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Estado de Minas PENSAR

Sigrid Nunez relembra vida em apartamento de �cone cultural norte-americana

Sob a perspectiva de estilo, 'Sempre Susan' � um livro bem escrito, que interage com romances premiados de Sigrid, sobretudo 'O amigo'


15/09/2023 04:00 - atualizado 14/09/2023 23:20
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Susan Sontag
Susan Sontag (foto: Juan Esteves/Folhapress)
As mem�rias s�o de Sigrid Nunez, premiada escritora norte-americana. Mas quem est� ao centro do palco, sendo observada por um enquadramento emocional e enviesado, � o �cone cultural Susan Sontag (1933-2004), uma das intelectuais p�blicas norte-americanas mais importantes e libert�rias do s�culo 20.

 

Antes de se debru�ar sobre “Sempre Susan, um olhar sobre Susan Sontag”, escrito por Sigrid Nunez em 2011, e agora lan�ado no Brasil pela editora Instante, conv�m que o leitor pesquise e amplie o foco da cena principal: quem foi Susan Sontag? No contexto do auge da Guerra Fria (anos 1960, 1970), Sontag ousava questionar, em ensaios brilhantes e milit�ncia ativa, a pol�tica externa norte-americana.

 

Foi um tempo em que, por exemplo, no que diz respeito � Am�rica Latina, o imperialismo estadunidense se apresentava patrocinando golpes de estado, apoiando ditaduras, inclusive a brasileira, ensinando aos �rg�os de controle como construir aparelhos de repress�o “eficientes”, com o emprego de tortura. 


Naquele momento em que a sombra do macartismo ainda pairava sobre os Estados Unidos, Susan juntava-se aos gigantes da literatura latino-americana, como Octavio Paz, Carlos Fuentes e Julio Cort�zar, alinhando produ��o liter�ria com a permanente reflex�o sobre as quest�es pol�ticas, para construir o referencial cr�tico de luta dos povos por autonomia.
 
Por todos os �ngulos que se observe a obra e o ativismo dessa excepcional mulher, salta a compreens�o dos problemas filos�ficos que envolvem a ideia do “dizer a verdade”; empreitada que se conecta com o conhecimento, a pluralidade e sistemas morais de cren�as, constituindo-se em instrumento contra a viol�ncia e o autoritarismo. Discursou Susan Sontag, ao receber em 2001, o controverso Pr�mio Liter�rio Jerusal�m, pa�s frequentemente criticado pela viola��o dos direitos humanos de palestinos:

“A primeira tarefa do escritor � n�o ter opini�es, mas dizer a verdade... e recusar-se a ser c�mplices de mentiras e de informa��es falsas. Literatura � o lar da nuance e da oposi��o das vozes da simplifica��o. A tarefa do escritor � tornar mais dif�cil acreditar nos saqueadores da mente. A tarefa do escritor � nos fazer ver o mundo como �, repleto de muitas e diferentes demandas, partes, experi�ncias. � tarefa do escritor retratar as realidades s�rdidas, as realidades que causam enlevo. � da sabedoria fornecida pela literatura (a pluralidade da realiza��o liter�ria) ajudar-nos a compreender que, o que quer que esteja acontecendo, sempre se passa algo mais.”

A milit�ncia de Susan tamb�m marcou a luta libert�ria feminina: rompeu barreiras � frente de seu tempo para, sob risco de incorrer a exageros, fincar o emergente paradigma �s mulheres sobre como serem ouvidas e respeitadas profissionalmente.
 
Para tanto, com seu comportamento – frequentemente acusado de arrogante – demonstrava que as mulheres n�o precisavam temer ser deselegantes por serem assertivas; n�o precisavam esconder a sua intelig�ncia temendo ser tachadas de autocentradas; tampouco precisavam se sobrecarregar com o mundo de tarefas, tradicionalmente atribu�das ao g�nero, com medo de serem apontadas como “masculinas”. Se esse fosse o pre�o de se lan�ar ao mundo, que assim o fosse: superar, era o desafio. 
 

Em “Sempre Susan”, � da coxia que Sigrid Nunez se det�m sobre Susan Sontag, ao centro do palco. A autora recupera um caleidosc�pico de mem�rias idiossincr�sicas, e de �mbito privado, centradas no relacionamento complexo entre a intelectual, o filho David e a namorada do filho, a pr�pria Sigrid, que se passam num curto intervalo de aproximadamente 18 meses, algo entre 1976 e 1977.
 
Sigrid conheceu Susan em 1976. Egressa de um mestrado na Universidade de Columbia, trabalhava como assistente editorial na New York Review of Books, publica��o na qual Susan era a estrela. Sigrid Nunez foi recomendada para ajudar Susan com a correspond�ncia que se acumulava, pois naquele momento a intelectual estava debilitada por uma mastectomia realizada para o enfrentamento do c�ncer. 

Susan vivia com o filho David, ent�o com 24 anos, em um amplo apartamento de cobertura, que se abria numa vista panor�mica para o rio Hudson, na 106th Street com a Riverside Drive, em Manhattan. Logo Nunez come�ou a namorar David, e alguns meses depois, foi viver com ele, no apartamento da intelectual.
 
O arranjo durou pouco mais de um ano, numa rela��o triangular que se revelou bastante tensa e complexa. Trinta e cinco anos depois, Nunez reuniu as suas lembran�as de intimidades da fam�lia, estimulada por um editor, que lhe encomendara, em princ�pio, um artigo sobre mentoria, no qual Nunez descreveu como Susan Sontag havia sido importante para a sua escrita profissional. 

Sob a perspectiva de estilo, “Sempre Susan” � livro bem escrito, que interage com romances premiados de Sigrid, sobretudo “O amigo”, que vai ganhar as telas do cinema, em longa-metragem estrelado por Naomi Watts. Carrega um desconcertante conte�do sobre Susan Sontag, numa narrativa de interesse psicanal�tico, j� que � semelhan�a das sess�es terap�uticas, faz uma busca profunda de curiosidades, historietas e caracter�sticas, sobretudo aquelas mais terr�veis de Sontag, que orbitam o relacionamento conturbado e triangular entre Susan, David e Sigrid. S�o passagens que a ex-nora, agora escritora e memorialista, sustenta serem de car�ter n�o ficcional.
 
 
Mas partem de uma percep��o t�o particular e �ntima que a pr�pria Sigrid, se viu �s voltas em sonhos quando escrevia o livro. Sonhos sempre abrem largos horizontes � interpreta��o. Talvez estes digam respeito �quela que, sem que as vistas alcan�assem a altura da personagem, em certo momento, traiu a sua confian�a, permitindo a ocupa��o por estranhos. “Como ela pode confiar em mim?”, � uma pergunta que Sigrid faz e paira sem resposta. 

Sigrid Nunez
Sigrid Nunez (foto: divulga��o)


Entrevista/Sigrid Nunez

 

'Acho que ela era mais valiosa como pensadora do que como feminista'



Como o seu relacionamento com Susan Sontag influenciou a sua escrita?
 
� interessante porque eu sempre penso nela com uma grande influ�ncia na minha escrita, no meu trabalho, mas n�o em termos de estilo, porque o modelo dela como escritora n�o era algo que exercia um apelo sobre mim.
 
Em primeiro lugar, porque o ponto forte do trabalho dela, que a maioria das pessoas apreciava, inclusive eu, era a escrita n�o ficcional, o que eu, � �poca em que a conheci, sequer podia me imaginar escrevendo ensaios cr�ticos do tipo que ela escrevia.
 
Eu n�o possu�a nenhuma daquelas habilidades, ent�o, nunca seria uma parte da minha vida. E a fic��o que ela escreveu, eu estava de acordo com a maioria das pessoas, e ela tamb�m chegou � mesma conclus�o, n�o era t�o boa quanto os ensaios dela. N�o funcionou.
 
Mas, como escritora, como uma pessoa que levou a literatura t�o a s�rio, e que conhecia tanto e acima de tudo, a amava tanto, ela tinha o gosto liter�rio mais amplo do que qualquer pessoa que eu tenha conhecido. E era um gosto fabuloso: ela me apresentou a todo tipo de escritor que me influenciaria.
 
Ela tamb�m me ensinou sobre como era importante levar todo o neg�cio da escrita muito a s�rio e em como n�o pensar sobre ele como uma voca��o, mas como uma profiss�o, assim como esperar que seja uma tarefa extremamente dif�cil.
 
Susan postergou o quanto pode o uso de computadores, e quando conversamos sobre isso ela disse: “a �ltima coisa que voc� deseja � tornar a escrita algo mais f�cil”. Eventualmente ela substituiu a m�quina de escrever, mas esse tipo de pensamento - e eu prestava muita aten��o em tudo o que ela dizia, porque acredito em tudo o que ela disse.
 
E ainda sinto isso em rela��o a ela, que ela realmente conhecia muito a esse respeito. Ent�o nesse sentido, ela foi a maior influ�ncia sobre a minha escrita, maior do que qualquer um que eu tenha conhecido. 

Como se sentiu ao recuperar suas mem�rias para escrever o livro?
 
N�o foi dif�cil porque em primeiro lugar � um livro curto. E eu sabia que s� colocaria no livro o que realmente me lembrava, basicamente, s� coloquei o que me recordava e constru� a hist�ria a partir disso. Eu n�o mantive um di�rio �quela �poca, n�o tinha refer�ncias.
 
Mas foi um per�odo t�o v�vido e importante em minha vida, e tamb�m envolveu um relacionamento amoroso com uma pessoa muito importante para mim, ela foi uma personagem t�o v�vida e, muito do que eu disse, j� era conhecido das pessoas pois era parte da imagem p�blica de Susan Sontag.
 
Ent�o comecei a escrever como um ensaio de 20 p�ginas e eventualmente, se estendeu em um livro de pouco mais de 100 p�ginas. Foi algo que eu sempre conversei com outras pessoas e n�o um passado morto.
 
Mas para ser honesta, quando reli o livro, eu havia esquecido de muitas coisas e se tivesse escrito ele agora, n�o teria lembrado de tudo o que escrevi. Ent�o, quando escrevi, em 2011, foi possivelmente a �ltima oportunidade para que eu pudesse me lembrar. 

O que lhe estimulou a iniciar esse projeto tanto tempo depois de tantos anos dos fatos?
 
Logo depois que Susan morreu, tudo o que lia sobre ela dizia que n�o tinha senso de humor, o que n�o era verdade. Ent�o eu escrevi um pequeno memorial, publicado numa revista, em que falei sobre isso.
 
E tempos depois, algu�m me pediu para escrever um ensaio sobre mentoria, e foi a� que fiz um texto de 20 p�ginas sobre Susan Sontag e quando foi publicado, o editor me procurou e pediu que considerasse estender aquele ensaio para um livro, que concordamos que seria curto, de mem�rias, e que n�o seria uma biografia.
 
Sou grata ao editor pois nunca me ocorreu escrever um livro sobre Susan, nunca pensei em fazer isso.
 
Acredita que elaborou algumas de suas quest�es com Susan Sontag enquanto escrevia o livro?
 
Sim, acho que escrever um livro assim, lembrar, tentar compreender melhor j� com uma dist�ncia emocional dos fatos. Foi uma experi�ncia apaziguadora escrever esse livro.
 
Entre todas as pessoas que conheceram Susan e leram o livro, nenhuma delas disse que algo n�o seria verdade. � claro que nem todo mundo gostou do livro, mas digo que nenhuma pessoa questionou os fatos, ent�o isso foi muito satisfat�rio. 

Ap�s a morte dela, manteve relacionamento ou contato com o filho dele, David?
 
N�o. Eu tive contato com Susan algumas vezes depois que me mudei da casa dela, mas n�o com David, mesmo quando ela estava doente e depois quando morreu. 

H� alguma conex�o entre o livro “Sempre Susan” e outros romances que escreveu, como “O amigo”, sobre uma escritora que adota o c�o de um mentor falecido, hist�ria que inclusive agora ser� levada para os cinemas?
 
Esta � uma boa pergunta. Os romances que escrevo sempre t�m algo de autobiogr�fico e de elementos n�o ficcionais nelas. A narradora � uma mulher, que � escritora, da minha idade e falando na primeira pessoa. � similar � autora de “Sempre Susan”, a mesma voz.
 
Em termos de estilo s�o muito similares, mas ao mesmo tempo s�o bem diferentes porque “Sempre Susan” n�o � uma obra ficcional, � real, ao contr�rio do romance “O amigo” (publicado no Brasil em 2019 pela editora Instante, a mesma de “Sempre Susan”).
 
Mas acredito que a pessoa que l� os dois livros diria que foram escritos pela mesma autora e percebe que algumas coisas que aprendi com Susan ou que associo a ela tamb�m est�o em “O amigo”.
 
Ou seja, se ela lesse “O amigo” n�o haveria nada na escrita que ela n�o reconhecesse ou que n�o fosse familiar a ela, perceberia a mentoria dela ali. 

H� diferen�as entre a imagem p�blica ou “persona p�blica” cultivada por Susan Sontag e a pessoa no �mbito privado?
 
Susan Sontag foi, de certa forma, muito transparente, n�o tentava esconder aspectos de sua personalidade. Quando estava escrevendo “Sempre Susan”, eu sabia que muitas pessoas que a conheceram iriam ler o livro. E uma das coisas que me perguntei, em alguns momentos, que certas passagens eram �ntimas, no �mbito da vida familiar e privada.
 
Mas ao refletir sobre isso, constato que de fato ela n�o fez segredo de nada, contou para todo mundo, tanto para as pessoas que a conheciam muito bem, quanto, tamb�m para aqueles a quem n�o conhecia t�o bem. Ent�o ela falava abertamente as coisas �ntimas, privadas, n�o era uma pessoa reservada de forma alguma coisa.
 
Mas por outro lado, no �mbito da vida p�blica, ela se colocava como uma certa “persona”, em que todos diziam: “ela n�o tem senso de humor”, “ela leva tudo muito seriamente”, “ela � t�o arrogante”, porque Susan sempre esteve muito preocupada com a sua imagem, e desejava projetar autoridade, era muito importante para ela se apresentar da mesma forma que um homem se apresentaria.
 
Susan rejeitava o comportamento em geral associado �s mulheres, que estariam preocupadas em agradar. Contraditoriamente, Susan sempre queria ser a pessoa mais inteligente no ambiente. As pessoas admiravam, mas ao mesmo tempo temiam isso.
 
E Susan gostava, ela queria que as pessoas se sentissem assim. Uma outra quest�o � que, em sua persona p�blica, Susan tamb�m queria passar a ideia de completa independ�ncia, que rejeitou qualquer tipo de apoio financeiro para a educa��o da crian�a quando se divorciou, toda essa independ�ncia, etc. Mas ela foi muito dependente.
 
Com frequ�ncia ela foi apoiada financeiramente por outras pessoas, foi algu�m que, de certa forma, se permitiu aceitar recursos do editor que a publicava. E tamb�m foi uma pessoa que n�o conseguia estar s�. Tinha medo de ficar sozinha. As pessoas que a conheciam na vida privada acreditavam que havia algo de muito vulner�vel e infantil nela. 

Quem foram as pessoas que mais estiveram pr�ximas de Susan Sontag ap�s o c�ncer?
 
Quando conheci Susan Sontag, ela tinha 43 anos e se recuperava de uma mastectomia radical. N�o muitos anos depois, ela teve uma recidiva. E por fim, aos 72 anos, teve o c�ncer final que a matou. Ent�o ela sempre foi uma pessoa vulner�vel.
 
E havia muitas pessoas ao redor dela que desejavam cuidar dela, entre as quais, a sua companheira, a francesa Nicole St�phane (filha mais velha do Bar�o James-Henri de Rothschild com a sua primeira esposa) com quem teve um longo relacionamento.
 
Nicole era uma figura muito, muito maternal. E � interessante notar que, no relacionamento de Susan com o seu filho David, era como se este fosse pai dela. David assumia o papel de uma figura paterna para Susan.
 
Roger Strauss, que publicou o primeiro livro de Susan, e publicaria todos os outros, mantinha com ela um relacionamento que foi muito al�m de profissional: eram amigos e confidentes, participava de diversos aspectos da vida de Susan, incluindo a crise da doen�a dela. Strauss se referia a David como “provavelmente meu filho ileg�timo”.

Em seu livro, a senhora menciona que Susan Sontag era obcecada por n�o ser uma pessoa conservadora, tradicional. Na pr�tica, essa obsess�o se confirmava?
 
Susan tinha um lado conservador, embora estivesse sempre muito alerta e fosse grande apreciadora da cultura pop, da vanguarda, etc, ela reverenciava a cultura tradicional europeia.
 
E ela estava muito consciente disso. Ela tinha valores muito tradicionais em rela��o a como uma escritora ou escritor e intelectual deveria se comportar. Ela certamente n�o era como uma pessoa bo�mia ou hippie, do tipo “fa�a do seu jeito, viva e deixe viver”.
 
Ela sentia que havia certas formas de ser e de se comportar, certos princ�pios de comportamento. Por exemplo, eu sei que em algum momento da vida, ela fumou maconha, mas ela se opunha � ideia de que algu�m pudesse usar drogas fortes para fins recreativos.
 
Exceto anfetaminas, para trabalhar. N�o eram drogas para a recrea��o. Ela desaprovava as pessoas que abusavam de drogas, mesmo a bebida, socialmente. 

Como era o relacionamento de Susan com o filho David? O que lhe pareceu ao morar no apartamento dela, como namorada do filho? 
 
As pessoas estranhavam muito e diziam que isso nunca daria certo. Mas ela afirmava: “N�o temos de ser como todo mundo” ou “n�o temos de ser convencionais, em outras culturas isso � muito comum”. �quela �poca, ela estava namorando por um tempo o poeta russo Joseph Brodsky.
 
E ela dizia a Brodsky: “N�o � verdade, n�o � assim na R�ssia? As fam�lias russas s�o assim tamb�m, os filhos e esposas vivendo na mesma casa da m�e deles”. Ent�o ela considerava que era algo perfeitamente normal e razo�vel a ser feito.
 
Eu n�o tive a m�e mais amorosa, inclusive, eu adoraria ter uma figura maternal em minha vida. Mas o problema realmente era que Susan n�o era uma figura maternal, de forma alguma.
 
O desejo dela de viver junto n�o se relacionava ao desejo de estar com a nora, mas antes, ela queria a vida de ambos centrada em torno dela e de suas necessidades, como se, num certo sentido, n�s f�ssemos os pais e ela a crian�a. 
 
Ela tamb�m dizia coisas do tipo: “David e eu sempre precisamos ter uma terceira pessoa”. Algo como se ela e o filho fossem o casal. N�o se trata de incesto ou nada do g�nero, era algo mais psicol�gico.
 
E as pessoas estavam sempre nos acusando, ouv�amos coisas do tipo: “Todos sabem que David e Susan dormiram juntos”. Isso era rid�culo, nunca aconteceu. Ent�o conviver com isso foi dif�cil, sabendo que as pessoas l� fora pensavam de n�s como imorais numa situa��o imoral.
 
Mas o ponto � que ela tinha tanto medo de que n�s nos mud�ssemos do apartamento dela, que, quando David quis fazer isso e disse para ela, Susan fez tudo para evit�-lo. E o fato de ela ter uma doen�a grave tornava imposs�vel dizer “n�o”. Ent�o Susan se sentia amea�ada por qualquer pessoa que pudesse tirar David dela, pudesse desviar a aten��o de David em rela��o a ela.
 
Eu tentei escrever sobre isso da maneira mais cuidadosa poss�vel. Mas essa era uma situa��o nada saud�vel, que nunca poderia dar certo. Ao final eu me mudei e algo que ela nunca me perdoou foi que, logo depois, ele tamb�m se mudou. 

Depois que a senhora se mudou, como ficou o relacionamento com o David e com a Susan?
 
Muitas coisas ruins aconteceram naquele caos que estava a casa quando eu disse que estava indo embora. De um lado, Susan dizia para mim que eu n�o podia sair da casa porque David nunca me perdoaria. E David dizendo para mim que eu n�o poderia deixar Susan, porque eu nunca poderia me perdoar. Depois que eu deixei a casa, David, Susan e eu continuamos a nos relacionar por um tempo, mas depois, David e eu terminamos nosso relacionamento. Pouco tempo depois ele montou o pr�prio apartamento, mas n�s j� n�o nos relacion�vamos. 

Que tipo de imagem p�blica de Susan Sontag prevalecia entre feministas e intelectuais?
 
Havia duas vis�es diferentes. Algumas pessoas que sentiam que era uma feminista muito importante, o que realmente era, e que tinha coisas importantes a dizer sobre feminismo e se ler os ensaios dela, ver� isso. Outras pessoas acreditam que aquilo o que ela escreveu sobre a libera��o da mulher, o feminismo, a libera��o das mulheres tem muito de cr�tica � mulher.
 
Nesse sentido, ela seria uma pessoa que acredita intensamente no feminismo e nos direitos da mulher, mas que ela tinha sentimentos de desd�m em rela��o � maioria das mulheres e acreditava que eram respons�veis pela pr�pria situa��o de opress�o.
 
Muitas pessoas n�o gostavam disso. Aqui nos Estados Unidos, ao longo da vida adulta de Susan Sontag, ela foi a intelectual americana de maior visibilidade, e ela era uma mulher, ela realmente mais conhecida do que todos os outros intelectuais homens da �poca. Inclusive, muitos acreditam que ela alcan�ara esta visibilidade porque foi a �poca da segunda onda do feminismo. Susan exibia essa posi��o com orgulho.
 
E isso � absolutamente quem ela realmente era. Essa era a identidade dela. Mas em minha opini�o, acho que ela era mais valiosa como pensadora do que como feminista: ela tinha certos pensamentos mis�ginos que nunca conseguiu superar, imaginando que ela pr�pria seria uma exce��o fora da curva em rela��o �s demais mulheres. 

Capa do livro 'Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag'


“Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag”
• De Sigrid Nunez
•  Tradu��o de Carla Fortino
•  Editora Instante
•  128 p�ginas
• R$ 64,90

Trechos

 
(De “Sempre Susan”, de Sigrid Nunez, com tradu��o de Carla Fortino)

“Isso � mais dif�cil para uma mulher”, admitiu. Querendo dizer: para ser s�ria, para se levar a s�rio, para ser levada a s�rio. Ela deu um basta nisso quando ainda era crian�a. Deixar o g�nero atrapalhar seu caminho? N�o na sua vida! Mas a maioria das mulheres era muito t�mida. A maioria das mulheres tinha medo de ser assertiva, medo de parecer inteligente demais, ambiciosa demais, confiante demais. Tinha medo de ser deselegante. N�o queria ser vista como dura ou fria, autocentrada ou arrogante. Tinha medo de parecer masculina. A regra n�mero um era superar isso tudo (...) Ela certamente n�o tinha medo de parecer masculina. E era impaciente com outras mulheres por n�o serem mais como ela. Por n�o serem capazes de sair da sala das mulheres e se juntar aos homens. Sempre usava cal�a (em geral, jeans) e salto baixo (em geral, t�nis) e recusava-se a carregar bolsa. O apego das mulheres a bolsa a espantava. Zombava de mim por levar a minha a todo lugar. De onde as mulheres tiraram a ideia de que ficariam perdidas sem uma bolsa? Homens n�o carregavam bolsas, eu n�o tinha percebido? Por que as mulheres se sobrecarregavam? Por que, em vez disso, n�o usavam roupas com bolsos suficientemente grandes para guardar chaves, carteira e cigarros, tal qual os homens?”
 
Enquanto escrevia este livro, sonhei com ela duas vezes. No primeiro sonho, estamos no bal�. N�s nos encontramos durante o intervalo. Ela tem estado doente. Seu cabelo � curto, fino, seco, vermelho. “Bem”, ela pergunta, “voc� se infiltrou?”. Ela se refere � companhia de bal�. “Por exemplo”, ela diz, “qual � a altura daquele bailarino?”. Respondo a ela. “N�o, n�o”, diz. “Ele tem mais de seis metros de altura.” Digo que isso � imposs�vel. Nenhum bailarino tem seis metros de altura. Ao que ela fica agitada e diz: “Como posso confiar em voc� agora?”. 

No segundo sonho, estou na casa dela, socinha. Ela est� fora, e concordei em cuidar da casa. Enquanto estou l�, chegam dois estranhos, um casal chamado Pat e Mike Tribe. Vieram se apoderar do im�vel. S�o educados, mas firmes, e, embora eu tente, n�o consigo det�-los. 

Como ela pode confiar em mim? N�o sei como me infiltrar direito e permito que os Tribe invadam a casa dela. 


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