Confira, a seguir, uma entrevista com o catarinense Tomaz Tadeu, autor da nova tradu��o de "As ondas". Ex-seminarista, ele j� traduziu para a editora aut�ntica obras de James Joyce, Herman Melville e outros livros cl�ssicos de Virginia Woolf, como "Orlando", "Mrs Dalloway" e "Ao farol"
Quais foram os maiores desafios para a tradu��o de Virginia Woolf em "As ondas"?
Foram muitos e imensos. Embora Virginia tivesse, antes, escrito obras de fic��o que rompiam com o c�none realista do romance tradicional ("Mrs Dalloway", "O quarto de Jacob', 'Ao Farol"), nada se compara com o experimentalismo radical de "As ondas". N�o h� nada, aqui, que seja �bvio e de f�cil leitura. Para come�o de conversa, nenhum dos seis personagens "fala" uma �nica palavra, embora todas as suas manifesta��es sejam todas assinaladas, invariavelmente, pelo verbo narrativo por excel�ncia, "dizer", na terceira pessoa do pret�rito ("disse").
Se quisermos nomear essa caracter�stica no jarg�o das teorias da narrativa, essas "falas" todas podem ser classificadas como "mon�logo interior", ou seja, expressam o que os personagens pensam ou sentem e n�o o que realmente dizem ou falam. E, no entanto, essas mentes parecem se comunicar entre si e at� mesmo adivinhar os sentimentos e pensamentos umas das outras. Al�m disso, esses pensamentos n�o se expressam, estilisticamente, por frases cortadas, grudadas umas nas outras sem nenhuma conex�o, como nos mon�logos interiores mais conhecidos, como os de Molly Bloom, no �ltimo cap�tulo de "Ulisses".
Pelo contr�rio, os seis personagens, tr�s mulheres e tr�s homens, se expressam num estilo elevado, sofisticado, formal. Al�m disso, o texto �, com exce��o dos interl�dios, todo ele, el�ptico, conciso, misterioso. Se acompanharmos o texto do romance pela leitura dos rascunhos que foram preservados, perceberemos que Virginia simplesmente cortou todas as conex�es que poderiam tornar o texto mais compreens�vel. Ou seja: virem-se! Captem-me, se forem capazes.
Como esta obra se situa no contexto da produ��o de Woolf e na literatura do s�culo 20?
Como j� disse, "As ondas" contrasta com os outros romances que ela escreveu, ainda que eles tenham feito avan�ar a prosa de fic��o do s�culo 20. "As ondas" rompe com todas as conven��es estil�sticas da �poca. O livro se coloca, nessa perspectiva, ao lado de "Ulisses" de James Joyce e de tantas outras experimenta��es ao longo daquele s�culo, tanto na prosa quanto na poesia. Curiosamente, Virginia come�ou com romances bastante convencionais ("Noite e dia", "The voyage out") e terminou com um romance que se poderia classificar como tradicional ("Os anos") (se ignorarmos "Entre os atos", publicado postumamente), mas no meio temos essa obra �mpar, inigual�vel, original, que se chama "As ondas".
Nesse sentido, o livro se compara a todas as experimenta��es (o roman nouveau, as metafic��es, etc.) que, na �ltima metade do s�culo 20, revolucionaram o que se entende por romance. E quando se fala de experimentalismo, como no caso de Virginia com "As ondas", n�o se est� falando apenas de veleidades liter�rias, mas de uma vis�o renovada e revista do mundo, da vida. Neste caso, o romance, a fic��o se p�em ao lado do pensamento, da filosofia. Outro mundo, outra vis�o de mundo, outra narrativa. H� um v�nculo estreito entre o que pensamos e o que narramos. Contar hist�rias � pensar. E vice-versa. A imagina��o � reflex�o. E vice-versa.
Quais as tem�ticas centrais abordadas nesta obra e o que estas t�m a dizer aos leitores do s�culo 21?
S�o muitas: a identidade (quem sou eu?, quem � o eu?, que somos n�s?); a diversidade (um � isto; outro, aquilo; outro ainda, aquele outro: introspectivos, mundanos, sonhadores, pr�ticos, sensualistas, perturbados, caseiros, extrovertidos); o pol�tico (quem manda?, quem obedece?, quem oprime?; quem � oprimido?; que estrutura introjetamos?, como resistimos?). "As ondas" � um livro atual�ssimo. N�o por acaso, Virginia estruturou seu livro sem uma �poca definida, definitiva: � a Londres, a Inglaterra do final do s�culo 19, do in�cio do s�culo 29; mas, justamente por essa indefini��o, pode ser o mundo de hoje, o mundo marcado por uma nova pandemia, o mundo de novas formas de opress�o e de novas formas de resist�ncia. "As ondas" continua viva. "As ondas" continua sendo vida. A dos seis personagens, Neville, Rhoda, Louis, Susan, Jinny, Bernard. A nossa, de agora, nesta hora.
Virg�nia Woolf � uma das autoras pioneiras do feminismo. Como o tradutor, masculino, interage e transmite essa dimens�o da obra dela?
� uma quest�o que se tem posto ultimamente. N�o sei se a compreendo bem. Mas devo dizer, antes disso, que "feminista" � uma palavra que Virginia explicitamente rejeitava. Depois, imagino que se conceda aos homens o direito de se considerarem feministas e agirem como tal, assim como as mulheres feministas t�m o direito de assumir e defender outras e diferentes causas. Mas, enfim, feminista � o que, imperfeitamente, me considero.
Por outro lado, a ideia de que um autor ou autora s� possa ser traduzido ou traduzida por algu�m que se lhe iguale em termos de identidade, certamente tornaria quase imposs�vel encontrar pessoas que atendessem esse requisito. No caso de Virginia, ela era, por nascimento, uma pessoa de nacionalidade brit�nica, classe m�dia, algo esnobe, um tanto antissemita (embora casada com um judeu) e uma mulher que gostava de mulheres (embora casada com um homem); enfim, um ser humano em toda a sua complexidade.
Na maioria dos casos, essa "ideia" (de que a tradu��o de uma obra liter�ria deve ser feita por algu�m de identidade igual ou parecida a de quem a escreveu) tornaria imposs�vel o of�cio da tradu��o. Penso que a pol�tica da identidade nos condena, �s vezes, a um isolamento que n�o tem nada de pol�tico e muito de separatismo ("cada qual no seu quadrado"). N�o, n�o me sinto culpado, por ter traduzido, como homem, uma boa parte da obra dessa genial escritora inglesa. Amo-a, simplesmente. Que esse amor me absolva, se � que tenho alguma culpa.
Entre os trabalhos de Woolf que o sr. j� traduziu, qual considera o mais original e qual segue sendo o mais atual em nossos dias?
Todos. Cada um deles por algo especial. "Mrs Dalloway", pelos dilemas vividos por uma mulher brit�nica de classe m�dia ao atravessar os acontecimentos de um �nico dia. "Ao Farol", pelos esfor�os de outra mulher, da mesma classe da m�e de Virginia, por tentar harmonizar a vida de uma fam�lia atravessada pelos defeitos e qualidades de um homem claramente dominador e de filhos centrados em diferentes interesses. "Orlando", por abordar e problematizar, ficcionalmente, as diferentes facetas de um ser m�ltiplo e complexo como o de Orlando.
E, claro, "As ondas", pelo tom e estilo po�tico com que s�o narradas as vidas e os dilemas de seis pessoas, t�o diferentes entre si como podem ser as vidas de qualquer par de seres humanos escolhidos ao acaso. Somos todos iguais. Somos todos diferentes. Nenhuma consci�ncia � igual a outra. Os seis personagens, tr�s mulheres e tr�s homens, se expressam num estilo elevado, sofisticado, formal. Al�m disso, o texto �, com exce��o dos interl�dios, todo ele, el�ptico, conciso, misterioso. Se acompanharmos o texto do romance pela leitura dos rascunhos que foram preservados, perceberemos que Virginia simplesmente cortou todas as conex�es que poderiam tornar o texto mais compreens�vel. Ou seja: virem-se!
(foto: Aut�ntica/Divulga��o)
“AS ONDAS”
Virginia Woolf
Tradu��o de Tomaz Tadeu
Editora Aut�ntica
256 p�ginas
R$ 69,80. E-book: R$ 48.90
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