
“Chega a ser um impedimento que cria traumas e barreiras de n�o se sentir confort�vel para ir a um posto de sa�de quando voc� est� doente por medo da repress�o e de como vai ser recebida naquele lugar”, conta a atriz e produtora cultural Sol Markes, de 25 anos, sobre a patologiza��o da transexualidade.
Ela, assim como muitas outras pessoas trans, enfrenta a luta di�ria de existir como um corpo que, at� hoje, � visto como “incongruente” – principalmente pela �rea da Sa�de –, apesar dos avan�os ao longo dos anos.
Em maio de 2019, a milit�ncia pela despatologiza��o da transexualidade resultou na sua retirada da 11º vers�o da Classifica��o Estat�stica Internacional de Doen�as e Problemas de Sa�de (CID) como “transtorno mental”, onde esteve por 28 anos – embora continue na lista geral, dessa vez classificada como “incongru�ncia de g�nero”, condi��o de “n�o paridade entre a identidade de g�nero e o sexo ao nascimento”, de acordo com o Conselho Federal de Medicina do Brasil.
“A transexualidade saiu do CID entre aspas, porque ela foi deslocada da categoria de ‘transtorno mental’ para as chamadas ‘condi��es relacionadas � sa�de sexual’, ent�o � uma despatologiza��o ainda muito fr�gil”, explica o psic�logo Gab Lamounier, que integra a coordena��o da Akasulo, centro de conviv�ncia LGBTQIAPN+ localizado no Barreiro.
Para marcar a luta e a milit�ncia constantes do movimento, celebra-se hoje, 21 de outubro, o Dia Mundial de Luta contra a Despatologiza��o da Transexualidade. A data, que marca o m�s desde 2009, � sempre cercada de desafios e vit�rias a passos lentos no Brasil, pa�s que mais mata travestis e pessoas transg�nero pelo 14º ano seguido, de acordo com a Associa��o Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Participa��o do SUS
A mudan�a oficializada pela Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) implica que pessoas transg�nero podem necessitar de cuidados m�dicos, especialmente durante um processo transexualizador, como o que � realizado pelo Sistema �nico de Sa�de (SUS) – incluindo acolhimento, uso de nome social hormonioterapia e cirurgia de adequa��o do corpo biol�gico � identidade de g�nero e social –, mas n�o mais como pessoas que precisam de tratamento psiqui�trico.
“Ao longo da minha trajet�ria de mais de 40 anos como ativista, muita coisa mudou. A cirurgia de redesigna��o sexual n�o era bem compreendida e passava por todo um processo judicial muito constrangedor que a gera��o atual n�o passou. Antes, voc� estava submetida a uma an�lise do Judici�rio, que tinha voc� como doente, e a cura para essa doen�a era a cirurgia, e muitas pessoas n�o tinham acesso a ela, porque era car�ssima e ainda n�o era incorporada pelo SUS”, relata Walkiria La Roche, diretora estadual de Pol�ticas de Diversidade de Minas Gerais.
De acordo com ela, ju�zes poderiam interferir na decis�o sobre a transexualidade de uma pessoa, desconsiderando a autodeclara��o, e patologizando a condi��o delas.
“Meu ativismo era pela desburocratiza��o da retifica��o do registro, ou seja, mudar a carteira de identidade e a certid�o de nascimento de uma forma menos violenta, porque antes voc� ficava � merc� de outra pessoa para dizer se voc� era homem ou mulher. Ent�o a despatologiza��o veio tardia, mas chegou, gra�as ao nosso ativismo que lutou muito pelo reconhecimento. Ainda assim, h� sempre um cidad�o entendendo que as pessoas transexuais ou travestis podem ser doentes”, complementa Walkiria.
Ainda assim, para ter acesso ao processo transexualizador incorporado pelo SUS atualmente, � preciso atender a uma s�rie de requisitos que limitam as experi�ncias e viv�ncias transexuais.
“A gente gosta de colocar como cr�tica construtiva que � um processo cisexualizador. Defendemos, sim, a normativa. Que bom que ela existe e devemos avan�ar a partir dela, mas a maneira como esse processo est� colocado hoje em dia � patologizante, de uma trajet�ria �nica para uma pessoa trans. Tem um checklist muito r�gido para voc� acessar certos espa�os de cuidado”, diz Lamounier.
Viol�ncias cotidianas
Muitas pessoas transg�nero t�m receio de acessar os servi�os de sa�de por receio de sofrerem com a invalida��o e outros tipos de viol�ncia, como � o caso do arte-educador e estudante de Artes Visuais da UFMG Vit Le�o e de Sol Markes.
Atualmente bem estabelecidos em suas �reas, ambos vieram para a capital mineira em busca de novos horizontes e passaram por um processo de redescobrimento das pr�prias identidades por aqui, logo que entraram na faculdade.
“Foi quando eu consegui ser jovem, pude sair, beber com a tranquilidade de estar com meus amigos, que consegui olhar mais para quem eu era, e eu sou trans. Sou um homem, e foi dif�cil de aceitar com meus 23, 24 anos, porque talvez fosse uma coisa para se viver na adolesc�ncia, mas n�o tive porque minha adolesc�ncia foi roubada”, conta Vit, que por muito tempo precisou cuidar de seus pais e n�o teve tempo e tranquilidade para pensar sobre si mesmo.

“Foi no teatro universit�rio que fui apresentada a uma amiga que j� se entendia enquanto uma pessoa trans, e foi a partir do contato com outra pessoa que entendi que n�o tinha nada de errado comigo e que era poss�vel de se existir da forma como se enxerga”, explica Sol, que tem uma irm� mais velha que tamb�m � mulher trans.
Tamb�m para ambos, a viol�ncia � grande, mas sutil. De acordo com eles, a patologiza��o da transgeneridade se evidencia ainda mais nos servi�os de Sa�de e de Direito.
“Para voc� conseguir qualquer coisa, seja no plano de sa�de ou seja no SUS, voc� � imediatamente patologizado, porque sua condi��o tem um CID. Recentemente, eu mesmo fui fazer uma consulta para poder ser mastectomizado, e para conseguir autoriza��o do meu plano, ser trans � considerado uma doen�a; n�o pode ser s� um desejo de como eu gostaria de me apresentar, com uma fisionomia masculina”, relata Vit.
“Se voc� parar para pensar, a patologiza��o est� muito nesses lugares institucionais: dentro do posto de sa�de ou num cart�rio. No momento de retificar o meu nome, por exemplo, durante todo o processo eu tive que voltar ao cart�rio da minha cidade diversas vezes e as pessoas que estavam l� n�o estavam preparadas para lidar com isso. N�o sei se eu fui a primeira pessoa ali a retificar, porque eles n�o sabiam mesmo. Uma mo�a chegou a me pedir um laudo e usou o termo transexualismo”, detalha Sol.
Patologiza��o
O termo “transexualismo” foi utilizado erroneamente at� 1998, quando foi corrigido para “transexualidade” no CID. O sufixo “ismo” vem do grego e atribui � condi��o um car�ter de patologia; j� o sufixo “dade” se refere a uma caracter�stica. Apenas essa mudan�a – como tamb�m ocorreu com “homossexualismo” e “homossexualidade”, foi um pequeno passo em dire��o � despatologiza��o da transgeneridade.
De acordo com Gab, a patologiza��o da condi��o tamb�m � uma quest�o de colonialidade, j� que a categoriza��o dos espectros da sociedade come�ou juntamente com o nascimento das Ci�ncias. “Isso tudo foi num momento da nossa hist�ria em que a ci�ncia estava colocada num lugar de muita legitimidade e de muita necessidade de catalogar tudo para organizar a vida; organizar o que � o certo; o que � errado; o que � desvio; o que � normal. Ent�o, os m�dicos, a partir desse estudo do que seria o anormal – fora da cisnormatividade – foram colocando nesse lugar de desvio”, explica ele.
Segundo o psic�logo, a patologiza��o da transexualidade � a causa e consequ�ncia de v�rios problemas, j� que ela molda como os profissionais olham e cuidam de pessoas trans.
“A patologiza��o, transformar em patologia, quer dizer transformar uma experi�ncia humana num discurso m�dico para controlar, invalidar, deslegitimar certas experi�ncias. Durante muito tempo na hist�ria, os m�dicos, os psic�logos tentaram dizer o que deveria ser o destino para uma experi�ncia trans, mas a gente n�o quer uma prescri��o sobre as nossas experi�ncias. Isso � de uma viol�ncia gigantesca”, afirma Gab.
“Pessoas trans n�o acessam s� o endocrinologista, s� o psiquiatra, s� o cirurgi�o. Pessoas trans acessam, como qualquer pessoa, outros espa�os de sa�de. Elas tamb�m t�m dor de dente, tamb�m t�m quest�es na pele, no est�mago. Por ainda constar nesses manuais [CID], ainda h� um certo refor�o de que existe alguma incongru�ncia, como se a condi��o trans fosse uma condi��o de incongru�ncia, e como se existisse algo que � congruente”, acrescenta ele.
Contra o sofrimento
A luta coletiva pela despatologiza��o tamb�m envolve as experi�ncias individuais. De pessoas que preferem passar pelo processo transexualizador do SUS �quelas que se identificam com um pronome, mas n�o se importam em aparentar outro, � importante que todos estejam confort�veis com seus pr�prios corpos.
“Eu tenho lutado para que a gente possa acreditar na despatologiza��o; acreditar que uma experi�ncia trans n�o tem que ter a ver necessariamente com sofrimento. A gente n�o pode achar que ser uma pessoa trans tem que dizer que ela tem �dio dela mesma, que ela seja triste com ela mesma, mas sim que ser uma pessoa trans � uma experi�ncia normal”, diz Gab.

Para quem enfrenta a transfobia desde muito nova, os desafios persistem, mas seguem sendo superados. Paloma Nobre, chef de cozinha de 37 anos, conta que come�ou a transi��o aos 14 anos de idade e foi uma das primeiras mulheres trans a retificar os documentos em Belo Horizonte.
“Eu sempre me assumi e sempre me aceitei. Nunca pedi para que a sociedade me aceitasse, at� mesmo para a minha fam�lia, nunca pedi que me aceitassem. S� exigi que me respeitassem, porque a �nica pessoa que tinha que me aceitar era eu mesma. E eu me aceitei desde muito nova”, conta ela.
Paloma, que faz parte do ativismo pelos direitos das pessoas transg�nero, conta que � preciso normalizar, apoiar e acolher essa popula��o.
“A despatologiza��o da transexualidade foi uma conquista muito grande, porque a gente foi taxada de doente durante muitos anos, coisa que nunca fomos e nunca seremos. N�s n�o escolhemos ser assim; n�s nascemos assim e n�o � doen�a, n�o existe cura para tratar os genes. Somos normais como todo mundo”, completa.
Qual a defini��o de transfobia?
A transfobia configura qualquer a��o ou comportamento que se baseia no medo, na intoler�ncia, na rejei��o, no �dio ou na discrimina��o contra pessoas trans por conta de sua identidade de g�nero. Comportamentos transf�bicos s�o aqueles que dizem respeito a quaisquer agress�es f�sicas, verbais ou psicol�gicas manifestadas contra a express�o de g�nero de pessoas trans e travestis.
O que � um ato transf�bico?
Atos transf�bicos podem ser cometidos por qualquer pessoa, mas geralmente partem de pessoas cisg�nero que n�o compreendem ou t�m avers�o � comunidade trans, desencadeando a��es como crimes de �dio.
Diferentemente de crimes comuns ou daqueles considerados passionais, a viol�ncia letal contra pessoas trans podem ter como fator determinante a identidade de g�nero ou a orienta��o sexual da pessoa agredida.
Diferentemente de crimes comuns ou daqueles considerados passionais, a viol�ncia letal contra pessoas trans podem ter como fator determinante a identidade de g�nero ou a orienta��o sexual da pessoa agredida.
A transgeneridade
Para entender melhor as rela��es entre identidade de g�nero, � importante saber a diferen�a entre cisg�nero e transg�nero:
- Cisg�nero � aquela pessoa que se identifica com seu sexo biol�gico, seja masculino ou feminino (exemplo: uma pessoa que nasceu com genit�lia feminina e se identifica com o g�nero feminino � uma mulher cis).
- Transg�nero � aquela pessoa que n�o se identifica com o sexo biol�gico que nasceu (exemplo: uma pessoa que nasceu com genit�lia masculina e se identifica com o g�nero feminino � uma mulher trans).
- Existem, tamb�m, diferen�as entre mulheres transg�nero e travestis que se concentram em suas identidades de g�nero e maneiras de express�-las.
O termo transg�nero pode ser utilizado para se referir �s pessoas que n�o se identificam com o seu sexo biol�gico e que podem buscar tratamentos hormonais ou cir�rgicos para se assemelharem ao g�nero com o qual se identificam.
J� o termo travesti se refere uma identidade brasileira relativa apenas �s pessoas com o sexo biol�gico masculino que se identificam com o g�nero feminino e n�o necessariamente buscam mudar as suas caracter�sticas originais por meio de tratamentos.
J� o termo travesti se refere uma identidade brasileira relativa apenas �s pessoas com o sexo biol�gico masculino que se identificam com o g�nero feminino e n�o necessariamente buscam mudar as suas caracter�sticas originais por meio de tratamentos.
Direitos das pessoas trans no Brasil
A Constitui��o Federal de 1988 n�o faz refer�ncia expl�cita � comunidade LGBTQIAP+, mas muitos dos seus princ�pios fundamentais englobam essa parcela da sociedade. � o caso do princ�pio da dignidade humana; da igualdade entre todos; e do dever de punir qualquer tipo de discrimina��o que atente contra os direitos fundamentais de todos.
Com eles, h� dispositivos legais estaduais e municipais que tratam especificamente sobre a popula��o LGBTQIAP e transfobia. Um exemplo � o Decreto 41.798 do Estado do Rio de Janeiro, de 2009, que criou o Conselho dos Direitos da Popula��o LGBTQIAP , que tem como finalidade e responsabilidade:
- estimular e propor pol�ticas p�blicas de promo��o da igualdade e de inser��o educacional e cultural dessa popula��o;
- adotar medidalegislativas que visam eliminar a discrimina��o por orienta��o sexual e identidade de g�nero;
- receber, examinar e efetuar den�ncias que envolvam atos discriminat�rios contra membros da comunidade LGBTQIAP .
Outros avan�os legislativos envolvem o reconhecimento em 2018, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do direito das pessoas de alterarem seu g�nero e nome civil nos cart�rios – agora, sem a obrigatoriedade de passar por cirurgia de redesigna��o.
H� tamb�m a decis�o do STF de 2019 de enquadrar crimes de LGBTfobia na lei do racismo – com as mesmas penas –, enquanto uma legisla��o espec�fica n�o � elaborada.
H� tamb�m a decis�o do STF de 2019 de enquadrar crimes de LGBTfobia na lei do racismo – com as mesmas penas –, enquanto uma legisla��o espec�fica n�o � elaborada.
Dados sobre a transfobia no Brasil
O Brasil ainda n�o possui dados oficiais sobre LGBTfobia em geral e os dados sobre a transfobia no pa�s s�o divulgados pela Antra (Associa��o Nacional de Travestis e Transexuais) anualmente com base, principalmente, em not�cias publicadas pela m�dia.
Como j� comentado, o Brasil � o pa�s que mais mata pessoas trans no mundo – o que n�o configura apenas assassinatos, mas tamb�m inclui outras causas de morte, como suic�dio e les�es em decorr�ncia de agress�es.
Brasil tem Secretaria LGBTQIA
Atualmente, o Minist�rio dos Direitos Humanos e Cidadania conta com a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA , comandada pela travesti paraense Symmy Larrat.
Junto ao Minist�rio da Justi�a, a Secretaria LGBTQIA articula projetos para prote��o da popula��o trans, inclusive com participa��o da Antra e das deputadas Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), as primeiras parlamentares transg�nero da hist�ria do Congresso Nacional.
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O podcast DiversEM � uma produ��o quinzenal dedicada ao debate plural, aberto, com diferentes vozes e que convida o ouvinte para pensar al�m do convencional. Cada epis�dio � uma oportunidade para conhecer novos temas ou se aprofundar em assuntos relevantes, sempre com o olhar �nico e apurado de nossos convidados.
