'Perdeu vontade de espiar cotidianos' homenageia pensamento e literatura
Obra cat�rtica e arrebatadora suplanta a inten��o est�tica de questionar esse tempo seduzido pelos fetiches do deus mercado e mobilizado por energias virtuais
15/09/2023 04:00
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atualizado 14/09/2023 23:17
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Evandro Affonso Ferreira, mineiro de Arax�, radicado em S�o Paulo: sofistica��o e polifonia (foto: divulga��o)
Ronaldo Cagiano
Especial para o EM
Quando estreou com a safra de minicontos “Grogot�” (Topbooks, 2000), Evandro Affonso Ferreira, mineiro de Arax� radicado em S�o Paulo, chamou a aten��o de escritores e cr�ticos. Entre eles, Jos� Paulo Paes ressaltou que “suas figuras s�o geradas num equil�brio not�vel entre intensidade expressiva e exuber�ncia lingu�stica”; e o impag�vel Mill�r Fernandes o definiu como “um vivificador de palavras”.
Reconheceram o vezo escafandrista de quem, tendo publicado seu primeiro livro aos 55 anos, trouxe o feeling de ex-redator publicit�rio, a experi�ncia de livreiro (foi propriet�rio dos sebos Sagarana e Avalovara) e a avidez do leitor que mergulha nas profundezas do oceano da linguagem para resgatar palavras e express�es adormecidas e pouco usuais coloquial ou literariamente.
Na linha dessa arqueologia de f�sseis verbais, perfilando exaustivamente o ritmo e a melodia, os livros de Evandro incorporam em seus t�tulos e no escopo narrativo um vi�s de experimentalismo e versatilidade e trazem um h�lito de originalidade e sutil humor � dic��o, inaugurando uma sintaxe muito peculiar que o particulariza entre as produ��es contempor�neas.
Nesse diapas�o nasceram “Ara�” (2002), “Erefu�” (2004), “Zaratemp�” (2005) e “Catr�mbias” (2006) pela Editora 34, numa obstinada busca etimol�gica e recupera��o sem�ntica de termos que ca�ram em hiberna��o.
Com essa garimpagem no aluvi�o do idioma, escarafunchando seus mist�rios e atalhos metaf�ricos, o autor sinaliza a preocupa��o com a morte das palavras. A seguir, empreende uma guinada, numa imers�o metaf�sica e de inquieta��o psicol�gica, quando o seu p�ndulo criativo oscila entre o crep�sculo da esperan�a e a morte do indiv�duo.
Da� adv�m t�tulos ao mesmo tempo instigantes e reflexivos, que deambulam entre o desencanto e a escatologia: “Minha m�e se matou sem dizer adeus” (2010), “O mendigo que sabia de cor os ad�gios de Erasmo de Roterdam” (2012), “Os piores dias de minha vida foram todos” (2014), “N�o tive nenhum prazer em conhec�-los” (2016), “Nunca houve tanto fim como agora” (2017) e “Rei rev�s” (2019), com chancela da editora Record.
Transcendendo essa esp�cie de temporada rimbaudiana no inferno dos desassossegos e de decanta��o do inconformismo, o autor aprofunda a carga niilista e a expans�o de cen�rios entr�picos recorrentes em sua bibliografia, culminando num salto distinto, na apropria��o de fluxos filos�ficos, tr�nsitos intertextuais e flertes metalingu�sticos.
Contempor�neo do incomensur�vel e n�made de universos intang�veis, em seus romances a atmosfera se sobrep�e � hist�ria, a mat�ria evandriana bebe nas fontes da melancolia.
“Nossa ontol�gica personagem”
Incursionando por nova fase em que se opera uma metamorfose conceitual, o autor publica pela editora N�s “Mo�a quase-viva enrodilhada numa amoreira quase-morta” (2019) e o rec�m-lan�ado “Perdeu vontade de espiar cotidianos” (2023), novelas de matiz existencialista.
Nelas revisita e potencializa os atavismos, idiossincrasias e acicates de protagonistas anteriores, ao emular o denso e tenso olhar sobre as mazelas, o desconforto individual e as demandas coletivas capturados pelo rastreio hermen�utico e os solil�quios e diatribes de uma entidade ab�lica e c�tica nomeada “Nossa Ontol�gica Personagem”, que vacila entre a casmurrice e um quixotismo �s avessas.
� a partir do promont�rio de sua escaldada e octogen�ria viv�ncia, ao desfiar os fios de um intrincado novelo de observa��o das contradi��es do mundo, do homem e do tempo, que disseca, em clave desesperada, pessimista e rebarbativa, o ambiente conflituoso, de insatisfa��es e desenganos que modulam a navega��o de seu fr�gil barco existencial.
Transitando pela sofistica��o e polifonia de uma linguagem que explora neologismos e a min�cia das sonoridades, com um raro acento estil�stico, Evandro Affonso Ferreira abre seu “laborat�rio abstrato” no qual transmuta um processo alqu�mico de perplexidades.
Das provetas introspectivas da personagem emerge um pout-pourri de enunciados e adjetivos meticulosamente escolhidos que, artificiosamente repetidos, t�m o efeito pleon�stico de um mantra, ao cartografar as ambiguidades e os meandros da condi��o humana, mapeando, com sensibilidade dial�tica, os passivos, ang�stias e tormentos de um ser em crise num planeta em colapso.
“Perdeu vontade de espiar cotidianos”, obra cat�rtica e arrebatadora de um ex�mio demiurgo da palavra, suplanta a inten��o est�tica de questionar esse tempo seduzido pelos fetiches do deus mercado e mobilizado por energias virtuais, que nos insularizam social, pol�tica e emocionalmente. � sobretudo uma escrita autoral que se converte em homenagem ao pensamento e � literatura, aos seus signos e m�ltiplas possibilidades de comunica��o, num parentesco e resson�ncia com o que disse Roland Barthes: “A linguagem � como uma pele: com ela eu contacto os outros. Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz.”
* Escritor mineiro, vive em Portugal, autor de “Eles n�o moram mais aqui” (Pr�mio Jabuti 2016)
Entrevista Evandro Affonso Ferreira
'N�o abro m�o dos momentos sublimes da escritura'
Em seus livros n�o se nota uma profus�o de personagens nem um enredo definido, mas um �nico ser enjaulado numa atmosfera, o qual – seja na mesa de um caf� ou num promont�rio abstrato – instala seu �ntimo gabinete de observa��es. Voc� agudiza o mesmo recurso com sua Ontol�gica Personagem. Quem � ela, um ser bovariano ou uma esp�cie de heter�nimo abrigando tantas personas?
Bovary sou eu, Diria Flaubert… Ontol�gica Personagem possivelmente faz parte de meus m�ltiplos eus, com suas tergiversa��es triviais, com suas evasivas, suas trivialidades cotidianas para engranzular o tempo, este que parecer estancar no por�o, nas entranhas delas, nossas pr�prias ins�pidas, insulsas exist�ncias.
Sensa��o de que ela, n�s, vivemos tempo todo - na contram�o da sensatez – alheios, indiferentes �s estupefa��es, mesmo diante das pr�prias bizarrias.
Sua literatura � visceralmente um exerc�cio de introspe��o, de interven��es filos�ficas e frontalidade ao caos do mundo e � banaliza��o dos sentidos. Essa pr�xis exige do leitor uma empatia est�tica. Para n�o sucumbir � sua inten��o subjetiva de provocar um chacoalhar �tico, � preciso percorrer suas p�ginas sem perder o fio de Ariadne da percep��o?
Minha literatura? Cheia de frases truncadas, mesmo assim querendo, a todo custo, apalpar o inacess�vel. Tentando querendo deixar quem quer que seja afei�oas os aturdimentos, mesmo sabendo da impossibilidade de conhecer em detalhes labirinto confuso da alma de quem est� do outro lado da p�gina – si, voc� leitor: vez em quando c�mplice, vez em quando algoz.
Sua Ontol�gica Personagem traz a sensa��o de discorrer a partir de um div�, num jorro psicanal�tico e envolvente, o que remete ao que disse Lacan em “Semin�rio 20”: “Escrevo a partir do que n�o pode ser escrito”. N�o � essa a mesma perspectiva que endossa seu percurso liter�rio como um inventariante de inquieta��es?
Escrevo possivelmente para driblar a inquietude, para quem sabe (?), n�o deixar esperan�a se desvanecer de vez. Hip�teses. Sei que n�o abro m�o dos momentos sublimes da escritura, instante em que palavras e eu nos enrodilhamos em afagos m�tuos.
Invocando sua simbiose com os espectros on�ricos e vincula��es ao universo borgiano, que resposta sua Ontol�gica Personagem daria para as perguntas que ainda n�o foram feitas?
Continuo deixando soar os guizos melanc�licos de minhas vogais e consoantes que j� foram chamas; hoje, fa�scas. Agora h� pouco palavras chegaram contidas, dizendo: Hoje, dia frio, queremos nos aconchegar num epigrama.
“Perdeu vontade de espiar cotidianos”
• De Evandro Affonso Ferreira
• Editora N�s
• 88 p�ginas
• R$ 60
Trecho de “Perdeu vontade de espiar cotidianos”
“Nossa ontol�gica personagem consegue criar para consumo pr�prio, em seu laborat�rio abstrato (lugar no qual procura apalpar coisas inacess�veis � raz�o), dezenas-centenas de dias amb�guos. Ah, esse arsenal m�gico com pretens�es inimagin�veis e suas delirantes prestidigita��es... Especializou-se em afagar abstra��es para estancar, arrefecer urg�ncias. Cultivadora de espreitas pu�das-polu�das, faz do remorso caleidosc�pio de prolongados tatibitates – mesmo sabendo da inutilidade de (nesses labirintos kafkianos) esperar ajuda de extempor�nea Ariadne.”