
Esses s�o os primeiros vers�culos do Salmo 24, ora��o b�blica presente na liturgia cat�lica para o Dia de Finados (2 de novembro), quando se celebram os mortos.
"Na Igreja Cat�lica, a liturgia de Finados foi iniciada por Santo Odon de Cluny e oficializada no ano de 998", conta o te�logo e fil�sofo Fernando Altemeyer J�nior, professor de Ci�ncias da Religi�o da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP).Odon de Cluny (878-942) foi um abade franc�s, respons�vel por diversas reformas no sistema religioso da �poca.
Na data, � comum que o papa fa�a uma cerim�nia dedicada aos mortos na cripta do Vaticano. "� um dia de celebrar as vidas de todos os fi�is falecidos. No Brasil e em Portugal, o dia � reservado para visitar os t�mulos", comenta Altemeyer. "Para os cat�licos, � dia de penit�ncia e recolhimento. Na casa de minha av� e de minha m�e, n�o se podia ligar r�dio nem televis�o. Era tempo de sil�ncio interior e exterior, dia de recitar o Salmo 24."
Origem
Conforme contextualiza o te�logo, apesar da formaliza��o e da oficializa��o ter ocorrido apenas no s�culo 10, j� havia uma data em mem�ria aos mortos desde os tempos pr�-crist�os, inclusive em culturas do chamado paganismo antigo.
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"A Igreja toma a data e 'batiza' com significado pr�prio", diz Altemeyer. "Mas celebrar os mortos � algo antropol�gico. Desde o Cro-Magnon (ou seja, das primeiras popula��es de Homo sapiens) temos ritos funer�rios e de expectativa do al�m t�mulo."
E n�o � � toa que, na liturgia cat�lica, o Dia de Finados sucede o Dia de Todos os Santos, celebrado em 1º de novembro. O "Martirol�gio Romano", o calend�rio oficial da Igreja, explica ambas as datas.

Sobre o Dia de Todos os Santos, ele diz: "Solenidade de todos os Santos que est�o com Cristo na Gl�ria. Na mesma celebra��o festiva, a santa Igreja ainda peregrina sobre a terra venera a mem�ria daqueles cuja companhia alegra os C�us, para que se estimule com o seu exemplo, se conforte com a sua prote��o e com eles receba a coroa do triunfo na vis�o eterna da divina majestade".
E sobre o Dia de Fiados: "A Igreja, m�e piedosa, quer interceder diante de Deus pelas almas de todos os que nos precederam marcados com o sinal da f� e agora dormem na esperan�a da ressurrei��o, bem como por todos os defuntos desde o principio do mundo cuja f� s� Deus conhece".
Santo Agostinho
Muito antes de a Igreja Cat�lica institucionalizar o Dia de Finados, um livro lan�ou as bases para como os crist�os acabam tratando os mortos.
Trata-se de De Cura pro Mortuis Gerenda, texto do ano 421, atribu�do ao te�logo Agostinho de Hipona (354-430), o Santo Agostinho.
"A obra trata do culto devido aos mortos. � uma preciosidade, com verdadeiras p�rolas do maior te�logo da Igreja", comenta Altemeyer.
Conforme escreveu o estudioso da f� cat�lica Carlos Martins Nabeto, especialista em Direito Can�nico, na obra "Santo Agostinho aborda uma s�rie de fatos importantes e interessantes a respeito dos mortos, que at� hoje s�o conservados e respeitados pela Igreja".
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"Entre outras coisas, fala da utilidade da ora��o pelos mortos (antiqu�ssimo testemunho do Purgat�rio, ainda que tal palavra n�o apare�a), a possibilidade da apari��o dos mortos aos vivos (por meio do minist�rio dos anjos ou por permiss�o direta de Deus), a ora��o dos santos falecidos a nosso favor, o dia que a Igreja dedica a todos os falecidos (Dia de Finados)", exemplifica o estudioso.
Uma celebra��o de Finados, de certa forma, est� impl�cita no seguinte trecho do livro - o que sugere que, mesmo longe de ter sido formalizada e oficializada pelo rito cat�lico, j� se faziam as ora��es aos mortos em geral, em data espec�fica.
"A Igreja tomou para si o encargo de orar por todos aqueles que morreram dentro da comunh�o crist� e cat�lica. Ainda que n�o conhe�a todos os nomes, ela os inclui numa comemora��o geral", diz a obra.

Santo Agostinho tamb�m aborda quest�es referentes aos ritos f�nebres, ressaltando que "n�o deixa de ser marca dos bons sentimentos do cora��o humano escolher para seus entes queridos que ser�o sepultados um lugar pr�ximo aos t�mulos dos santos".
"J� que o sepultamento �, por si s�, uma obra religiosa, a escolha do local n�o poderia ser estranha ao ato religioso. � consolo para os vivos, uma forma de testemunhar sua ternura para com os familiares desaparecidos. N�o enxergo, por�m, como os mortos podem encontrar a� alguma ajuda, a n�o ser quando o lugar onde descansam � visitado e s�o encomendados, pela ora��o [dos visitantes], � prote��o dos santos junto ao Senhor. Contudo, isso pode ser feito ainda quando n�o � poss�vel sepult�-los em tais lugares santos", afirma.
Sobre t�mulos constru�dos como verdadeiros monumentos, o te�logo tamb�m faz considera��es. "Isso � feito para que as pessoas continuem a se lembrar deles, para que n�o aconte�a de, tendo sido retirados da presen�a dos vivos, tamb�m sejam retirados do cora��o pelo esquecimento", escreve.
"Ali�s, o termo 'memorial' indica claramente esse sentido de recorda��o, da mesma forma como 'monumento' significa 'o que traz � mente', ou seja, o que a faz recordar. Eis o motivo pelo qual os gregos chamam de mnemeion ao que chamamos de 'mem�ria' ou 'monumento'. Na l�ngua deles, 'mn�me' significa 'mem�ria', a faculdade com a qual recordamos."
Agostinho trata da import�ncia das ora��es aos mortos. "Assim, quando o pensamento de algu�m se concentra sobre o lugar onde o corpo de um ente querido jaz e esse local esteja consagrado pelo nome de um m�rtir vener�vel, ent�o a afei��o amorosa recorda-se e reza, recomendando o falecido querido a esse m�rtir", pontua.
Luto
"A morte � natural, � universal, e n�o pode ser tratada como um tabu", diz a psic�loga Maria Helena Pereira Franco, estudiosa do luto e professora da PUC-SP. "As culturas e as sociedades vivem o luto de acordo com uma heran�a que vem h� s�culos e vai dando sentido a uma experi�ncia importante como a morte, carregada de significados pr�prios que passam pela espiritualidade e pela religi�o."

De acordo com a pesquisadora, para compreender essa quest�o cultural � preciso ter em mente que o homem n�o t�m conhecimento definitivo do que acontece depois da morte.
E, mesmo do ponto de vista biol�gico, entender a morte do corpo � uma consci�ncia relativamente recente. "Na falta de explica��es, o homem foi construindo significados. E esses significados, ao longo da hist�ria, foram pautando comportamentos", explica ela.
Seja na maneira de realizar os procedimentos referentes ao vel�rio, seja no Dia de Finados, varia��es desse comportamento s�o notados em diversas culturas.
Sobretudo em cidades menores, no Brasil ainda � costume que um carro com alto-falantes percorra as ruas da cidade divulgando a "nota de falecimento" e convidando a todos para participarem do vel�rio e do enterro.
Ao redor do mundo
No interior da It�lia, por exemplo, � comum que, quando um parente morre, familiares afixem no port�o da casa um aviso f�nebre, muitas vezes decorado com fitas e ilustrado com uma fotografia do falecido, al�m de um texto semelhante aos an�ncios de obitu�rio de jornal.
J� a celebra��o de Finados mais famosa, sem d�vida, � a que ocorre no M�xico.
"� uma cerim�nia bastante conhecida. Eles promovem um momento de encontro entre os vivos, que v�o celebrar, visitar e honrar seus mortos nos cemit�rios", explica Franco. "H� varias comidas que s�o pr�prias dessa �poca, comportamentos que s�o esperados... � muito bonita como cerim�nia."
Alegria tamb�m est� presente no rito f�nebre de Bali. L�, o mais comum � que os mortos sejam cremados. E a cerim�nia � acompanhada por uma grande festa em honra ao falecido.
Conhecida por ser a capital do jazz, Nova Orleans, nos Estados Unidos, tem tamb�m um ritual f�nebre embalada pelo g�nero musical.
Trata-se de uma prociss�o f�nebre que mescla tradi��es africanas, francesas e afro-americanas. Conduzidos por uma banda, os enlutados alternam entre alegria e tristeza.
� uma celebra��o cat�rtica, que procura evocar bons momentos vividos pelo morto.
Comunidades budistas da Mong�lia e do Tibete acreditam ser necess�rio devolver o corpo � natureza, para que a alma siga em frente.
Assim, t�m o costume de cortar o defunto em peda�os e, ent�o, deposit�-lo no alto de uma montanha, para que abutres fa�am o trabalho.
Nas Filipinas, diferentes grupos �tnicos lidam de forma diferente com a morte e com as pr�ticas funer�rias. Os integrantes da cultura Itneg t�m o h�bito de vestir os defuntos com as melhores roupas, sentarem-no em uma cadeira e colocar um cigarro aceso em sua boca. Benguet, por sua vez, vendam os mortos e os velam ao lado da entrada principal da casa.
J� os Cavite�o sepultam os mortos fazendo de um tronco oco de �rvore o caix�o. Os Apayo enterram os mortos sob o ch�o da cozinha.
Em Madagascar, por sua vez, persiste o costume de um ritual chamado farmadihana.
Trata-se de uma celebra��o, que ocorre geralmente a cada sete anos, em que familiares exumam os restos mortais de seus entes queridos, pulverizando os ossos com vinho ou perfume. Uma banda acompanha a cerim�nia, que ocorre de forma feliz.
Em Gana, � costume que o morto seja enterrado em caix�es que representem o que ele fazia em vida, do trabalho aos hobbies.
Executivos, por exemplo, podem ser sepultados em sarc�fagos em forma de carros de luxo; um fot�grafo pode ser enterrado em uma c�mera fotogr�fica gigante; um pecuarista, em um caix�o que represente uma vaca.
- Texto publicado originalmente em 31 de outubro de 2018 em https://www.bbc.com/portuguese/geral-46026338
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