As frutas do presente s�o bem diferentes das vers�es 'originais' de milhares de anos atr�s
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O objetivo desse verdadeiro experimento da vida real sempre foi a cria��o de alimentos mais gostosos, bonitos ou com capacidade de resistir �s pragas e �s adversidades do clima de cada local. E, a partir disso, garantir o aporte de carboidratos, prote�nas, vitaminas e outras subst�ncias essenciais � nossa sobreviv�ncia.
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Mas como essa verdadeira engenharia era (e �) feita na pr�tica? E como isso modificou a composi��o de nutrientes de tantas comidas? Entenda a seguir como as t�cnicas agron�micas evolu�ram — e quais s�o os desafios na produ��o de alimentos nos dias de hoje e no futuro.
Nos prim�rdios, a observa��o dos animais
H� milhares de anos, nossos antepassados eram n�mades e dependiam da ca�a e da coleta para sobreviver. Isso significa que eles n�o ficavam num �nico lugar e se moviam para uma outra regi�o quando os recursos se tornavam escassos.
Mas como eles sabiam quais plantas poderiam ser consumidas — e quais eram venenosas ou faziam mal? "Eles se baseavam na observa��o dos animais. Se os seres humanos vissem que determinada esp�cie comia uma fruta, uma raiz ou uma folha e n�o morria, isso era um indicativo de consumo seguro", responde a engenheira agr�noma Rumy Goto, professora aposentada da Faculdade de Ci�ncias Agron�micas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Botucatu.

Ao conferir quais plantas os animais de determinada regi�o comiam, nossos antepassados tinham mais seguran�a para consumi-los
Getty ImagesE esse conhecimento pr�vio foi extremamente valioso para o desenvolvimento da agricultura. V�rios grupos foram aprendendo aos poucos, ao longo de milhares de anos, os ciclos de determinada esp�cie vegetal na natureza, e como seria poss�vel cultiv�-la numa escala maior para a gera��o de alimentos a toda uma comunidade.
N�o � toa, o advento da agricultura h� cerca de 10 mil anos � considerado uma revolu��o: a cria��o das t�cnicas de plantio, cultivo e colheita de gr�os, frutos e hortali�as representou um controle maior sobre os recursos e os nutrientes necess�rios para a sobreviv�ncia. Da�, com mais certeza de que teriam alimentos suficientes, nossos antepassados n�o precisaram mais se deslocar e puderam fixar resid�ncia num local estrat�gico (com acesso � �gua e terras f�rteis, por exemplo).
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"Os seres humanos foram aprendendo a diferen�a entre os vegetais e as formas de cultiv�-los. Algumas plantas dependiam de sementes para nascer, outras podiam ser multiplicadas por meio de brotos e estacas. Assim, surgiram as primeiras comunidades e as hortas ao redor delas", resume Goto.
E, j� na origem desses povoados primitivos, � poss�vel detectar as primeiras modifica��es nos alimentos. Afinal, as pessoas j� foram naturalmente selecionando aquelas variedades que traziam algum tipo de vantagem — seja na hora de cultivar e colher, ou no momento de preparar e consumir.
Vamos a um exemplo: o milho � origin�rio do M�xico Central. H� cerca de 7 mil anos, ele era apenas uma gram�nea selvagem, chamada teosinto.
Na natureza, o teosinto chega no m�ximo a 2 cent�metros. J� o milho que temos hoje tem cerca de 20 cent�metros, um tamanho dez vezes maior — e isso sem falar na facilidade de cozimento e no sabor.
Nessa transi��o, ele tamb�m se tornou uma grande fonte de carboidratos, que s�o essenciais para dar energia para o corpo funcionar bem.
E isso tudo s� foi poss�vel gra�as ao trabalho de cultivo, cruzamento e sele��o de esp�cies com caracter�sticas desej�veis ao longo de gera��es.
Ou seja, aos poucos, os agricultores do passado deram prefer�ncia �s plantas de milho que nasciam com algum atributo interessante — como espigas maiores, mais saborosas ou que cresciam com rapidez. Essas variedades eram cruzadas com as outras, ou plantadas na safra da pr�xima temporada.
O milho, portanto, evoluiu ao longo de milhares de anos e chegou nas formas e nas variedades que conhecemos hoje. O mesmo aconteceu com diversos outros ingredientes do mundo vegetal, como voc� ver� a seguir.
Choque de mundos
Um outro cap�tulo muito importante dessa hist�ria aconteceu na virada do s�culo 15 para o 16, com as grandes navega��es e a chegada dos europeus ao continente americano.
Come�ava ali uma troca de saberes e sabores nunca antes vista — apesar do interc�mbio alimentar que j� existia entre Europa, �frica e �sia h� muito tempo.
Alimentos t�picos das Am�ricas, como a batata, o tomate, o feij�o, o abacate, o cacau e pimentas, cruzaram o Atl�ntico. Alguns deles se tornaram s�mbolos da culin�ria de pa�ses muito distantes. A batata, original de Peru e Bol�via, virou a base da dieta no Reino Unido — e uma das variedades mais consumidas no mundo todo � ironicamente chamada de "batata inglesa".
O tomate, t�pico do norte do Chile e do Equador, virou ingrediente b�sico do molho que acompanha muitas das macarronadas italianas.
"A hist�ria do tomate � curiosa, pois no passado os europeus acreditavam que era venenoso e evitavam o consumo. Ele era apenas usado como planta ornamental em jardins", lembra o engenheiro agr�nomo Derly Jos� Henriques da Silva, professor da Universidade Federal de Vi�osa, em Minas Gerais.
"Inclusive, durante o s�culo 17, na regi�o da Sic�lia [atual It�lia], os homens que queriam pedir a m�o de uma mo�a em casamento precisavam passar por um teste de virilidade, que consistia em morder um tomate em pra�a p�blica, diante do pai da noiva. Isso era uma forma de mostrar coragem e provar que se estava disposto a arriscar a pr�pria vida por aquele casamento", conta.

Origin�rios de Chile e Equador, os tomates viraram s�mbolo da culin�ria italiana
Getty ImagesIndependentemente dos costumes de cada local, o fato � que muitas dessas plantas se adaptaram bem �s condi��es clim�ticas variadas — a batata, por exemplo, pode ser produzida rapidamente durante o curto ver�o europeu, em apenas tr�s meses, e n�o estraga facilmente mesmo depois de colhida.
Na contram�o, muitos produtos cultivados em hortas europeias e mediterr�neas tamb�m foram parar nas Am�ricas. Entre os exemplos de plantas que se deram bem do outro lado do mundo, est�o a couve-flor, o repolho, o alho, a cebola, o br�colis, a berinjela, a cenoura e a alface.
Todas elas foram trazidas aos poucos e, gra�as ao trabalho de melhoramento e adapta��o dos agr�nomos e agricultores, tamb�m proliferaram e se tornaram ingredientes da dieta daqui.
A arte imita a vida
Mas ser� que os frutos e as hortali�as permaneceram iguais ao longo desses �ltimos s�culos? Uma pista de como eram os vegetais do passado pode ser observada nas obras de arte. Esse � o trabalho de uma �rea do conhecimento chamada etnobot�nica iconogr�fica pict�rica.
Em resumo, os especialistas tentam ver como os grandes pintores do passado representavam plantas e ingredientes em naturezas mortas e representa��es de cenas cotidianas de mercados p�blicos e cozinhas. A partir dessas informa��es, � poss�vel comparar e encontrar pistas sobre o passado e o presente desses cultivares.
O engenheiro agr�nomo Paulo Cesar Tavares de Melo, professor aposentado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de S�o Paulo (Esalq-USP), tem se debru�ado sobre este tema nos �ltimos anos.
Em entrevista � BBC News Brasil, ele explicou que � poss�vel encontrar representa��es de frutos e hortali�as desde a �poca dos eg�pcios e, posteriormente, entre gregos e romanos.
Mas foi a partir do fim da Idade M�dia e do in�cio do Renascimento, na transi��o entre os s�culos 14 e 15, que as t�cnicas de pintura evolu�ram e permitiram retratar com mais fidelidade os formatos e as caracter�sticas dos vegetais.
"J� � poss�vel ver em algumas obras de Rafael Sanzio, um dos grandes mestres italianos, representa��es do mel�o, desse mesmo tipo amarelo que consumimos at� hoje", cita. Os mel�es tamb�m s�o presen�a constante em outras obras, como aquelas pintadas pelo espanhol Diego Vel�zquez.
J� nos pain�is Os Quatro Elementos, feitos pelo flamengo Joachim Beuckelaer em 1569, h� uma cena de duas mulheres cercadas por vegetais. "Nela, � poss�vel observar alfaces, frutas vermelhas, repolho roxo, couve flor, alcachofra, uvas…", destaca Melo.
Na imagem, n�o h� br�colis ou couve de bruxelas, variedades que pertencem � mesma fam�lia da couve-flor e do repolho. Isso porque elas s� foram desenvolvidas por especialistas alguns anos depois.
Na parte inferior, o pintor tamb�m retratou cenouras brancas, roxas e amarelas que, com o passar dos anos, praticamente sumiram e foram substitu�das pelas vers�es laranjas que encontramos hoje em feiras e mercados.

A obra 'Os Quatro Elementos - Terra', de Joachim Beuckelaer, mostra uma cena de duas mulheres cercadas por vegetais
Dom�nio P�blicoNessa primeira fase das representa��es de frutas e hortali�as mais realistas, tamb�m � muito raro encontrar os ingredientes que vieram das Am�ricas — os primeiros tomates s� aparecem nos quadros das d�cadas posteriores, aponta o professor.
As demandas (e desafios) da atualidade
Durante o s�culo 20, o avan�o da ci�ncia permitiu entender mais a fundo aquilo que era feito de modo emp�rico, ao longo de milhares de anos.
Foi nessa �poca que os pesquisadores descobriram, por exemplo, que o licopeno � o respons�vel pela cor vermelha do tomate, enquanto o betacaroteno confere o laranja das cenouras. Al�m de influenciar nos aspectos visuais, essas subst�ncias s�o potentes antioxidantes, que combatem o envelhecimento das c�lulas e previnem doen�as.
As t�cnicas tamb�m ajudaram a identificar algumas esp�cies vegetais com atributos muito importantes, como resist�ncia a pragas. Assim, elas podem ser cruzadas com outras mais vulner�veis, de modo a afastar fungos, v�rus e outros pat�genos.
"As planta��es de banana do mundo todo est�o sob risco por causa de um fungo chamado fusarium. Ele est� dizimando os bananais da �sia e j� chegou na Am�rica do Sul", informa o agr�nomo Raul Rosa, pesquisador de fruticultura org�nica da Embrapa Agrobiologia.
"N�s temos trabalhos de cruzamento da banana ma�� com uma variedade africana, que � resistente a esse fungo. A ideia � ir melhorando e modificando, at� que tenhamos uma nova vers�o ideal para o cultivo e o consumo", complementa.

Bananeiras do futuro podem ser resistentes a um fungo devastador que se espalha hoje
Getty ImagesGoto d� outro exemplo bem-sucedido de adapta��o: a alface. "Antes, ela era cultivada apenas em temperaturas amenas. T�-la � disposi��o no ver�o brasileiro era algo praticamente imposs�vel no passado", conta.
Isso mudou a partir dos anos 1950 e 1960, quando pesquisadores cruzaram esp�cies mais resistentes, capazes de aguentar o clima tropical.
Embora parte desse melhoramento ainda seja feito de forma cl�ssica, misturando p�lens e outros materiais de esp�cies vegetais para a cria��o de h�bridos, o s�culo 20 tamb�m testemunhou a chegada da engenharia gen�tica e da transgenia.
Essas t�cnicas permitiram inserir genes espec�ficos em variedades de soja, milho, feij�o e outros produtos, de modo que elas se tornassem mais resistentes a pragas ou ganhassem novos atributos nutricionais, como � o caso da mandioca biofortificada, que traz um teor mais alto de ferro e zinco.
Na vis�o de Rosa, a agricultura do futuro depender� de uma alian�a de v�rias t�cnicas — das mais tradicionais �s modernas. "Existem ferramentas de biologia molecular e biotecnologia, mas o que ainda hoje prevalece � o uso da biodiversidade", destaca.
Silva fornece outro exemplo de como estudar os atributos de plantas espec�ficas pode representar um ganho nutricional. "N�s encontramos algumas pimentas que n�o s�o ardidas e trazem 2 mil ppm [partes por milh�o] de vitamina C, enquanto uma laranja tem em torno de 50 ppm", destaca.
"Ou seja: estamos falando de uma hortali�a que tem aproximadamente 40 vezes mais vitamina C. Com o uso das t�cnicas dispon�veis hoje, seria poss�vel transformar esse produto num lanche barato e de excelente qualidade", pontua.
O professor da Universidade Federal de Vi�osa tamb�m destaca que as demandas do mundo moderno modificaram a forma com que muitos vegetais s�o cultivados no campo.
"Por um lado, hoje temos fam�lias pequenas ou pessoas que moram sozinhas. Para elas, n�o faz sentido comprar um repolho de tr�s quilos, que vai acabar estragando na geladeira antes de ser consumido. Para esse p�blico, precisamos de frutas e hortali�as pequenas, que possam ser comidos frescos e de uma s� vez", diz.
"Mas h� tamb�m muitos indiv�duos que n�o fazem mais refei��es em casa. Os restaurantes que preparam a comida para eles, por outro lado, v�o se beneficiar de vegetais maiores, pois eles rendem mais", completa.
O engenheiro agr�nomo explica que, com o conhecimento acumulado at� hoje, � poss�vel atender a esses dois mercados — e produzir frutas e hortali�as grandes ou pequenas. Segundo o pesquisador, a pr�pria forma como esses produtos s�o cultivados, com mais ou menos �gua, adubo, luminosidade e tempo, j� � suficiente para influenciar o tamanho que eles ter�o.
Mais ou menos nutrientes?
Mas ser� que depois de tantas altera��es, as plantas que a gente come carregam a mesma quantidade de vitaminas, minerais e outros compostos ben�ficos � sa�de? A resposta depende da perspectiva. Se compararmos com as vers�es "selvagens" de milhares de anos, muitas frutas e hortali�as ficaram mais nutritivas e diversas.

Os milhos 'ancestrais' tinham menos de 2 cent�metros
Getty ImagesJames Kennedy, um professor de qu�mica da Austr�lia, publicou em 2014 uma s�rie de infogr�ficos que ilustram essa quest�o.
O especialista mostra, por exemplo, que a melancia ancestral tinha 5 cent�metros de di�metro, era extremamente amarga, composta de 80% de �gua e s� crescia em Nam�bia e Botswana, na �frica.
A melancia "domesticada" de hoje tem at� 30 cent�metros de di�metro, � doce, possui 91% de �gua e � cultivada em 15 pa�ses (incluindo o Brasil). E isso sem contar o aparecimento mais recente de vers�es sem caro�o e em diferentes tamanhos e formatos, como cubos e "diamantes".
Nesse processo de transforma��o e crescimento, claro, ela ganhou mais nutrientes e volume de �gua. Um processo parecido pode ser observado com v�rias outras culturas muito comuns, como o pr�prio milho e a cenoura, citados anteriormente.
Ent�o, dessa perspectiva hist�rica, muitos desses alimentos se tornaram mais ricos do ponto de vista nutricional. Mas e nas �ltimas d�cadas? Ser� que frutas e hortali�as perderam em parte a riqueza de vitaminas, minerais e afins?
As evid�ncias aqui ficam um pouco mais nebulosas. Alguns trabalhos at� mostram uma perda de compostos em alguns desses produtos.
Uma das pesquisas mais importantes nessa �rea foi feita pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que avaliou a poss�vel mudan�a nutricional em 43 culturas diferentes entre 1950 e 1999.
Os especialistas observaram uma baixa no teor de seis nutrientes (prote�na, c�lcio, f�sforo, ferro, vitamina B2 e vitamina C). Por�m, para outros sete elementos, n�o foram observadas diminui��es.
O tamanho da queda tamb�m variou bastante: foi observado um enxugamento de 6% nas prote�nas e de 38% na vitamina B2.
Um outro estudo, feito no Instituto de Agrobiotecnologia da Espanha, avaliou o conte�do nutricional de gr�os de trigo de diferentes �pocas guardados entre 1850 e 2016 (ou 166 anos no total).
Os dados revelam um aumento na quantidade de carboidrato e uma redu��o nos minerais e nas prote�nas. Os autores chamam a aten��o para o fato de que "o desbalan�o entre carboidratos e prote�nas ficou especialmente marcado a partir dos anos 1960, o que coincide com fortes aumentos na temperatura ambiental e a introdu��o de variedades mais curtas de trigo".
Mas, segundo os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil, ainda n�o est� claro os efeitos pr�ticos dessas mudan�as — e se esse � um fen�meno que de fato afeta a sa�de das pessoas ou n�o.
At� porque, por outro lado, nesse mesmo per�odo houve um avan�o consider�vel nas t�cnicas de melhoramento gen�tico das plantas, com a possibilidade de obter frutos e hortali�as mais resistentes ou com uma carga extra de nutrientes. E isso, por sua vez, garantiu a oferta de alimentos para as pessoas.
Pode ser ent�o que, no final das contas, uma coisa acaba compensando a outra. Ainda assim, n�o h� d�vidas entre os especialistas de que o tema merece ser estudado a fundo.
Com tantas mudan�as ao longo de mil�nios, uma coisa parece certa. As frutas e hortali�as do futuro ser�o diferentes das que comemos no presente — at� por causa das mudan�as clim�ticas e das altera��es do trabalho no campo.
"Cada vez mais precisaremos do aux�lio de marcadores moleculares, que detectam os genes capazes de expressar certas qualidades em frutas e hortali�as", antev� Rosa. "Isso ser� cada vez mais essencial para lidar com a diminui��o da m�o de obra na agricultura e o impacto do aquecimento do planeta nas planta��es", conclui.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-64268557
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