesada melancolia”, ela escreve. Logo em seguida, todavia: “Mas � noite todos os esp�ritos desfaziam-se dos grilh�es, libertados pela aguardente. Os impulsos afloravam, o cora��o se acalentava, a vida tornava-se radiante, a m�sica soava, as rosas emanavam perfume”.
Transformado em mendigo, G�sta Berling parece realmente ter alcan�ado o fundo do po�o. Nada o constrange mais, nem roubar crian�a de sua farinha para trocar por bebida. Entretanto, � salvo pela senhora de Ekeby, Margareta Celsing. Ent�o, pausa para contar parte da hist�ria dela, como deixou de ser a bela jovem de outrora para se transformar na mulher mais poderosa da prov�ncia de V�rmland depois de ser submetida a um casamento arranjado.
A potencial reden��o de G�sta Berling, al�ado a nova condi��o, de cavalheiro (misto de membro de t�vola redonda e ap�stolo), � na verdade motivo para novas rota��es da narrativa, uma vez que o grupo � de gente folgada, pouco disposta ao trabalho. Acresce que Berling � dotado de beleza f�sica, o que vai causar a perdi��o de muita jovem das redondezas (e mais uma sucess�o de cap�tulos para as atribula��es amorosas da personagem).
A potencial reden��o de G�sta Berling, al�ado a nova condi��o, de cavalheiro (misto de membro de t�vola redonda e ap�stolo), � na verdade motivo para novas rota��es da narrativa, uma vez que o grupo � de gente folgada, pouco disposta ao trabalho. Acresce que Berling � dotado de beleza f�sica, o que vai causar a perdi��o de muita jovem das redondezas (e mais uma sucess�o de cap�tulos para as atribula��es amorosas da personagem).
O limbo entre a��es heroicas e privil�gios de classe joga luzes e matizes sobre quest�es morais que interessam particularmente � autora discutir. Um dos personagens que deseja entrar como membro do grupo de cavalheiros, por exemplo, Sintram, � patr�o da fundi��o de Fors e pactuado claramente com o Diabo. � a chegada de Sintram que permite iniciar negocia��o com o grupo, na qual a senhora de Ekeby, agora vista como bruxa, ter� que ser banida, para que uma nova ordem de poder se estabele�a.
Em troca, os cavalheiros ficam com sete fundi��es durante um ano e precisam agir de acordo com regras estabelecidas para a classe. No fim do per�odo, ver�o se podem permanecer com as fundi��es ou se o Diabo vai recolher doze almas. Ou seja, aquela que salva Berling da amargura � enviada por ele para um per�odo de sofrimento. Ningu�m � exclusivamente bom ou mau, sobretudo h� muito tom cinzento no caminho.
Em troca, os cavalheiros ficam com sete fundi��es durante um ano e precisam agir de acordo com regras estabelecidas para a classe. No fim do per�odo, ver�o se podem permanecer com as fundi��es ou se o Diabo vai recolher doze almas. Ou seja, aquela que salva Berling da amargura � enviada por ele para um per�odo de sofrimento. Ningu�m � exclusivamente bom ou mau, sobretudo h� muito tom cinzento no caminho.
Diferen�as
A ordem do trabalho, de um lado, as obriga��es morais e, de outro, a for�a de uma comunidade, junto da alegria das festas, os destemperos do amor e uma felicidade natural refor�ada por la�os de solidariedade s�o os ingredientes com que Selma Lagerl�f constr�i o romance caudaloso, a certa altura mesmo intermin�vel, dado o andamento lento com que � constru�do.
Ali�s, a met�fora de romance-rio (roman fleuve, como normalmente se usa, em franc�s, para definir obras gigantes como a de Proust, por exemplo) � retomada por Marguerite Yourcenar no ensaio inclu�do ao final da bela edi��o que o livro recebeu em portugu�s. Mas a escritora francesa atualiza a met�fora para nome�-la epopeia-rio, “procedente das pr�prias fontes do mito”. H� uma aposta na mistura entre a corrente pag� e a corrente crist�, com valores em conflito e uma inteligente aus�ncia de tomada de partido por parte da narrativa. Os modelos mais evidentes de Selma: Homero, claro, e o escoc�s Thomas Carlyle.
Ali�s, a met�fora de romance-rio (roman fleuve, como normalmente se usa, em franc�s, para definir obras gigantes como a de Proust, por exemplo) � retomada por Marguerite Yourcenar no ensaio inclu�do ao final da bela edi��o que o livro recebeu em portugu�s. Mas a escritora francesa atualiza a met�fora para nome�-la epopeia-rio, “procedente das pr�prias fontes do mito”. H� uma aposta na mistura entre a corrente pag� e a corrente crist�, com valores em conflito e uma inteligente aus�ncia de tomada de partido por parte da narrativa. Os modelos mais evidentes de Selma: Homero, claro, e o escoc�s Thomas Carlyle.
� poss�vel assinalar numa leitura mais cuidadosa a interface dos mitos, recuperados por Selma Lagerl�f, com outras mitologias. Assim, o personagem Kevenh�ller, filho de um conde, forma-se mestre relojoeiro, mas interage de maneira simp�tica com uma ninfa da floresta, alertando-a para n�o deixar a cauda exposta, e recebe em troca da gentileza um dom, a habilidade de fazer com as m�os qualquer obra que desejar, “mas apenas uma de cada tipo”. O presente � ao mesmo tempo recompensa e maldi��o.
Kevenh�ller fabrica um carro que anda sozinho sem necessidade de cavalos (as narrativas se passam na d�cada de 20 do s�culo 19), uma torre bem alta que lembra simultaneamente Babel e o labirinto do Minotauro, asas para voar, um sol port�til, a �ltima e mais potente das cria��es. Claro, a cada invento segue-se uma decep��o resultante do mau emprego que o inventor faz do portento (para usar a express�o empregada na narrativa), a ponto de Kevenh�ller solicitar por fim � ninfa para que lhe retire o g�nio criativo. “Deixa-me ser um homem comum!”, implora. E depois de lhe retirar o dom, a ninfa esclarece que pretendia apenas poup�-lo do trabalho manual, nada o impedia de “fazer com que outros reproduzissem as tuas cria��es”. Parece S�sifo, lembra Cassandra, tem muito de Midas, pitadas de D�dalo.
� com essa receita ampla que Selma Lagerl�f constr�i cuidadosamente as m�ltiplas tramas do romance, apresentando trechos da vida de personagens que mais tarde sofrem desenvolvimentos devidos, um pouco como se acompanhasse fragmentos de diferentes etapas de uma mesma exist�ncia. N�o de forma gratuita, ela termina o texto com potente met�fora que oscila entre a grandiosidade da fantasia e a pequenez da realidade, esse contraste que sempre foi importante em todas as �pocas.
* Paulo Paniago � professor de jornalismo da Universidade de Bras�lia e autor de “Outra viagem: Machado de Assis e a revolu��o da literatura brasileira” (Patu�)
Trecho
Se as coisas mortas tamb�m amam, se a terra e a �gua distinguem os amigos dos inimigos, eu bem gostaria de conquistar este amor. Gostaria que a terra verdejante n�o sentisse meus passos com o peso de um fardo. Gostaria que perdoasse que, por minha causa, tem de ser ferida com arados e grades, e que de bom grado se abrisse para receber meu corpo morto. E eu gostaria que a onda, cujo espelho reluzente meus remos partem, tivesse comigo a mesma paci�ncia que uma m�e tem com a crian�a cheia de entusiasmo que lhe sobe ao colo sem atentar para a seda lisa do vestido de gala.
Com o ar puro, que ondula sobre as montanhas azuis, eu gostaria de travar amizade, e tamb�m com o sol reluzente e as belas estrelas. Pois a mim com frequ�ncia parece que as coisas mortas sentem e sofrem como as vivas. N�o h�, entre elas e n�s, uma diferen�a t�o grande quanto em geral se pensa. Que tipo de mat�ria terrestre n�o participa do ciclo da vida? Acaso o p� que se ergue da estrada n�o foi acariciado como cabelos macios ou amado como m�os boas e benfazejas? Acaso a �gua no sulco deixado pelas rodas dos ve�culos n�o correu antes como sangue por um cora��o palpitante?
Com o ar puro, que ondula sobre as montanhas azuis, eu gostaria de travar amizade, e tamb�m com o sol reluzente e as belas estrelas. Pois a mim com frequ�ncia parece que as coisas mortas sentem e sofrem como as vivas. N�o h�, entre elas e n�s, uma diferen�a t�o grande quanto em geral se pensa. Que tipo de mat�ria terrestre n�o participa do ciclo da vida? Acaso o p� que se ergue da estrada n�o foi acariciado como cabelos macios ou amado como m�os boas e benfazejas? Acaso a �gua no sulco deixado pelas rodas dos ve�culos n�o correu antes como sangue por um cora��o palpitante?

.Selma Lagerl�f
.Posf�cio de Marguerite Yourcenar
.Tradu��o de Guilherme da Silva Braga
.Carambaia
.416 p�ginas
.R$ 129,90
.E-book: R$ 89,90