
H� mais de 100.000 integrantes do ex�rcito russo na fronteira ucraniana e aumenta o contingente de soldados russos na Bielorr�ssia (aliada hist�rica do Kremlin), que faz limite ao norte com a Ucr�nia, com o objetivo de “preparar para a luta”, a partir de fevereiro, deixando mais vulner�vel a capital, Kiev, devido � localiza��o mais setentrional da cidade.
Bem, farei um relato sucinto de uma hist�ria muito mais complexa do que a que se acompanha nesses �ltimos meses. Vamos por partes.
A Ucr�nia era uma das 15 rep�blicas da antiga Uni�o das Rep�blicas Socialistas Sovi�ticas (ex-URSS), anexada, parcialmente, em 1919. Em 1922, Lenin absorveu sua fronteira na forma��o da URSS. Durante o regime Stalin, ocorreu o “Holodomor”, a grande fome, na d�cada de 30, mas tamb�m foi quem levou � reconcilia��o entre ucranianos e russos. A atual configura��o foi definida no cen�rio da Segunda Guerra Mundial apesar da insatisfa��o de muitos ucranianos com esses limites.
Com a sua independ�ncia e a desintegra��o sovi�tica (1991), o pa�s passou a formar, junto com a R�ssia e o Cazaquist�o, o trip� mais importante da geopol�tica herdada da ex-superpot�ncia socialista que, junto com os EUA, formou a bipolaridade pol�tico-econ�mica, que se constituiu no p�s-Segunda Grande Guerra.
� certo que o div�rcio p�s-sovi�tico de 1991 foi realizado pacificamente, e a Ucr�nia teve, entre 1991 e 2014, fronteiras indiscut�veis. Mas, desde 2014, o governo ucraniano perdeu o controle de parte das regi�es de Luhansk e Donetsk no leste (a parte ucraniana da bacia de carv�o do Don, o Donbass) para grupos separatistas, apoiados pela R�ssia.
A rep�blica ucraniana possu�a, durante a fase sovi�tica, uma boa infraestrutura industrial e b�lica, incluindo arsenal nuclear, mas em 1994, como resultado de um acordo intermediado pelos EUA, Inglaterra e R�ssia, o pa�s abdicou desse arsenal nuclear. Para persuadir os ucranianos, os EUA e a Gr�-Bretanha assinaram com os russos acordos que garantiriam a integridade do territ�rio em troca da entrega das armas nucleares � R�ssia.
Algo semelhante ocorreu durante os acordos da reunifica��o alem� (1990). Os pa�ses ocidentais, especialmente os EUA, asseguraram, informalmente, que a Organiza��o do Tratado do Atl�ntico Norte (OTAN), a poderosa alian�a militar ocidental, n�o se expandiria em dire��o � antiga Europa do Leste Socialista.
Esses acordos, aparentemente, esquecidos tanto por Putin, quanto pelo Ocidente, est�o na raiz dos problemas enfrentados, no momento, na regi�o.
As condi��es econ�micas que se seguiram � independ�ncia causaram forte instabilidade nos �mbitos sociais e econ�micos do pa�s. Os �ndices inflacion�rios elevados, somados � corrup��o pol�tica, agravavam ainda mais esse cen�rio. Todavia, os planos de recupera��o da economia, adotados no final da d�cada de 1990, permitiram uma retomada do crescimento econ�mico, que chegou a atingir dois d�gitos no �ltimo dec�nio.
Politicamente, o pa�s apresenta uma complexidade muito maior, com a diversidade �tnica do pa�s e o predom�nio de ucranianos e russos �tnicos. H� uma clara divis�o entre o Leste e o Oeste do pa�s. O Leste � de maior influ�ncia russa, especialmente a regi�o de Donbass, e o oeste � mais pr�-ocidente e busca uma aproxima��o com a Uni�o Europeia (UE).
Essa divis�o se mostrou clara em 2004, quando ocorriam elei��es presidenciais no pa�s. Os dois principais candidatos eram Viktor Yushchenko e Viktor Yanukovych. Yushchenko era o candidato cuja pol�tica era mais direcionada para o Ocidente e defendia maior proximidade com a Uni�o Europeia (UE). O advers�rio Yanukovych era pr� R�ssia, de Vladimir Putin.
Na �poca, as pesquisas de opini�o davam clara vit�ria a Yushchenko, em desacordo com os interesses russos. Foi nesta �poca que Yushchenko foi envenado com dioxina, que causou graves sequelas � pele e ao seu organismo. Apesar da gravidade, ele sobreviveu. A pr�tica de envenenamento dos opositores de Putin � bastante corriqueira na R�ssia embora o governo negue envolvimento com esses casos.
Quando os resultados finais das elei��es foram divulgados, Yanukovych venceu com uma vantagem de 3%. Os sinais de fraude eram evidentes. Esse fato levou uma parcela expressiva da popula��o ucraniana �s ruas em protesto durante o m�s de dezembro de 2004, enfrentando o rigoroso inverno t�pico dessa �poca no pa�s.
A Pra�a da Independ�ncia foi tomada pelos simpatizantes do presidente derrotado, vestidos com roupas e bandeiras de cor laranja. Esse movimento ficou conhecido como Revolu��o Laranja (a cor de campanha de Yushchenko). O resultado foi nova elei��o em 2005, com vit�ria de Viktor Yushchenko.
O novo l�der enfrenta a resist�ncia russa, que tenta dificultar seu governo. O fechamento dos gasodutos que abastecem o pa�s e outros pa�ses europeus mostra a disposi��o de Putin no intuito de enfraquecer o novo governo. No poder, Viktor Yushchenko inicia os processos de aproxima��o com a UE. Contrariou os interesses russos e dividindo, ainda mais, a na��o. Foi cogitado inclusive separar o pa�s, de acordo com as �reas de influ�ncia Ocidente-R�ssia, o que acabou n�o acontecendo.
Perdas estrat�gicas importantes
A Ucr�nia � estrat�gica pelos dutos que cruzam o pa�s e tamb�m por ser principal fronteira de acesso da R�ssia � Europa uma vez que os pa�ses b�lticos –Est�nia, Let�nia e Litu�nia- s�o hostis e a Bielorr�ssia, a grande aliada, se encontra isolada pela Europa devido � ditadura, de quase tr�s d�cadas, que domina o pa�s. Perder a influ�ncia sobre a Ucr�nia significa perdas geoestrat�gicas importantes para Putin.
Em 2014, uma nova onda de manifesta��es teve in�cio na Ucr�nia depois que o governo do presidente Viktor Yanukovich (o candidato envolvido com a fraude de 2004, eleito, de forma leg�tima, em 2010) desistiu de assinar, em 21 de novembro de 2013, um acordo de livre-com�rcio e associa��o pol�tica com a Uni�o Europeia (UE), sob a alega��o de que havia decidido buscar rela��es comerciais mais pr�ximas com a R�ssia, seu principal aliado.
Novamente, a Pra�a da Independ�ncia tornou-se palco, inicialmente, de manifesta��es pac�ficas, que evolu�ram para fortes enfrentamentos entre manifestantes e policiais. Com a escalada da viol�ncia, um acordo foi assinado entre Yanukovich e os l�deres da oposi��o, no dia 21 de fevereiro de 2014, determinando a realiza��o de elei��es presidenciais antecipadas e a volta � Constitui��o de 2004, o que reduziria os poderes presidenciais.
O acordo tamb�m previa a forma��o de um "governo de unidade", uma tentativa de solucionar a violenta crise pol�tica. No dia seguinte o presidente, alegando “golpe de estado”, abandona a capital Kiev. Dias depois aparece na R�ssia. A Ucr�nia exigia sua extradi��o – havia sido condenado pela morte de civis -, a Uni�o Europeia congela os ativos do ex-l�der.
A postura da Europa e dos EUA diante dessa crise gerou discord�ncias entre os analistas, na �poca. Ao apoiarem os manifestantes/rebeldes, foram contr�rios a um presidente, legitimamente, eleito, mesmo que incompetente para a fun��o. Para esses cr�ticos, era uma viola��o de um processo democr�tico, que esses mesmos pa�ses apoiam em outros contextos.
A maioria da popula��o defende uma proximidade com a UE, mas n�o significa que desejam se isolar da R�ssia. O pa�s � um importante aliado econ�mico e principal fornecedor de g�s para a Ucr�nia e Europa.
Esperava-se uma solu��o gradativa dos problemas no pa�s, com novas elei��es definidas para maio daquele ano. Mas, simpatizantes de Yanukovich, principalmente, na Pen�nsula da Crimeia (regi�o do Mar Negro, onde est� a cidade independente de Sebastopol e a instala��o da frota russa), doada, em 1954, � Ucr�nia por Nikita Khrushchev (sucessor de St�lin e ucraniano), resistiram �s mudan�as de governo. A popula��o de dois milh�es de habitantes com predom�nio de russos �tnicos tomou pr�dios e gritou apoio � R�ssia.
Supostamente, em defesa desses russos �tnicos, Putin envia tropas para a regi�o da Crimeia, que aprova no parlamento um referendo de ades�o da pen�nsula � R�ssia. Esse referendo n�o foi aprovado pelo governo ucraniano e por nenhum outro pa�s do mundo (exceto pela S�ria, provavelmente, devido � ajuda da R�ssia, nos confrontos impostos pela Primavera �rabe no pa�s).
Os EUA exigiram a retirada das tropas russas, mas Putin foi irredut�vel e as tropas permaneceram na regi�o e ocuparam a regi�o de Donbass, onde h� predom�nio de russos, desde ent�o. H� mais de sete anos a regi�o enfrenta uma guerra entre as for�as ucranianas e russas.
O Ocidente imp�s severas san��es � R�ssia, com o objetivo de isol�-la internacionalmente e, equivocadamente, muitas amea�as. Vladimir Putin tem por h�bito n�o ceder �s amea�as e buscou outros aliados, como a China, e conseguiu se manter, relativamente, mesmo com os atropelos.
Putin condena a expans�o da OTAN em dire��o aos pa�ses que considera sua �rbita de influ�ncia direta, ap�s o desfecho da URSS e exige que o compromisso informal assumido em 1990 seja respeitado. N�o h� nada escrito sobre isso. Na �poca existia o Pacto de Vars�via (alian�a militar socialista) e n�o se acreditava no desfecho que se seguiu em 1991, quando junto com a URSS, essa alian�a se desintegrou.
Documentos sigilosos dessa �poca, liberados h� alguns anos, comprovam esse compromisso da OTAN de n�o se expandir nessa dire��o. N�o foi cumprido. Hungria, Pol�nia e Rep�blica Tcheca aderiram � OTAN, em 1999. Em 2004, foi a vez da Bulg�ria, Est�nia, Let�nia, Litu�nia, Rom�nia, Eslov�quia e Eslov�nia.
Desde ent�o, Alb�nia, Cro�cia, Montenegro e, finalmente, a Rep�blica da Maced�nia do Norte, em 2020, tamb�m se tornaram membros da Alian�a e se beneficiam de sua prote��o em caso de conflito com um pa�s terceiro, como estabelece o Artigo 5 da OTAN, que diz que uma agress�o a um membro se estende a todos os demais.
Esse avan�o da OTAN, em dire��o � Ucr�nia causa revolta ao l�der russo e alimenta as tens�es que se estendem desde 2014, quando eclodiu a Revolu��o Maidan, que resultou, entre outras coisas na anexa��o da Crimeia. A R�ssia exige que a OTAN se comprometa a nunca incluir a Ucr�nia ou outros novos membros, retirar as for�as do leste europeu e voltar ao seu tamanho menor p�s-Guerra Fria!
Popula��o idosa e baixo �ndice de natalidade
Al�m dessa quest�o hist�rica, h� tamb�m uma de ordem demogr�fica. A popula��o russa recua num ritmo muito acentuado. As altas taxas de mortalidade, somadas aos baixos �ndices de natalidade implicam uma queda do crescimento vegetativo russo. Em m�dia, a cada ano, morrem 700 mil russos, que n�o s�o repostos.
H� tamb�m uma redu��o dos russos �tnicos (a R�ssia considera a nacionalidade origin�ria aquela que � baseada no Jus Sanguinis, estabelecida quando um dos pais ou ambos t�m nacionalidade russa, independentemente do local de nascimento) nas antigas rep�blicas. Muitos emigraram desses locais, fugindo da persegui��o, instabilidade e inseguran�a impostas pelas menores possibilidades econ�micas e pela discrimina��o a que est�o expostos. A “russifica��o” iniciada com os czares e mantida durante o regime socialista, principalmente, com St�lin, est� perdendo representatividade.
Existe uma outra tend�ncia geral na demografia �tnica: o aumento, em quase todas as regi�es russas, do n�mero de imigrantes de outros pa�ses, principalmente da ex-URSS, China e Vietn�. Nos �ltimos vinte anos, 10 milh�es de migrantes se estabeleceram permanentemente na R�ssia; al�m disso, cerca de 10 milh�es de trabalhadores estrangeiros est�o no pa�s a cada ano. De acordo com algumas estimativas, este �ltimo n�mero pode ser duas vezes maior, pois n�o h� estat�sticas confi�veis de migra��o no pa�s.
Nessas circunst�ncias, as fobias est�o se espalhando entre a popula��o e v�rios c�lculos pol�ticos d�o corpo a uma vis�o muito sombria da imigra��o: os migrantes s�o onipresentes nas grandes cidades russas, aumentando os �ndices de criminalidade e ocupando o mercado de trabalho em detrimento da popula��o local.
Somado a todo esse cen�rio, h� a obsess�o do l�der russo pela Ucr�nia. Putin estende seu reinado a este pa�s. A forte rela��o identit�ria e emocional de Putin com esse territ�rio est� na base das crescentes tens�es. O presidente russo n�o definiu seu destino pol�tico em 2024, mas sabe que n�o � imortal e quer deixar um legado de preserva��o das terras russas, que considera sua miss�o hist�rica. A Ucr�nia � um obst�culo a essa pretens�o.
Sem sinais de vencedores
As negocia��es continuam, mas n�o avan�am no ritmo esperado. Parecem um jogo de gato e rato para ganhar tempo e aumentar o desgaste. N�o h� sinais de quem esteja vencendo. Os russos aumentam a presen�a de soldados nas fronteiras e o Ocidente envia armas, m�sseis antitanques Javelin e dinheiro considerando a possibilidade de uma incurs�o russa no pa�s (os EUA permitiram apoio b�lico dos membros da OTAN no B�ltico e libera 200 milh�es de d�lares em assist�ncia defensiva letal � Ucr�nia).
No s�bado (22/01), o Reino Unido exp�s um plano dos russos, indicando que Putin estava preparando um aliado para colocar no poder e destituir a lideran�a do presidente pr�-ocidente da Ucr�nia, Volodymyr Zelensky. Tal an�ncio aumentou o medo de uma guerra iminente. Embaixadas est�o sendo esvaziadas devido a esse risco.
Entretanto, apesar desse cen�rio, a possibilidade de uma guerra imediata pode n�o ser a �nica estrat�gia de Putin. � pouco prov�vel que uma invas�o ocorra nos pr�ximos dias. A realiza��o dos Jogos de Inverno em Beijing, entre os dias 04 a 20 de fevereiro, pode impedir essa a��o. Putin n�o pretende tirar a aten��o para o evento com uma guerra. A China � importante para reduzir o isolamento que o Ocidente quer impor ao pa�s. Uma guerra tiraria o foco do evento.
H� outras possibilidades de enfraquecer o governo hostil de Zolensky, sem atacar a fronteira. O Ocidente est� concentrando nesse ato, enquanto isso a mente imprevis�vel do l�der russo pode optar por outras estrat�gias. Putin pode usar meios como a guerra cibern�tica (j� iniciada), fortes campanhas de desinforma��o, setor em que a habilidade russa � ineg�vel, por exemplo.
As cartas est�o sobre a mesa. Est�o sendo embaralhadas, mas n�o foram cortadas. Em um cen�rio perfeito, os russos deveriam reconhecer a legitimidade das na��es, em especial, a Ucr�nia, afinal foi esse o compromisso assumido, em 1994, e as agress�es serem controladas (� importante lembrar da Ge�rgia, em 2008). Isso se aplica ao Ocidente e � OTAN: cumprir os acordos (informais, mas verdadeiros) estabelecidos, em 1990, de respeitar as antigas fronteiras de influ�ncia, estabelecidas em Yalta, num long�nquo fevereiro de 1945.
O uso da for�a n�o deveria ser adotado. As maiores perdas ser�o de civis. Se para isso for necess�ria mais autonomia �s prov�ncias do Leste, em um processo democr�tico claro e respeitado por todos os envolvidos, que assim seja. Al�m de negociar e estabelecer direitos plenos dos ucranianos, os interesses dos cidad�os devem estar sempre � frente de disputas geopol�ticas.
Deveriam lembrar de Maquiavel, em sua obra “ A Arte da Guerra”: na guerra, a disciplina vale bem mais do que a exalta��o.