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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

O casamento homoafetivo e a tara pela vida alheia

O projeto de lei que visa proibir o casamento homoafetivo no Brasil mostra que estamos nos importando com o que n�o devia ser importante


20/09/2023 06:00 - atualizado 20/09/2023 10:03
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Pintura em aquarela de forma não linear, com linhas irregulares em azul, verde, amarelo, laranja e vermelho.
A vida privada ainda n�o � respeitada como deveria. (foto: Pexels)

 

Uma das acusa��es que mais se pode fazer contra quem professa ideologias de esquerda � um certo fetiche com regula��o estatal. H� uma cren�a de que o Estado � capaz de regular praticamente tudo na vida, centralizando por meio da legisla��o a forma como as pessoas devem viver, o que escolher e quais op��es de vida tomar.

 

Sim, � uma cren�a no sentido de f� mesmo, dado que n�o h� indicador que demonstre, cabalmente, que a regula��o estatal � a melhor forma de resolver problemas e direcionar solu��es. Em alguns setores n�o se questiona a necessidade de regula��o estatal, podendo ser questionada a intensidade dessa regula��o e os benef�cios ou malef�cios que ela pode proporcionar se imposta em maior ou menor medida.

 

Contra essa cisma regulat�ria h� o pensamento liberal, cujas bases est�o fundadas na desconfian�a acerca das condi��es reais de o Estado prover solu��es universais por meio de autoridades centralizadas. O principal argumento � que a vida � complexa demais e o pa�s (pensando no Brasil) � grande e diverso demais para que uma autoridade central seja capaz de ter a vis�o do todo.

 

A partir desta perspectiva, adota-se a ideia de que a regula��o deve ser a m�nima necess�ria para as situa��es em que a sua aus�ncia, claramente, gere mais preju�zos do que benef�cios. H� um alargamento do valor da liberdade contra o Estado, de modo a trazer o indiv�duo para o centro do debate sobre legisla��o e pol�ticas p�blicas.

 

� poss�vel observar, por exemplo, movimentos no �mbito do direito internacional no sentido de repensar as rela��es internacionais para evidenciar que mais importante que o Estado s�o os indiv�duos que o comp�em e s�o os destinat�rios do que o Estado faz. Logo, mais importante que a vontade do Estado � a vontade das pessoas.

 

Percebe a mudan�a do lugar de fala? Pois �. O ponto central � esse. O poder de regula��o estatal deve ser sopesado cuidadosamente com a liberdade das pessoas.

 

 

E qual � o crit�rio de sopesamento entre esses dois pontos? O famoso interesse p�blico ou, sendo mais espec�fico, a repercuss�o p�blica de a��es privadas. J� imaginou se o Estado n�o regulasse o direito de dirigir? Pensa a aus�ncia desta lei, de modo que quem quisesse poderia, sem crit�rio algum, pegar um carro e sair dirigindo (com ou sem CNH, b�bado ou s�o).

 

Se com regula��o j� � perigoso, d� para perceber que sem ela seria potencialmente ca�tico ao ponto de inviabilizar a vida em sociedade. Exemplos desta natureza n�o faltam.

 

Onde entra o problema proposto no t�tulo? Entra no momento em que essa no��o de efeitos p�blicos de a��es privadas escapa da racionalidade e se funda na mera moralidade. E este � o cerne da discuss�o sobre o projeto de lei pautado neste ter�a-feira na C�mara dos Deputados que prop�e a veda��o ao casamento homoafetivo.

 

A par de todas as discuss�es que este tema pode gerar, no �mbito do direito a �nica discuss�o poss�vel de ser feita �: qual a necessidade de se regular a vida privada alheia? E neste ponto, h� verdadeiro contrassenso de alguns setores do Legislativo Federal.

 

 

Isto porque, a pretexto de defenderem pautas liberais, h� aqueles que se agarram a ideias de desregula��o estatal e veda��o � interfer�ncia do Estado na vida privada. Defende-se irrestrito direito de manifesta��o, como liberdade de express�o, ainda que ofensivo e lesivo a terceiros (chegando ao patamar de se defender a liberdade de cria��o de partidos com ideologia nazista!).

 

Defende-se arduamente a desregula��o de direitos trabalhistas e de regras sobre a interven��o do Estado na economia. H� clara defesa de redu��o da carga tribut�ria e da simplifica��o das regras tribut�rias.

 

Para tudo isso o fundamento � o mesmo: a liberdade e a no��o de que o Estado n�o pode impedir o pleno desenvolvimento de pessoas, neg�cios e ideias. Ocorre que, paradoxalmente, muitos destes representantes est�o l� defendendo que o Estado regule as rela��es de afeto e determine o �nico modelo poss�vel que as pessoas ter�o a “liberdade” de exercer seus afetos, colocando na ilegalidade todos os demais!

 

A pergunta que fica �: porque todos esses argumentos n�o valem para as manifesta��es afetivas de pessoas privadas? As rela��es de afeto s�o as manifesta��es mais privadas que um ser humano pode expressar na sua vida, visto que visam exclusivamente �quele a que se direciona o afeto.

 

Qualquer tentativa do Estado de regular rela��es de afeto est� fadada miseravelmente ao fracasso, dado que � exatamente neste espa�o em que as pessoas se manifestam de acordo com o �pice da sua individualidade. Aqui � at� curioso que a pauta seja tipicamente capitaneada pela esquerda, t�o ciosa da regula��o estatal, e afastada por segmentos ditos liberais, t�o ciosos da restri��o ao poder do Estado.

 

 

Aqui, a esquerda (sem o dizer expressamente, porque deve ser pecado pelas bandas de l�) assume que a regula��o estatal � um problema e, por isso, deve ser evitada, de modo a prevalecer a liberdade em detrimento da regula��o centralizada. Mais liberalismo que isso n�o existe.

 

Por sua vez, a galera “defensora da liberdade de tudo” nesta hora, como um bom marxista leninista, quer todo o poder do Estado para planificar as rela��es privadas e impor, de forma centralizada, uma �nica forma de viver. Mais comunistinha que isso n�o h�.

 

Percebeu o paradoxo??? Obviamente que n�o pretendo aqui colocar todo mundo no mesmo balaio, at� porque seria leviano. O ponto central � evidenciar que carece de l�gica a defesa deste tipo de proposta por quem as defende e isso muito antes de entrar na discuss�o sobre a inconstitucionalidade do projeto (que � outra discuss�o).

 

� importante entender que liberdade s� � liberdade se for por inteiro. E principalmente s� h� liberdade onde o indiv�duo tem poder de decidir onde estar, com quem estar, o que fazer de si mesmo e quais rela��es pessoais ir� travar.

 

Neste ponto falham todos! A esquerda � t�o ciosa na defesa dos direitos homoafetivos, capitaneando o discurso sobre a necess�ria liberdade relacional deste segmento da sociedade (ao argumento de que o amor � diverso e toda forma de amor deve ser respeitada e acolhida). Entretanto, estas mesmas pessoas se calam remansosas sobre a flagrante inconstitucionalidade da veda��o � bigamia por ofensa � liberdade religiosa do povo mu�ulmano. 

 

Nesta cultura e nesta manifesta��o religiosa � permitido (e em alguma medida at� incentivado) a multiplicidade de casamentos simult�neos. Entretanto, no Brasil, estas pessoas est�o proibidas pelo Estado de manifestar e viver a sua religiosidade porque o Estado decidiu que s� h� liberdade para casar com uma pessoa por vez.

 

E se voc� tem uma cultura e uma religi�o diferentes � um problema seu! Mas pergunto eu: o Estado n�o � laico? A resposta � um sonoro sil�ncio.

 

Por outro lado, aqueles que se inflam para abominar o aumento de poder do Estado, se tornam servis subalternos do poder, desde que este atenda �s suas demandas morais. E isso sem sequer entender que este tipo de proposta apenas refor�a a no��o de que o Estado pode interferir em tudo sim, inclusive na sua liberdade individual.

 

E se pode interferir nos seus relacionamentos afetivos, qual o motivo para n�o poder interferir no que voc� diz, pensa, manifesta ou pleiteia? Por que n�o pode limitar a cultura que voc� pode acessar? Por que n�o pode limitar as possibilidades de ideologias pass�veis de ades�o? Qual a diferen�a? Nenhuma!

 

Ou seja, na sanha de ver suas pautas morais atendidas para o ef�mero deleite de suas pretens�es pequenas, n�o percebem o quanto esse tipo de postura ataca tudo o que defendem. � m�ope, pouco inteligente e evidencia uma dificuldade surreal de enxergar de forma minimamente ampla as consequ�ncias dos pr�prios atos.

 

Qual conclus�o podemos tirar de tudo isso: o nosso problema vai muito al�m de an�lises constitucionais. Temos um problema estrutural enquanto sociedade. Estamos preocupados demais com o que o vizinho est� fazendo e perdendo tempo precioso que poder�amos estar gastando para discutir situa��es macro, que s�o os pontos onde efetivamente o Estado impacta a vida de todo mundo.

 

H� aqueles que dizem que uma fofoquinha � legal, mas o problema do Brasil � que a gente vive da fofoca em um n�vel institucional. H� uma preocupa��o t�o absurda em regular mesquinhamente o alheio que eu tenho medo de se fazer um plebiscito no pa�s para decidir se o Congresso vai parar um ano para deliberar sobre a regulamenta��o das prefer�ncias amorosas das autoridades ou sobre a aloca��o de recursos do or�amento da sa�de e ficarmos um ano sem SUS.


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