
A obra, que promete ser a primeira de um plano editorial que ir� apresentar em portugu�s nove dos 12 livros j� publicados pela autora, conta com belas tradu��es das tr�s mais recentes colet�neas de versos da autora: “Averno” (2006), “Uma vida no interior” (2009) e “Noite fiel e virtuosa” (2014). As excelentes tradu��es da volumosa edi��o bil�ngue, com mais de 500 p�ginas, ficam a cargo respectivamente de Heloisa Jahn, Bruna Beber e Mar�lia Garcia. Como h�beis poetas que s�o, as tradutoras conseguem, com maestria, transpor para a l�ngua portuguesa a fina arquitetura de sutilezas da poeta norte-americana.
Dentro da poesia contempor�nea, Louise Gl�ck se destaca como uma ex�mia criadora de atmosferas, nas quais a intera��o do sujeito com a natureza � essencial. Esta � vista como for�a vital, como amea�a ou como marca do tempo, o qual avan�a e se repete aos olhos do sujeito l�rico que nos apresenta suas mem�rias, seus sentimentos, suas reflex�es, ao mesmo tempo em que se projeta em fic��es. � o tra�o da ficcionaliza��o, ali�s, uma das opera��es liter�rias que distinguem o tipo especial de poesia l�rica de Gl�ck, especialista em construir personagens e banh�-los com elementos t�picos do lirismo. Como a pr�pria autora diz em um dos poemas de “Averno”: “Os personagens n�o s�o pessoas./ S�o aspectos de um dilema ou conflito”.
Esses versos podem ser tomados como verdadeiros princ�pios da po�tica de Gl�ck, que se abastece de um saud�vel prosa�smo, estruturante de cenas, pequenas narrativas e situa��es de rara beleza, mesmo nos casos em que se trata do lado sombrio da vida. A sua ret�rica prosaica alonga os poemas, sem cansar o leitor, que se embala nas palavras sempre precisamente escolhidas. Embora uma marca da po�tica de Gl�ck seja a habilidade com poemas longos, n�o se afastam desse n�vel de excel�ncia os poemas mais curtos como “Agouros”, em que toda uma concep��o de poesia � n�o apenas apresentada, mas, sobretudo, problematizada.
Quando se contrastam os longos poemas e os mais curtos, � que se atesta do melhor modo a regularidade da poesia de Gl�ck. At� na obra de grandes autores alternam-se excelentes momentos e outros nem tanto assim. No caso da autora de “Averno”, est�-se diante de uma obra de alt�ssimo n�vel e com regularidade espantosa. Assim, se os pequenos poemas s�o precisos (veja-se o exemplo de “Poente”), os longos t�m a paci�ncia de tecer a ambi�ncia necess�ria ao mergulho progressivo em uma experi�ncia l�rica que � puro v�nculo com a vida (como em “Um jardim de ver�o”). A poesia de Gl�ck, assim, inventa o lirismo a partir de uma disposi��o fundante para a narratividade e para a ficcionaliza��o, de que s�o exemplares poemas como “Um peda�o de papel” e “Via delle ombre”, entre tantos outros.
Esses s�o tra�os essenciais do mundo po�tico de Louise Gl�ck, ao qual se tem um acesso privilegiado com a leitura em conjunto das tr�s obras reunidas em “Poemas 2006-2014”. Observando a sequ�ncia, � dado ao leitor perceber o quanto a poeta foi capaz de se transformar e se manter fiel aos princ�pios b�sicos que constituem sua dic��o, evoluindo sempre, mas dentro de um paradigma s�lido, que � aquele que sempre se encontra como lastro das grandes obras da literatura. � especialmente interessante, portanto, aceitar que se est� entrando em um universo cujas leis po�ticas se postulam para dar a ver, conforme o �ngulo escolhido em cada obra, aspectos especiais de sua constitui��o.
Sobre “Averno” (2006), algu�m poderia sugerir que se trata de uma “atualiza��o do mito de Pers�fone”; mas isso seria dizer pouco. Aqui a opera��o po�tica de Gl�ck � muito mais complexa e, de fato, p�e em pr�tica uma concep��o de linguagem po�tica como “montagem de mist�rios”. S�o elementos-chave para a interpreta��o desse conjunto de poemas: a rela��o entre o tempo do mito e o tempo contempor�neo; a problematiza��o dos ciclos de vida referidos ao mito de Pers�fone; o desenvolvimento liter�rio do s�mbolo do Averno (lago de cratera entendido como “a passagem para o reino dos mortos”), que � a um s� tempo m�tico e l�rico; a composi��o de voz, uma voz po�tica tr�plice, ou trirreferencial (aludindo alternativamente a Dem�ter, sua filha Pers�fone e pr�pria Louise).
Se esses s�o os elementos-chave, tudo est� submetido a um tom que equipara o m�tico ao familiar, os quais se combinam e se alternam, em termos de imagens e de temporalidades, com extrema naturalidade. Nesse movimento sutil de transig�ncia entre o �ntimo e o m�tico, entre o familiar e o atemporal, o mito de Pers�fone � usado pela autora como media��o matricial para tratar das experi�ncias de perda, de luto ou de suspens�o do que � vital, mas tamb�m para falar daquilo que faz a vida dar o passo seguinte, superando-se a dor, a dificuldade, a aporia que �s vezes parece tolher todas as possibilidades de esperan�a.
O livro de 2009, “Uma vida no interior”, d� sequ�ncia a essa pesquisa po�tica da figura��o l�rica da melancolia, que, em Gl�ck, sempre ocorre sem derramamento, sem sentimentalismo, uma vez que se trata de um sentimento sempre composto poeticamente atrav�s de uma escrita clara e s�bria, mas integralmente banhada em sensibilidade. � o que se v� em “Afluentes”, por exemplo: “Cai a escurid�o, a pra�a esvazia./ As primeiras folhas do outono entulham a fonte./ As ruas n�o convergem mais para c�;/ o chafariz as dispensa, que retornem para as montanhas que lhe deram origem”.
Nesse livro, permanecem a reflex�o sobre o tempo, sobre a juventude, sobre o passar das esta��es, tanto quanto em “Averno”. Entretanto, transp�e-se o espa�o/tempo po�tico para uma atmosfera passada e provinciana. Aqui, Gl�ck d� vaz�o ainda mais abrangente � cria��o de atmosferas e ao desenvolvimento de uma constitui��o do olhar muito especial, que se evidencia como um olhar l�rico lan�ado � realidade atrav�s de um telesc�pio, que v� a dist�ncia, mas sempre de perto. Entre os temas, destaca-se, em “Uma vida no interior”, o relacionamento conjugal, visto majoritariamente da perspectiva feminina e da mem�ria, a qual esquadrinha os percursos da forma��o sentimental, amorosa e sexual.
Outra tem�tica recorrente � a da passagem do tempo, que encontra a imagem s�mula no ato de queimar folhas secas, o tema de tr�s poemas de t�tulo id�ntico, “Folhas na fogueira”, os quais trabalham, sob v�rios �ngulos, a impress�o causada na subjetividade pela passagem do tempo. Num deles, l�-se que as fa�scas da fogueira, homologamente � subjetividade, resistem: “pois � certo que n�o conhecem a derrota,/ s� dorm�ncia ou repouso, embora ningu�m saiba/ se retratam a vida ou a morte”.
“Uma vida no interior” leva, pois, a um novo patamar de exig�ncia a transfigura��o liter�ria da vida atrav�s dos elementos naturais. A partir do poema “Abund�ncia”, � poss�vel chegar a algumas conclus�es importantes sobre o m�todo po�tico de Gl�ck para a investiga��o da exist�ncia: a natureza n�o � mero cen�rio onde a subjetividade se encontra, nem mesmo um seu reflexo. O mundo natural, especialmente considerado enquanto marca de tempo pela passagem do dia e das esta��es, � escolhido como media��o fundamental para a figura��o das rela��es humanas, sem idealismo e sem fatalismo, buscando um ponto de equil�brio no qual o mundo natural entra em perfeita simbiose com o espa�o do corpo e dos sentimentos humanos.
A vida do interior referida no t�tulo da obra, portanto, � o avesso do tempo da urbe, que � o tempo-dinheiro. O tempo das esta��es e do dia, atrav�s da po�tica de Gl�ck, religa o eu e o leitor a outras possibilidades de compreens�o do sentido da vida, fora do esquema reificador da forma mercadoria. A esse respeito note-se a fun��o da natureza nos poemas “Solst�cio de ver�o” e “Uma vida no interior”.
“Noite fiel e virtuosa” (2014) � o terceiro livro reunido na publica��o. Mais recente colet�nea de poemas de Louise Gl�ck, nele � poss�vel reconhecer a grande desenvoltura da poeta em fazer transigir a persona l�rica para outros personagens. O olhar b�vio, que faz a perspectiva derivar da autora autoficcionalizada para um personagem inventado, � um achado de raras sutileza e precis�o, o qual j� fora utilizado em “Averno” e que aqui ganha novo alcance. A maioria dos poemas de “Noite fiel e virtuosa” tem como personagem principal (ou como eu-l�rico) um pintor anci�o, que relembra epis�dios de sua inf�ncia e nos remete a um espa�o real e ficcional, quase m�tico, a Cornualha, onde o olhar da poeta se confunde com olhar do personagem, banhando tudo, paradoxalmente, em n�voas que esclarecem, por tornar a exist�ncia muito mais complexa, precisamente porque, nua�ada, eleva-se ao patamar da fic��o.
Nessa obra, percebe-se a presen�a muito forte da morte e da representa��o l�rica dos traumas, que s�o sentidos, muitas vezes, atrav�s da recomposi��o de atmosferas on�ricas e de epis�dios ins�litos, os quais determinam o espanto disparador do lirismo em uma po�tica que se aproxima cada vez mais do prosaico e do ficcional, como em “Janela aberta” ou “Uma viagem abreviada”.
Ao que parece, Gl�ck est� perseguindo em “Noite fiel e virtuosa” o desenvolvimento em ato de uma verdadeira teoria do espa�o/tempo liter�rio, atrav�s da constitui��o das molduras narrativas em que o lirismo aflora, cada vez mais aberto ao prosaico. � curioso como as longas narrativas de que se comp�em os poemas, de repente, conhecem uma deriva inesperada, como numa viagem. Tal movimento cria a impress�o de que tamb�m o eu-l�rico, que nem sempre � o que det�m a posse da voz narrativa, ocupa um lugar de passageiro no trajeto que o leitor acompanha.
� o poder que Gl�ck, como ex�mia poeta, tem de fazer o efeito est�tico transigir entre quem conta e quem ouve a hist�ria. Em v�rios textos, deparamo-nos com um protagonista que come�a contando sua hist�ria para terminar compreendendo o quanto ele �, em verdade, objeto da pr�pria narrativa hist�ria. Esse � um percurso que se assemelha ao modelo narrativa da sess�o de psican�lise, em que o sujeito narra os epis�dios da vida para se projetar sobre os olhos de si como o outro e como o mesmo, num s� movimento.
A grande capacidade de a poesia valer-se dos elementos b�sicos da l�rica para criar personagens e para ficcionalizar a voz po�tica parece ser a ess�ncia da aventura a que nos convida a poesia de Louise Gl�ck; algo que fica patente no poema “O casal no parque”, um exemplo de capacidade ficcional que devolve o olhar � natureza com sentido humano: “De dentro da caixinha, sai uma bailarina de madeira. Eu criei isso, pensa o homem; embora fique rodopiando sempre no mesmo lugar, ainda assim ela � uma esp�cie de dan�arina e n�o apenas um peda�o de madeira. Isso deve explicar a m�sica desconcertante que vem das �rvores.”
Essa cena do �ltimo poema de “Noite fiel e virtuosa” indica bem a dimens�o de vincula��o liter�ria do real � vida que � perseguida pela poesia de Gl�ck. A l�rica, em geral, nos apresenta um algu�m, uma persona, que centraliza as aten��es da leitura, em cuja exist�ncia somos convidados a crer como se fosse real. Generosa, a poesia de Gl�ck partilha esse centro do lirismo com outros personagens, que se constituem atrav�s da narratividade e do recurso ao mito, � ficcionaliza��o e ao deslocamento do centro subjetivo dos poemas. � muito raro que uma l�rica, sem perder sua essencialidade subjetiva, nos convide a entrar e a conhecer um universo, um sistema de significados partilhados pelos personagens e pela atmosfera, que promove um v�nculo cat�rtico com a realidade. Esse � o caso do universo po�tico de Louise Gl�ck, uma desenhista de personalidades banhadas pela delicadeza.
* Alexandre Pilati � professor de literatura brasileira da Universidade de Bras�lia e poeta; autor, entre outros, de “Tangente do cobre” (Laranja Original)
“Poemas (2006-2014)”
De Louise Gl�ck.
Tradu��o de Helo�sa Jahn, Bruna Beber e Mar�lia Garcia.
Companhia das Letras.
504 p�ginas.
R$ 79,90