Com cita��es dos estudos mais relevantes sobre o bioma produzidos nos �ltimos anos e de senten�a de escritores como Euclides da Cunha e Milton Hatoum, “Arrabalde” narra a coloniza��o, o desmatamento, a disputa pela terra, o fracasso e as consequ�ncias de projetos megaloman�acos, a desertifica��o, a imposi��o cultural, as m�ltiplas tentativas – e os crescentes riscos ao planeta – da a��o humana ao subjugar a floresta ao longo das �ltimas d�cadas. E, a cada d�cada, h� menos Amaz�nia. “A encruzilhada � agora. Tudo ainda est� em jogo e isso n�o vai durar por muito tempo”, alerta o documentarista, em entrevista ao Estado de Minas.

“O sentimento em n�s � brasileiro, a imagina��o europeia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amaz�nica ou os pampas argentinos, n�o valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Almafi, um peda�o do cais do Sena � sombra do velho Louvre. No meio do luxo dos teatros, da moda, da pol�tica, somos sempre squatters (posseiros), como se estiv�ssemos ainda derribando (sic) a mata virgem.”
Joaquim Nabuco (1949-1910), em “Minha forma��o”
Conhecido por document�rios intimistas como “Nelson Freire” (2003), “Santiago” (2006) e “No intenso agora” (2017), o publisher da revista “piau�” passou sete meses no Par� em 2019. “Fui conhecer a Amaz�nia porque a gente que n�o � de l� vive de costas para ela”, afirma o carioca. At� ent�o, ele jamais havia permanecido mais do que duas semanas no bioma. O documentarista explica a op��o por uma narrativa com palavras, n�o por meio de imagens: “� mais r�pido, e eu tinha pressa. E a escrita me parece mais espa�osa do que o cinema. Cabe mais coisa nela”, afirma o irm�o do cineasta Walter Salles.
Jo�o Moreira Salles alugou um apartamento em Bel�m e fez seguidas expedi��es ao interior do Par�. Entrevistou, observou, pesquisou, formou convic��es, desfez impress�es. Voltou ao Rio de Janeiro pouco antes do in�cio da pandemia com dois cadernos repletos de anota��es transcritas a cada noite paraense, uma s�rie de v�deos curtos (“Filmava cinco minutos por dia, nem mais nem menos, e esses pequenos v�deos me ajudaram a descrever pessoas e paisagens mais de um ano depois de t�-las visto”), algumas frases na cabe�a (“Quando cheguei, aqui n�o tinha nada”, repetida por fazendeiros orgulhosos de pastos ou lavouras que fizeram ap�s arrancar �rvores) e uma certeza: “Amaz�nia � a parte central do Brasil hoje em dia. A periferia somos n�s.”'A coloniza��o indiferente permite que a Amaz�nia seja destru�da com menos �nus moral. � mais f�cil destruir aquilo que n�o est� investido de afeto, de interesse, curiosidade ou conhecimento.'
Jo�o Moreira Salles
A viagem ao Par� rendeu um conjunto de sete artigos publicados originalmente na revista “piau�” e ampliadas para o livro. Houve uma raz�o para Jo�o Moreira Salles escolher o estado da regi�o do Norte como ponto de partida para a tentativa de compreens�o do que o Brasil est� fazendo – ou deixando de fazer – com um dos patrim�nios da humanidade.
“O Par� cont�m todas as gl�rias, mis�rias e contradi��es do bioma, depois de 500 anos de hist�ria: a Amaz�nia preservada, a destru�da, a que criou territ�rios quilombolas para proteger as popula��es que fugiam dos seringais, a das periferias que convivem com viol�ncia e com menos vigil�ncia e aten��o da imprensa e da sociedade civil organizada, a das terras ind�genas, ind�genas em situa��o urbana absolutamente precarizada. Enfim, � uma zona em disputa, como toda a Amaz�nia”, explica.
“� um lugar em fluxo que pode ir para a devasta��o de um ponto de n�o-retorno ou para a restaura��o das �reas desmatadas com a devolu��o dos processos ecol�gicos que foram destru�dos. Tudo � poss�vel. Mas tem que ser nesse momento, n�o daqui a 20 ou 30 anos”, ressalta Moreira Salles. “A floresta n�o aguenta mais devasta��o e estamos chegando perto do ponto em que ela joga a toalha e vira outra coisa, como uma savana.”
“N�o existe mais esse neg�cio de ‘desastre natural’ ou ‘as coisas v�o piorar’; tecnicamente falando, j� pioraram (...). O aquecimento global comprimiu da forma mais improv�vel em duas gera��es toda a narrativa da civiliza��o humana (...). E, se n�o fizermos nada quanto �s emiss�es de carbono, se os pr�ximos 30 anos de atividade industrial deixarem como rastro o mesmo arco ascendente dos �ltimos 30 anos, at� o fim deste s�culo regi�es inteiras se tornar�o inabit�veis por quaisquer padr�es que tenhamos atualmente.”
David Wallace-Wells, em “A terra inabit�vel – Uma hist�ria do futuro”
Como reverter a marcha da destrui��o em curso no planeta? Em “Arrabalde”, Jo�o Moreira Salles aponta um caminho ap�s citar a condi��o de emerg�ncia clim�tica mundial que tira o sono, em especial, dos pa�ses desenvolvidos. “Nunca t�nhamos sido chamados a enfrentar um problema capaz de afetar a coletividade humana; agora fomos.”
E a resposta passa pelo direcionamento de esfor�os capazes de fazer do pa�s uma refer�ncia obrigat�ria e incontorn�vel para produtos florestais n�o madeireiros, reflorestamento de �reas abandonadas, agricultura de baixo carbono, entre outras a��es de preserva��o.
“Se o Brasil quiser ser um grande pa�s, que se senta com altivez em uma mesa internacional, deve adotar um projeto digno de sua ambi��o e da riqueza dos tr�picos. Se fizer isso, ajuda o mundo a se livrar de um problema existencial. Mas tem de querer”, avalia o autor de “Arrabalde”. A seguir, trechos da entrevista de Jo�o Moreira Salles ao Pensar do Estado de Minas.
Por que contar essa hist�ria sem imagens ou sons, mas com palavras?
Porque � mais r�pido, e eu tinha pressa. N�o � preciso levantar recursos substanciais, n�o � preciso formar uma equipe, n�o � preciso passar mais de um ano numa ilha de edi��o, n�o � preciso perambular com o filme pelos festivais na torcida para que ganhe um m�nimo de visibilidade capaz de despertar o interesse do p�blico. Essa � a resposta mais pr�tica.
A outra, mais conceitual, � que a escrita me parece mais espa�osa do que o cinema. Cabe mais coisa nela. Numa reportagem � mais f�cil passar de um assunto para outro, recuar para o passado num par�grafo para, logo no seguinte, voltar para o presente. Document�rios, ao menos aqueles que eu fa�o, tendem a se concentrar num �nico assunto, numa �nica hist�ria – uma elei��o, um pianista, um ano, um homem, uma casa. O escopo de “Arrabalde” � muito mais amplo.
Quais os cuidados que tomou para n�o impor a sua vis�o cultural, originalmente hegem�nica, � Amaz�nia?
N�o imagino que seja poss�vel ser um observador imparcial. � inevit�vel projetar no que est� diante dos olhos o mundo mental que carregamos conosco. O primeiro cuidado, ent�o, � estar ciente disso e n�o ser um observador ing�nuo. O segundo cuidado � aquele que menciono logo na abertura do livro: � preciso prestar aten��o.
Como eu escrevo: “A pensadora francesa Simone Weil dizia que a aten��o � a forma mais rara e mais pura da generosidade. A floresta sempre precisou de aten��o, mas poucos lhe dispensaram esse cuidado simples. Popula��es ind�genas e tradicionais, sim. Naturalistas, exploradores e cientistas, tamb�m. Ainda, alguns escritores. Mas a grande massa de gente que, ao fim e ao cabo, colonizou a Amaz�nia, n�o.” A aten��o de Weil � uma esp�cie de exerc�cio moral que leva � empatia e ao cuidado. N�o � coisa que a gente alcance, mas funciona como horizonte.
O que voc� chama no livro de “coloniza��o indiferente” e como ela contribui para a destrui��o da Amaz�nia?
A coloniza��o indiferente permite que a Amaz�nia seja destru�da com menos �nus moral. � mais f�cil destruir aquilo que n�o est� investido de afeto, de interesse, curiosidade ou conhecimento. Cito, no livro, a vis�o de colonos que foram para l� nos anos 1960 e 1970 e enriqueceram. Homens hoje com 70, 80 anos e donos de casas bonitas, avarandadas. Orgulhosos, eles mostram de suas varandas a obra de uma vida. E a obra da vida deles n�o � a Amaz�nia, mas � o inverso da Amaz�nia. Eliminaram a Amaz�nia e a transformaram na paisagem que eles conheciam na juventude.
“Quando eu cheguei aqui, n�o tinha nada’, eles dizem. E entenda por nada o sistema biol�gico mais complexo da Terra. N�s somos testemunhas oculares da destrui��o da Amaz�nia. At� 1970, o desmatamento era de 0,5%. Hoje est� chegando a 21%, 22%. E n�o houve nos �ltimos anos nenhuma grande indigna��o nacional, nenhuma mobiliza��o. A Amaz�nia n�o tem ainda o peso do pecado que est� sendo cometido em nosso nome. A gente est� � vontade na situa��o tropical, mas n�o est� � vontade na situa��o equatorial. A nossa imagina��o � tropical, � praieira. Mas n�o � florestal. N�s n�o transformamos a Amaz�nia em mat�ria simb�lica.
� diferente do que ocorreu no Oeste dos Estados Unidos?
Nos Estados Unidos, incentivados pelo governo como aconteceu no Brasil, homens brancos, europeus, ocidentais se moveram do Leste para o Oeste. A diferen�a � que nos EUA a coloniza��o teve m�o dupla: o Oeste colonizou o americano que foi para l�. Aquela paisagem, no cinema, na literatura, na m�sica, se tornou sagrada e constitui hoje a identidade norte-americana. No Brasil, nada parecido aconteceu. A gente foi para a Amaz�nia e decidiu n�o se contaminar pela Amaz�nia. Os �ndios de nossa inf�ncia eram os norte-americanos, n�o os ind�genas brasileiros.
Por que, no livro, h� a associa��o da Amaz�nia ao espanto?
A escala da Amaz�nia � inapreens�vel. E essa ideia se aproxima muito do espanto, que pode ter uma conota��o positiva, do milagre, da beleza total, quase uma quest�o espiritual, como pode ser o terror. A chave do terror ligado � escala � a que est� mais presente nas descri��es da floresta: no cinema do (Werner) Herzog, por exemplo, � o lugar onde o homem n�o cabe, � um impertinente; a floresta morde, fere, pica, infecta, esmaga. � t�o monumental e t�o complexo: as intera��es ecol�gicas, processos de vida que dependem um dos outros, s�o t�o infinitas que � um desafio intelectual e at� ofende a nossa cabe�a cartesiana ocidental porque n�o conseguimos decifrar. Mas isso n�o ofende os ind�genas.
A floresta no seu emaranhado � uma alegoria forte da anarquia, e tirar aquilo para colocar a ordem de uma plantation, de uma monocultura, ou at� de v�rias culturas que respeitam o seu lugar (aqui � o milho, ali � a soja, depois o boi) � mais f�cil de compreender e dominar. A incompreens�o da floresta impede o dom�nio, a n�o ser que voc� a derrote colocando-a abaixo. E essa talvez seja uma das grandes belezas das civiliza��es ind�genas: elas det�m uma tecnologia extraordin�ria, uma intelig�ncia ecol�gica. Entender esse emaranhado e conseguir atuar sobre ele n�o para destru�-lo, mas para se beneficiar dele, o que n�s n�o sabemos fazer. A nossa epistemologia n�o sabe lidar com esse excesso de coisas, os povos origin�rios sabem.
E a� h� um poss�vel encontro que ainda pode acontecer e para mim pode ser a salva��o da floresta: aprender com eles essa tecnologia da floresta. Almir Suru� (l�der ind�gena) diz: a gente n�o tem a tecnologia do google, mas temos a tecnologia da floresta. E num mundo que caminha para situa��es ainda maiores de emerg�ncias clim�ticas, essa � uma tecnologia quase vital porque permite que a vida continue a ser o que ela � nesse momento. Est� na hora de a gente aprender para que o Brasil possa cumprir o seu papel no mundo: ser o pa�s que oferece as solu��es, baseadas na natureza, para os problemas das mudan�as clim�ticas. Mas para isso a gente precisa aprender o que ainda n�o sabe.
E onde est� o espanto relacionado ao horror?
O horror � a n�o-floresta. O horror � a BR-163, entre Santar�m e Itaituba: do lado direito, uma floresta nacional, com toda a sua complexidade, beleza e excesso de vida; do lado esquerdo do carro, voc� tem um deserto. Puseram um gado e o gado exauriu o pasto, que j� � vagabundo, em solo paup�rrimo. Voc� est� debaixo do sol equatorial, que te martela a cabe�a, sem nenhuma cobertura florestal, e para onde voc� lan�a o olho nessa dire��o se avista uma paisagem destru�da e um trabalho humano que desistiu: uma cerca ca�da, um curral sem teto ou parede, de vez em quando alguns bois.
A cada quil�metro, a gente v� uma castanheira (cuja derrubada � impedida pelo Ibama), uma �rvore que vai morrer porque n�o est� mais inserida em um sistema biol�gico que a sustente. Cada uma dessas castanheiras projeta sua sombra que faz uma risca no ch�o nu e lembra um rel�gio de sol. Em uma dessas riscas, vi seis bois em linha tentando fugir do sol, o focinho de um grudado no rabo do outro. Pareciam equilibristas nessa linha preta marcada pela sombra no ch�o, �nico lugar onde eles conseguem se proteger. Essa � a Amaz�nia que a gente tem constru�do.
O agroneg�cio brasileiro n�o � o Vale do Sil�cio da produ��o de alimenta��o mundial: voc� n�o est� construindo a Calif�rnia brasileira, mas o Sud�o ou a Som�lia, pa�ses que sofreram todas as chagas da hist�ria e ainda sofrem com desertos naturais. A produtividade da pecu�ria na Amaz�nia � baix�ssima, pat�tica. E mais: � o grande vetor do desmatamento. Nasce da grilagem. Est� contaminada na origem.
Como o governo Bolsonaro contribuiu, na sua vis�o, para a destrui��o da Amaz�nia?
Bolsonaro acelerou tudo que j� existia. Ele anabolizou tudo. A desordem fundi�ria na Amazonia sempre aconteceu, com a ocupa��o irregular. Conseguiu ser relativamente controlado no in�cio desse s�culo, com Marina Silva � frente do Minist�rio do Meio Ambiente. O Estado resolveu se mostrar presente na Amaz�nia. J� Bolsonaro anunciou que o Estado ia se retirar e que as pessoas poderiam fazer o que quisessem. Logo no primeiro m�s ele desautorizou uma a��o e se posicionou ao lado dos criminosos que tinham invadido.
Quando isso acontece � muito sintom�tico e grave. Quando o governo decide que as atividades criminosas – grilagem, garimpo ilegal, roubo de madeira – s�o quase autorizadas porque as multas ambientais s�o basicamente suspensas, estabelece-se na Amaz�nia uma esp�cie de anarquia: o Estado sai e prevalece quem est� mais organizado criminalmente.
O que aconteceu nos �ltimos anos � que, hoje em dia, o grande palco onde se disputa o poder das grandes fac��es criminosas brasileiras n�o � mais na periferia das grandes cidades brasileiras ou na Baixada Fluminense, mas na Amaz�nia. E esse � um elemento que n�o existia, muito novo e perigoso. A gente perdeu a soberania de �reas extensas da Amaz�nia durante o governo mais militarizado desde a ditadura militar.
A conclus�o de um dos cap�tulos, a partir dos depoimentos e de estudos citados, � a seguinte: “Proteger a Amaz�nia � mais produtivo e eficaz do que agredir e destruir a Amaz�nia”. O que o leva � conclus�o?
Essa pergunta pode ser respondida de duas maneiras. A primeira olha para o legado do atual modelo de explora��o e indaga: Ele produziu bem-estar social? A resposta � um categ�rico n�o. At� 1970, a Amaz�nia Legal representava 4% do PIB brasileiro. Hoje, depois de eliminarmos 20% da floresta, a regi�o responde por 8% do PIB. Soa a progresso, mas n�o �: no mesmo per�odo, a popula��o da regi�o quadruplicou. Um levantamento feito pelo grupo de pesquisa do economista Juliano Assun��o, da PUC-Rio, comparou a renda domiciliar per capita dos seis estados inteiramente contidos no bioma amaz�nico (Acre, Roraima, Amazonas, Rond�nia, Par� e Amap�) com a do restante do Brasil.
O cotejo come�a em 1970, no in�cio do processo de destrui��o da floresta, e segue at� 2010. Nestes 40 anos de desmatamento cont�nuo, o Brasil cresceu e deixou os munic�pios do bioma para tr�s. Ali as pessoas se tornaram mais pobres do que as que vivem em outras partes do pa�s. Destru�mos muito em troca de pouco e a um custo imenso. Dos munic�pios com os 20 maiores idhs do Brasil, nenhum est� na Amaz�nia. J� dentre os 20 com os piores IDHs, 15 est�o na regi�o. Oitenta e dois por cento dos que vivem na Amaz�nia n�o t�m acesso a saneamento b�sico. As regi�es desmatadas sofrem um �xodo demogr�fico. Dados de 2022 mostram que dos cinco munic�pios brasileiros que mais emitem gases de efeito estufa, quatro est�o na regi�o: Altamira (PA), S�o F�lix do Xingu (PA), Porto Velho (RO) e L�brea (AM). S�o Paulo, com sua pot�ncia industrial, aparece na quinta posi��o. � evidente que estamos cometendo um erro hist�rico.
Caso essas emiss�es estivessem a servi�o da prosperidade, ao menos poder�amos abrir uma conversa: vale a pena? Minha resposta seguiria sendo n�o – a cat�strofe ecol�gica cobrar� o seu pre�o, que ser� imenso – mas nem � o caso aqui. Temos apenas a trag�dia ambiental, sem ganho social nenhum. A segunda resposta leva em conta o atual momento da hist�ria geof�sica e ecol�gica do planeta, marcada pela crise das mudan�as clim�ticas. H� dois caminhos poss�veis para enfrentar o problema. O primeiro deles � o das solu��es tecnol�gicas – geoengenharia, captura e estocagem de carbono etc. O segundo caminho � o das solu��es baseadas na natureza – reflorestamento, restaura��o ecol�gica de �reas degradadas etc. A primeira solu��o ser� dada pelos pa�ses tecnologicamente avan�ados.
A segunda, pelos pa�ses do cintur�o tropical. O caminho tecnol�gico ainda n�o � t�cnica e economicamente vi�vel. Por ora, n�o existe tecnologia mais eficiente e barata para capturar carbono do que uma �rvore que cresce, uma floresta que � recuperada e protegida. E mais: no futuro, solu��es tecnol�gicas talvez sejam capazes de desacelerar o aquecimento do planeta, mas n�o ter�o qualquer impacto sobre a produ��o de �gua doce ou sobre a manuten��o da biodiversidade, dois sistemas essenciais ao equil�brio do planeta. � a floresta que prov� esses servi�os ecossist�micos. Est� na hora de come�ar a defender a ideia da natureza como infraestrutura sem a qual n�o existe a vida. Somos n�s os provedores dessa infraestrutura vital. Poderemos cobrar por ela, mas isso n�o acontecer� automaticamente. Temos que construir essa possibilidade.
Importante ressaltar que nada disso exclui a lavoura e a pecu�ria do bioma, e muito menos as cadeias de produtos florestais n�o madeireiros – a�a�, cupua�u, cacau, bacuri, �leos vegetais, fungos comest�veis. Devastamos tanto, deixamos para tr�s tanta terra abandonada, que, paradoxalmente, pode-se inclusive aumentar a produ��o agropecu�ria da regi�o ao mesmo tempo em que recuperamos as florestas. Basta abandonar o modelo predat�rio e vagabundo que est� a�, comandado pela pecu�ria. A Amaz�nia foi colonizada pelo boi. A cultura do boi prevalece: roupas, chap�us, botas, carros 4x4, adere�os taurinos, m�sica sertaneja... A comida na casa das pessoas mais abastadas � o churrasco, isso num lugar de uma culin�ria absolutamente fenomenal. H� a massacrante presen�a de uma cultura que � a ant�tese da floresta no bioma florestal.
Importante ressaltar que nada disso exclui a lavoura e a pecu�ria do bioma, e muito menos as cadeias de produtos florestais n�o madeireiros – a�a�, cupua�u, cacau, bacuri, �leos vegetais, fungos comest�veis. Devastamos tanto, deixamos para tr�s tanta terra abandonada, que, paradoxalmente, pode-se inclusive aumentar a produ��o agropecu�ria da regi�o ao mesmo tempo em que recuperamos as florestas. Basta abandonar o modelo predat�rio e vagabundo que est� a�, comandado pela pecu�ria. A Amaz�nia foi colonizada pelo boi. A cultura do boi prevalece: roupas, chap�us, botas, carros 4x4, adere�os taurinos, m�sica sertaneja... A comida na casa das pessoas mais abastadas � o churrasco, isso num lugar de uma culin�ria absolutamente fenomenal. H� a massacrante presen�a de uma cultura que � a ant�tese da floresta no bioma florestal.
Yanomamis s�o citados no livro apenas uma vez porque eles n�o vivem na regi�o que voc� visitou. Mas como v� a forma que os yanomamis foram tratados nos �ltimos anos e os relatos divulgados no in�cio de 2023, como o publicado pela Suma�ma? Outros povos ind�genas passam pelo mesmo drama humanit�rio?
Um pequeno e triste epis�dio ilustra como o �ltimo governo tratou o povo yanomami. O garimpo traz consigo a mal�ria, doen�a que explodiu em terras yanomamis. Entre 2014 e 2020, dados do Sistema de Informa��o de Vigil�ncia Epidemiol�gica (Sivep-Mal�ria) mostram que os casos da forma mais letal da doen�a cresceram 716 vezes dentro do territ�rio ind�gena. Pois bem, em novembro de 2021, uma equipe multidisciplinar da Fiocruz quis entrar no territ�rio para prestar assist�ncia m�dica �s popula��es afetadas. N�o conseguiu. Alegando protocolos sanit�rios da pandemia de COVID-19, a Funai impediu que os agentes entrassem na regi�o, proibi��o que s� seria suspensa no ano seguinte.
E o mais espantoso: de acordo com o site Amaz�nia Real, em julho de 2022, enquanto o Ex�rcito produzia cloroquina e o presidente da Rep�blica fazia lives quase di�rias recomendando o uso da droga para combater o SARS-Cov-2, contra o qual o medicamento � ineficaz, faltava cloroquina para tratar pacientes ind�genas. Como se sabe, a subst�ncia � indicada para o tratamento da mal�ria. Ou seja: em todo o territ�rio brasileiro s� n�o havia cloroquina onde ela era mais necess�ria. N�o consigo imaginar que isso seja descaso. � projeto. A sa�de e a seguran�a do povo Munduruku est�o seriamente amea�adas pelo garimpo. Em 2019, cientistas da Funda��o Oswaldo Cruz e de outras sete institui��es de pesquisa visitaram o m�dio Tapaj�s para avaliar o impacto da contamina��o por merc�rio em habitantes da Terra Ind�gena Sawr� Muybu, situada nos munic�pios de Itaituba e Trair�o.
Foram entrevistados e avaliados duzentos mundurukus. Era um grupo bastante jovem, com idade m�dia de 14 anos. Seis em cada dez participantes apresentaram n�veis de merc�rio que ultrapassavam os limites m�ximos estabelecidos pelas organiza��es de sa�de. Numa �nica aldeia, a preval�ncia de contamina��o se estendeu a 87,5% da popula��o. O maior n�vel de merc�rio em todo o grupo foi registrado numa crian�a de 10 anos. Muitos ind�genas j� mostram algum grau de comprometimento neurol�gico.
Em artigo sobre o impacto do garimpo sobre o povo munduruku publicado na revista “piau�”, a antrop�loga Aparecida Vila�a escreve sobre um professor ind�gena que se surpreendeu com o alto n�vel de reprova��o escolar nas v�rias aldeias da regi�o. Constatou ent�o que diversas crian�as j� apresentavam problemas motores. Um dos alunos do professor ind�gena, um rapaz munduruku de 17 anos, deixou de frequentar as aulas porque n�o conseguia mais andar. S�o muitos os exemplos. Em terra Uru-eu-wau-wau, milhares de cabe�as de gado pastam em terras roubadas dos ind�genas.
O Conselho Indigenista Mission�rio mostrou que j� no primeiro m�s do primeiro ano do governo Bolsonaro, as TIs Arara, no Par�, e Arariboia, no Maranh�o, registraram a invas�o de madeireiros e grileiros. Durante o �ltimo governo, nem os que mereceriam mais prote��o do Estado estiveram a salvo: segundo o Ipam, de 2019 a 2021 seis das 10 terras ind�genas com maior aumento no desmatamento no bioma eram habitadas por povos isolados, exatamente aqueles menos preparados para resistir ao contato com o homem branco, com suas armas e seus pat�genos. Em resumo: h� crises humanit�rias pipocando na Amaz�nia inteira, mas talvez nenhuma delas com a intensidade com o que a gente viu em terra yanomami. S� que os elementos da crise est�o disseminados em todo o bioma.
Como transformar o arrabalde n�o apenas em uma casa, mas na nossa casa? Como despertar o pertencimento da Amaz�nia em brasileiros que n�o moram na regi�o?
N�o existe um �nico caminho. Fazer do Brasil o pa�s das solu��es baseadas na natureza que ajudam o mundo a enfrentar a crise clim�tica � um desses caminhos. No momento em que nos tornarmos uma pot�ncia ambiental dos tr�picos, ganharemos uma identidade e um prop�sito. Se faz isso, voc� desembarca na Normandia.
O Brasil infelizmente � muito perif�rico na hist�ria do mundo, a nossa contribui��o sempre foi muito t�mida, nunca fomos chamados a cumprir uma miss�o civilizat�ria de impacto global. Agora a gente tem. � a primeira vez, e n�o tem ningu�m mais habilitado. Mas o Brasil precisa querer. Nessa hora, n�s nos daremos conta de que os nossos biomas s�o o nosso patrim�nio mais valioso – e uso aqui “valor” no sentido amplo da palavra, sem reduzi-la apenas ao elemento econ�mico: a beleza tem valor, a variedade das coisas vivas tem valor, tem valor o cumprimento de um dever de civiliza��o.
Outro caminho � transformar a floresta em mat�ria simb�lica. Em cultura. Adoraria ver um programa de Estado que enviasse grandes artistas de fora do bioma para l�, enquanto os de l� seriam levados para outras partes do Brasil, num grande processo de fertiliza��o m�tua das nossas imagina��es. Um bom modelo seria o Works Progress Administration (WPA) do governo Roosevelt durante os anos da Depress�o norte-americana. Desse nosso esfor�o nasceriam filmes, pe�as, livros, can��es, quadros, m�veis, roupas. Seria muito bonito.
Quais as suas descobertas mais recentes que mudaram o seu entendimento da Amaz�nia?
Depois que fiz as reportagens para a “piau�”, descobri toda essa nova ci�ncia da arqueologia que identifica a floresta manipulada. A floresta �, ao mesmo tempo, natureza e cultura. Os estudos mais recentes mostram que, ao longo de s�culos, os ind�genas manipularam a floresta, ela � como se fosse uma obra deles, e isso � uma beleza. S�o 390 bilh�es de �rvores na Amaz�nia inteira, divididas em 16 mil esp�cies. O not�vel � que, dessas 16 mil, apenas 227 s�o hiperdominantes. E h� duas explica��es para essa hiperdomin�ncia: uma � a vantagem darwiniana, s�o simplesmente melhores na competi��o.
A outra explica��o � que essas esp�cies se tornaram hiperdominantes porque foram selecionadas, domesticadas, plantadas, cultivadas, porque t�m uso econ�mico ou ritual na cultura dos povos origin�rios. Eduardo Neves (arque�logo, autor de livros como “Arqueologia da Amaz�nia”), � frente dessa pesquisa toda, diz que n�o consegue, diante desses dados, descartar a hip�tese de que a floresta amaz�nica que a gente v� � tamb�m um jardim.
No sentido que ela foi tamb�m plantada. � um bem comum extraordin�rio e pertence a toda a humanidade. Esse foi o legado dos povos origin�rios. N�o � preciso buscar em obras de civiliza��o, que s�o realmente not�veis, como Machu Picchu, o par�metro para todas as outras. Existem outras maneiras de avaliar a grandeza e a obra de uma civiliza��o. A nossa, as que estavam aqui em nossas fronteiras antes de serem encontradas e dizimadas pelos exploradores, s�o civiliza��es org�nicas que n�o lidam com a pedra ou o metal, n�o fazem templos. Mas lidam com mat�ria viva; palha, madeira, lidam com a intelig�ncia ecol�gica.
Com isso, conseguiram viver dentro da floresta vivendo da floresta sem destruir a floresta e modificando a floresta. Se as pessoas entendessem assim o que � a floresta, mudaria tudo, passaria a ser uma obra, um legado. Seria poss�vel enxergar a floresta como o nosso legado, o nosso Machu Picchu: se torna um precioso presente que nos legaram os povos que aqui estavam antes de a gente chegar e que, portanto, � da nossa responsabilidade manter, cuidar e zelar. Os gregos n�o destroem o Partenon, a gente n�o deveria destruir a Amaz�nia.
O c�tico diante de um ‘milagre’
“N�o sou pessoa de grande espiritualidade, n�o tenho muito metaf�sica, salvo com o Botafogo (clube do cora��o do documentarista). N�o me foi dada a gra�a da f�. Mas, em Cachoeira Porteira (PA), � beira do Rio Trombetas, regi�o protegida na Calha Norte, fiquei hospedado em uma pequena pousada em territ�rio quilombola. Da varanda, na parte alta da pousada, � poss�vel ver a floresta a perder de vista. E �s seis da tarde a floresta come�a a respirar. Exalar o vapor e a �gua que ela n�o precisa e, portanto, ela doa. � a �gua que vai chover em outros lugares. O que vi �, de fato, a coisa mais pr�xima de Deus que consigo imaginar. Ou seja: algo infinitamente maior que eu, que n�o compreendo, mas que me comove. Sei que dependo daquilo que me permite existir. Essa minha rever�ncia ao infinito n�o dura muito tempo, logo volto ao meu modo de ser. Mas a Amaz�nia te permite isso: observar o incomensur�vel do espanto. Pode ser aterrorizante ou milagroso. Para mim, foi milagroso. Gra�as a Deus.”

• “Arrabalde”
• Jo�o Moreira Salles
• Companhia das Letras
• 424 p�ginas
• R$ 99,90