
A microbiologista virou uma especialista em "integridade cient�fica": na pr�tica, isso consiste na an�lise (n�o remunerada) de milhares de estudos biom�dicos, em busca de erros que possam comprometer seus resultados. Bik tamb�m tem um trabalho pago, de consultoria e palestras para universidades e centros de pesquisa, sobre como melhorar seus processos.
Faz pouco mais de um ano que Bik foi uma das cientistas a levantar preocupa��es sobre um estudo que ganharia propor��es n�o previstas na �poca: trata-se da pesquisa do instituto m�dico franc�s IHU-M�diterran�e Infection, em Marselha, publicada inicialmente em mar�o de 2020 com a afirma��o de que "a cloroquina e a hidroxicloroquina eram eficientes contra o SARS-CoV-2", o v�rus da covid-19.
Foi a partir desse estudo que esses rem�dios passaram a ser exaltados pelo ent�o presidente americano Donald Trump, publicamente promovidos pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro, incorporados no criticado "tratamento precoce" contra a doen�a no Brasil, receitados preventivamente por alguns m�dicos daqui e at� usados, em alguns casos, em nebulizadores - apesar de advert�ncias de que ainda n�o foram encontrados benef�cios concretos da cloroquina e, ao contr�rio, terem sido identificados significativos riscos colaterais dessa medica��o. Hoje, o uso amplo do medicamento � um dos alvos da investiga��o da CPI da Covid, em curso no Senado.
Para Bik, foi a a politiza��o do estudo inicial que fez com que ele ganhasse tanto alcance, apesar de seus resultados cl�nicos serem considerados insuficientes pela comunidade cient�fica.
"Eu n�o estava contra o uso da hidroxicloroquina, apenas achei que o estudo do laborat�rio de Didier Raoult (um renomado epidemiologista franc�s e um dos principais autores da pesquisa) n�o havia sido bem executado, e era muito cedo para basear uma grande decis�o apenas naquela pesquisa - era necess�rio haver mais evid�ncias, e essas evid�ncias nunca vieram", diz Bik � BBC News Brasil.
"Mas rapidamente isso foi politizado, porque Trump endossou o estudo ao tuitar a respeito. Da� aconteceu que se voc� fosse republicano, basicamente tinha de ser a favor do estudo e se fosse democrata tinha de ser contra. O que � muito estranho - discuss�es sobre ci�ncia n�o costumam pular para a pol�tica, mas nesse caso aconteceu. Virou algo grande: muitas pessoas passaram a defender o estudo. Mas os cientistas estavam em sua maioria vendo que o medicamento n�o era �til."
Em setembro, Didier Raoult foi denunciado pela Sociedade de Patologia Infecciosa de L�ngua Francesa (SPILF) por "promo��o indevida de medicamento". Em janeiro deste ano, o m�dico admitiu numa carta ter exclu�do alguns volunt�rios do resultado da pesquisa (veja mais detalhes abaixo). Mas ele mant�m a defesa de seu estudo original e da efic�cia da hidroxicloroquina em parcela dos casos de COVID-19.
Quanto a Elisabeth Bik, no dia em que conversou com a BBC News Brasil, a pesquisadora havia acabado de receber a notifica��o de que est� sendo processada por difama��o por Raoult, que em declara��es p�blicas pr�vias a chamou de "maluca" e "ca�adora de bruxas" por suas cr�ticas.

Na conversa com a reportagem, Bik (que fez seu PhD na Holanda e foi pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, nos EUA e tamb�m de empresas privadas) detalha as cr�ticas feitas ao estudo franc�s e tamb�m explica o trabalho de desmascarar problemas em pesquisas cient�ficas - os quais, segundo ela, prejudicam toda a comunidade de pesquisas global e ajudam a erodir a confian�a do p�blico na ci�ncia.
A hidroxicloroquina, um ano depois
Em 24 de mar�o do ano passado, Bik fez uma longa resenha em seu blog (em ingl�s) sobre o estudo de Didier Raoult e colegas, os quais apresentavam resultados da hidroxicloroquina em 26 pacientes de COVID-19, em compara��o com um grupo de controle de 16 pacientes.
Ap�s serem tratados com a droga (e tamb�m com o antibi�tico azitromicina, no caso de seis dos 26 pacientes), todos eles tiveram testes RT-PCR negativos para o novo coronav�rus, o que levou-os a concluir que a droga contra a mal�ria funcionaria contra a COVID-19.
Mas Bik levantou questionamentos sobre a metodologia usada pelo estudo, que segundo ela prejudicam as conclus�es, como:
- Lapsos no cronograma: os dados apresentados no estudo n�o deixam claro qual foi o resultado do teste PCR dos pacientes na metade do estudo, como havia sido originalmente planejado. Isso despertou preocupa��es quanto a se dados potencialmente negativos poderiam ter sido omitidos.
- Havia muitas diferen�as entre os grupos de controle (ou seja, pessoas que n�o foram tratadas com hidroxicloroquina) e o grupo de pacientes do estudo, o que dificulta a compara��o entre ambos e, portanto, os resultados da pesquisa.
- Embora o estudo tenha come�ado com 26 pacientes, termina apresentando dados de apenas 20 deles. Dos seis faltantes, tr�s haviam sido transferidos para a UTI, um morreu e dois abandonaram a medica��o. "� como dizer 'meus resultados s�o incr�veis se eu tiro as pessoas em que eles se sa�ram muito mal'.
� claro que (o estudo) parece �timo (se voc� tira os pacientes que morreram), mas n�o � honesto fazer isso", diz Bik � BBC News Brasil.
- Um dos autores � tamb�m editor-chefe do peri�dico onde o estudo foi publicado, o International Journal of Antimicrobial Agents. "Isso pode ser percebido como um enorme conflito de interesses, em particular ao lado de um processo de revis�o de pares (quando cientistas revisam o estudo de seus colegas) que durou menos de 24 horas", escreveu Bik na �poca. "� o equivalente a permitir que um estudante d� a nota de seu pr�prio trabalho escolar."

'Era necess�rio pesquisar mais'
A pesquisadora concorda que, em meio a uma pandemia, processos cient�ficos tradicionalmente lentos precisam mesmo ser apressados.
"Isso (os questionamentos) n�o necessariamente indica que a hidroxicloroquina n�o funciona, mas sim que o estudo n�o era bem feito. O que � compreens�vel: em mar�o do ano passado, tudo era t�o incerto e todos buscavam uma droga maravilhosa que pudesse ajudar", prossegue a pesquisadora.
"Mas n�o acho que com base nesse estudo em particular era poss�vel tomar grandes decis�es sobre como tratar milh�es de pessoas. Era necess�rio pesquisar muito mais."
A BBC News Brasil consultou Didier Raoult por e-mail a respeito das cr�ticas a suas pesquisas e sobre o processo legal contra Bik, mas n�o recebeu resposta at� a publica��o desta reportagem.
Em entrevista recente ao jornal franc�s Le Figaro, Raoult diz que n�o tem arrependimentos. "Nunca disse que (a droga) curaria 100% dos pacientes. Mas sustento que essa mol�cula melhora as condi��es de pacientes precoces ou avan�ados, mas n�o na fase final (da doen�a)", declarou.
Desde esse estudo inicial, diz Bik � BBC News Brasil, "eu esperava que haveria outro estudo para sustentar (as conclus�es), mas ainda n�o vi nenhum outro estudo mostrando que esse primeiro estava correto. Houve estudos mostrando que estava errado e houve muitos estudos em uma zona cinza, (dizendo que) em algumas situa��es (a cloroquina) pode ter ajudado um pouquinho, mas na maioria dos casos n�o parece ter ajudado e, na verdade, parece ter deixado os pacientes em pior estado, principalmente se eles j� estivessem muito doentes. O que, por sinal, era o que o estudo inicial alegava - n�o dizia que (a hidroxicloroquina) era para ser profil�tico ou preventivo, e sim que era para melhorar pessoas muito doentes. � o que o estudo tentou provar inicialmente, mas n�o provou, n�o apresentou dados."
� bom destacar que foram encontrados erros tamb�m na outra ponta do espectro: em junho de 2020, o prestigioso peri�dico The Lancet anunciou a retrata��o de um artigo cient�fico publicado no m�s anterior que refutava os benef�cios da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19. Retrata��es ocorrem quando quando algum tipo de m�-conduta, como fraude ou erro, � detectada no estudo.
Nesse caso, o problema parece estar no banco de dados da empresa Surgisphere, usado para embasar as pesquisas.
O saldo desse debate neste momento � de que a cloroquina, junto ao conjunto de rem�dios do chamado "kit COVID-19", n�o s�o reconhecidos - ou s�o ativamente contraindicados - pela Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), os Centros de Controle e Preven��o de Doen�as dos Estados Unidos e da Europa, a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) no tratamento do coronav�rus.

"Quando esse estudo na The Lancet foi retratado, fez com que muita gente dissesse: 'nenhuma pesquisa � confi�vel'. O que, na minha opini�o, n�o est� correto", afirma Elisabeth Bik.
"Houve tanta informa��o em 2020, e acho que algumas pessoas est�o prontas para acreditar no que quer que escutem (...), mais do que nos cientistas. O que � uma pena, porque a ci�ncia � a resposta para resolver problemas. Mas as pessoas n�o conseguem mais distinguir a verdade da mentira", lamenta.
Trabalho de 'detetive cient�fico' encontrou 'usinas de estudos' fraudados
O trabalho de Bik em integridade cient�fica �s vezes � comparado com o de um detetive: "recebo muitas dicas, gente pedindo: 'voc� pode olhar estas imagens, ver estes estudos?'", conta.
"Tamb�m tenho uma grande planilha de estudos em que j� identifiquei (incongru�ncias) no passado e dos quais ainda n�o tive tempo de investigar os estudos dos mesmos autores. �s vezes 'photoshopam' (ou seja, copiam imagens de outros estudos) e voc� pensa: se fizeram uma vez, podem ter feito outras. Mas nunca sobra tempo para checar todos os pedidos, recebo muito mais dicas do que consigo investigar."
O foco principal de Bik � na duplica��o de imagens, ou seja, no uso irregular de imagens antigas para ilustrar estudos novos, como se elas apresentassem uma nova descoberta. A cientista tamb�m esmi��a eventuais conflitos de interesse nas pesquisas.
"Por exemplo, casos em que o autor � fundador de uma startup e promove determinada descoberta, da qual ele tamb�m tem a patente, mas sem revelar isso. � preciso explicitar essa informa��o. Voc� pode publicar, claro, mas precisa explicitar que 'sou fundador dessa startup e posso enriquecer com o que � promovido por esta pesquisa'."
Al�m das cr�ticas ao estudo franc�s da cloroquina, o trabalho de Bik tamb�m teve repercuss�o no ano passado ao ajudar a desmascarar o que ela chama de "usinas de estudos" fraudulentos: junto com outros pesquisadores, ela identificou, particularmente na China, mais de 500 estudos que parecem ter sido copiados entre si, e depois vendidos a "clientes" - m�dicos de hospitais chineses que dependem de ter estudos publicados em seu nome para avan�ar na carreira, diz ela.
"�s vezes as pessoas s�o for�adas a escrever estudos sob condi��es irreais.
Temos esse exemplo da China: se voc� � um m�dico que concluiu a universidade, precisa publicar um estudo mesmo que n�o queira ser pesquisador, queira apenas trabalhar em um hospital. Mas voc� sequer tem tempo sobrando para fazer pesquisa, ou seu hospital sequer tem infraestrutura de espa�o ou equipamentos para pesquisa. Essas pessoas se veem sem sa�da, ent�o acabam comprando um estudo. E h� empresas dedicadas a fazer estudos falsos. S�o 'usinas de estudos' (paper mills, em ingl�s). Acreditamos que sejam grupos de crime organizado, dedicados a vender e publicar estudos falsos."
Em agosto do ano passado, autoridades chinesas iniciaram uma investiga��o sobre o caso.

Press�o para publicar
Para Bik, para al�m dessas usinas, erros e problemas em pesquisas podem ser acidentais ou de boa-f�, relacionados � press�o enorme sobre pesquisadores para que tenham trabalhos publicados com rapidez - particularmente em momentos de crise, como a pandemia atual. Idas e vindas s�o tamb�m parte normal do trabalho cient�fico, que muitas vezes exige anos at� que se tenha clareza sobre o impacto de um determinado tratamento ou medicamento, por exemplo.
Em outros casos, por�m, erros parecem ser fruto de problemas mais graves.
"H� cientistas trabalhando em universidades que t�m grandes expectativas. Podem ter publicado estudos bem-sucedidos, mas pode ser que as pesquisas (atuais) n�o estejam indo muito bem, ent�o podem cometer fraude para continuar a ter bons resultados. H� tamb�m pesquisadores que trabalham em laborat�rios sob o comando de professores assediadores: 'se voc� n�o me trouxer esses resultados, ser� demitido e contratarei algu�m que os consiga'.
Alguns s�o amea�ados verbalmente ou, por exemplo, amea�ados de perder seu visto e ter de voltar para seu pa�s de origem", explica.
Essa ci�ncia malfeita, opina Bik, tem consequ�ncias de longo prazo: torna mais dif�cil que cientistas consigam reproduzir os experimentos ou tirar conclus�es a partir deles. E assim uma grande cadeia de pesquisas cient�ficas pode ser prejudicada.
A principal li��o tirada por Bik de 2020, ano em que tanta pesquisa foi feita, � de que "normalmente, estudos m�dicos levam muito tempo. Um bom projeto costuma levar ao menos um ano ou v�rios anos para ser conclu�do, ent�o qualquer coisa pesquisada em poucas semanas em uma pandemia n�o vai ter a melhor qualidade, embora seja necess�ria - em uma emerg�ncia, voc� quebra as regras, porque todos est�o esperando por respostas. Mas aprendemos que a ci�ncia r�pida n�o � necessariamente a melhor ci�ncia".
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Confira respostas a 15 d�vidas mais comuns
Quais os sintomas do coronav�rus?
O que � a COVID-19?
A COVID-19 � uma doen�a provocada pelo v�rus Sars-CoV2, com os primeiros casos registrados na China no fim de 2019, mas identificada como um novo tipo de coronav�rus pela Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) em janeiro de 2020. Em 11 de mar�o de 2020, a OMS declarou a COVID-19 como pandemia.