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Estado de Minas LITERATURA

Virginia Woolf: ensaios e di�rios mostram for�a da prosa da autora inglesa

Reedi��es e novas publica��es no Brasil revelam detalhes sobre a escritora de 'Mrs Dalloway', antes considerada para poucos leitores


13/08/2021 06:00 - atualizado 13/08/2021 07:27

Virginia Woolf: novos lançamentos revelam a profundidade de uma das maiores escritoras do século 20(foto: George Charles Beresford)
Virginia Woolf: novos lan�amentos revelam a profundidade de uma das maiores escritoras do s�culo 20 (foto: George Charles Beresford)
As pontas do arco temporal da produ��o autobiogr�fica de Virginia Woolf (1882-1941) passam a se tocar em nossas prateleiras com a publica��o do primeiro volume de seus di�rios e de "Um esbo�o do passado", traduzidos pela pesquisadora Ana Carolina Mesquita para a editora N�s. Enquanto aguardamos o conte�do dos demais di�rios - o segundo volume est� previsto para setembro deste ano e o quinto e �ltimo para 2025, ano do centen�rio de "Mrs. Dalloway" -, a leitura dessas p�ginas inaugurais, casada com as memorial�sticas, revela um eu comprometido com tra�os que identificamos na obra como um todo de uma das maiores escritoras do s�culo 20 do que com qualquer desejo de confiss�o ou que possa saciar quem est� mais interessado em um anedot�rio psicodocumental do que em literatura.

Tanto a autora estreante, que registra em proximidade m�xima dos acontecimentos entre seus 33 e 35 anos de idade ("Di�rio I - 1915-1918"), como a consagrada, a elaborar o vivido em retrospectiva, com quase 60, entre 1939 e 1940 ("Um esbo�o do passado"), abordam os choques e as banalidades da vida a partir de um deslocamento para fora de si em g�neros nos quais se espera o contr�rio. Topamos com "O mundo visto sem eu", como descrito pelo personagem Bernard em "As ondas"(1931), que acaba de ganhar nova edi��o no Brasil, da Aut�ntica, com tradu��o de Tomaz Tadeu.

Nesse exerc�cio de ler a Virginia por ela mesma em dois tempos, tamb�m chama a aten��o a centralidade dos di�rios e das mem�rias, dos quais ela era leitora ass�dua, no interior de seu projeto liter�rio, como a constata��o de que a passagem dos anos n�o abala reflex�es precoces. Se existem semelhan�as entre esses di�rios da escritora e o que ela cria no conto "O di�rio de mistress Joan Martyn"(1906), inclu�das suas considera��es sobre o g�nero, o mesmo pode ser dito sobre as mem�rias e as provoca��es contidas no conto "Mem�rias de uma romancista" (1909): "Que direito tem o mundo de saber sobre homens e mulheres?".

Cito outro trecho desse conto na tradu��o de Leonardo Fr�es, tendo em mente a elabora��o, em "Um esbo�o do passado", da morte da m�e de Virginia quando a escritora tinha apenas 13 anos: "Quando miss Linsett � for�ada a falar dela, e n�o dos tios dela, o resultado � este: 'Frances, assim, com a idade de 16 anos, foi deixada sem a m�e que a cuidasse. [...] nem mesmo a am�vel companhia de seu pai e irm�os era capaz de preencher aquele lugar [mas nada sabemos de mrs Willat]". Se a mera associa��o com o vivido � banal, o entendimento de que somos formados por aus�ncias que as biografias n�o d�o conta de preencher com seu amontoado de fatos � chave para todo um conjunto autoral.

Esta��es do ano

Tamb�m vale ressaltar o papel dos coment�rios sobre as esta��es do ano e do clima nesses escritos de Virginia, tamb�m relevantes nos outros. Se chove, neva ou se faz sol est�o entre os eventos mais exteriores aos dom�nios humanos, talvez esteja nesse contato com as for�as naturais que n�o se controla onde a interioridade mais possa ser vislumbrada. � manh� de primavera, a m�e de Virginia acaba de morrer, e ela escreve no presente do indicativo e entre aspas nas mem�rias: "N�o sinto absolutamente nada".

A disposi��o da autora de "Um teto todo seu"de voltar-se para fora e expor-se �s intemp�ries dos dias que correm ou retornam n�o deixa de ser uma esp�cie de imposi��o que a coloca a caminho e ao relento o tempo todo, mesmo quando patroa e anfitri�. Est� a c�u aberto, onde sobrevoam avi�es inimigos em noite de bombardeios, as asas da morte que levam embora a meia-irm� em plena adolesc�ncia e as m�os de um abusador que lhe percorrem o corpo de menina. Entram em jogo temporalidades que n�o correspondem apenas �s restritas � sua biografia e incluem o que ela nomeia de "presen�as invis�veis", al�m de "instintos adquiridos por milhares de suas ancestrais no passado".

A conviv�ncia intensa com os outros, dos meros conhecidos aos mais �ntimos, dos ilustres aos an�nimos, passando pela tens�o recorrente com as empregadas da casa e por observa��es pouco amistosas sobre as mulheres que participam de um grupo de sufragistas, de alguma forma refletem o impasse contido na afirma��o: "Eu n�o sei at� que ponto sou diferente das outras pessoas". Quest�o que, para Virginia, est� entre as dificuldades de quem escreve mem�rias, mas certamente tamb�m di�rios. O resultado? Escritos de si nos quais reconhecemos uma impessoalidade pr�pria do sujeito moderno que ela tanto buscou captar, ciente da impossibilidade de qualquer totaliza��o.

Depois de avan�armos v�rias p�ginas do di�rio da escritora e j� em contato com certa despersonaliza��o, � a pr�pria Virginia que, ao se comparar � outra autora de di�rio, escreve em 22 de novembro de 1917: "Tanto me gabei em Garsington deste livro [o di�rio], & do encanto de escrev�-lo a partir de uma fonte inesgot�vel, que sinto vergonha de estar saltando dias; & entretanto, conforme observei, a �nica chance que ele possui � aguardar o humor de escrever. Ottoline tamb�m mant�m um, ali�s, por�m dedicado � sua 'vida interior'; o que me levou a refletir que n�o possuo vida interior". Vale destacar um salto de quase dois anos sem registros nos di�rios que corresponde ao per�odo em que, ap�s o lan�amento de "A viagem"(1915), ela sofre um colapso e tenta suic�dio. Mas essa informa��o n�o sabemos atrav�s de sua pena.

A inexist�ncia de separa��o r�gida entre o indiv�duo e o mundo nos di�rios e nas mem�rias vem de encontro com o que escreve o bi�grafo Herbert Marder, em "A medida da vida"(2000), a respeito do efeito que a escritora atinge em "Ao farol"(1927), mas n�o apenas nesse romance: "estar ao mesmo tempo envolvida na a��o e invis�vel ou, como ela mesma escreveu sobre Shakespeare, estar 'serenamente presente-ausente'".

E tamb�m com o que constata Maurice Blanchot no cap�tulo que dedica aos di�rios de Virginia em "O livro por vir"(1959), quando referese � dispers�o que n�o pode ser confundida com um jogo de apar�ncias; � voca��o de quem escreve como um desertor de si mesmo; � necessidade identificada pela pr�pria escritora de sair da vida e de si para captar a realidade e assim escrever literatura. No��o de realidade identificada na taquigrafia woolfiana como a conjuga��o dos "momentos de ser"em meio ao imp�rio do "n�o ser".

A dissolu��o com m�todo

Para Virginia, "a vida de uma pessoa n�o est� limitada a seu corpo nem ao que ela diz ou faz", conforme lemos nas mem�rias. Ainda que estejam em foco contextos hist�ricos e sociais bastante marcados, uma vez que o universo da inglesa est� at� certo ponto delimitado por um c�rculo de interesses e rela��es de uma classe m�dia alta inglesa, influente e intelectualizada, ele n�o se reduz. A dissolu��o como m�todo � capaz de trazer para a superf�cie aspectos comuns, se n�o a todos, possivelmente reconhec�veis por seus leitores de qualquer tempo e lugar.

Nessa toada, as observa��es sobre personagens aparentemente irrelevantes e dos afazeres mais corriqueiros seja na casa, nas compras ou na Hogarth Press, editora que fundou com seu marido, Leonard Woolf, n�o s�o menos importantes do que as leituras de cl�ssicos e os testemunhos de ineg�vel relev�ncia hist�rica, caso do cotidiano sob a Primeira Guerra Mundial, nos di�rios, e a Segunda Grande Guerra, nas mem�rias. O per�odo em que Virginia escreve "Um esbo�o do passado", ali�s, n�o � um dado extratextual. Ao tratar das reminisc�ncias de inf�ncia e juventude, ela lan�a m�o de um recurso caracter�stico dos di�rios: "Escrevo a data porque creio que descobri uma forma poss�vel para essas anota��es. Isto �, fazer com que incluam o presente".

Embora Virginia afirmasse que nessas p�ginas sua pena corresse mais frouxa do que nas ficcionais, essa suposta soltura n�o se resume a um campo de experimenta��o para contos e romances. E se, �s vezes, ela julgava "superficial"o que realizava em seus di�rios, em outras, os considerava "sua obra mais importante"ou sua "verdadeira grande obra", como cita a tradutora.

Do mesmo modo, o argumento de que ela escreveria suas pr�prias mem�rias como um descanso para o trabalho ent�o em curso, a biografia do pintor e cr�tico Roger Fry (1866-1934), n�o convence quando se sabe que o inacabado "Um esbo�o do passado"j� fora submetido a v�rias revis�es, isto �, estava sob o mesmo procedimento de qualquer outro de seus grandes livros. E como tais, di�rios e mem�rias, merecem ser lidos.

Luciana Araujo Marques � jornalista e pesquisadora de literatura e teoria liter�ria


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