
"Os enfermeiros j� enfrentavam, antes da pandemia, problemas de sa�de mental relacionados a longas jornadas de trabalho, como estresse, esgotamento e havia at� relatos de pensamentos suicidas. A gente sabia que a situa��o pioraria com a pandemia, mas n�o pens�vamos que pioraria tanto", diz D�ris, como a enfermeira � conhecida, � BBC News Brasil.
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Coordenadora da Comiss�o Nacional de Sa�de Mental do Cofen, ela recebeu apoio do conselho para criar o projeto "Enfermagem Solid�ria". De forma gratuita, 24 horas por dia, a iniciativa fez cerca de 8 mil atendimentos virtuais de trabalhadores de todo o pa�s no ano passado, segundo D�ris.
Depress�o, ansiedade e pensamentos suicidas foram alguns dos temas que os cerca de 150 volunt�rios leram em relatos dos profissionais de sa�de.
Entre os casos que acompanhou, D�ris destaca um que a deixou muito comovida: uma enfermeira que se sentia culpada ap�s a m�e morrer em decorr�ncia do novo coronav�rus. "Ela acreditava que tinha sido a respons�vel por infectar a m�e. Foi uma das situa��es mais dif�ceis", relata.
O "Enfermagem Solid�ria" ajudou at� mesmo a idealizadora do projeto. Em novembro passado, o marido de D�ris morreu em decorr�ncia da covid-19.
"Percebo que o "Enfermagem Solid�ria" at� me ajuda a compreender melhor a perda que eu tive", diz.
Os enfermeiros na linha de frente
Desde o come�o da pandemia, os profissionais de sa�de que est�o na linha de frente contra a covid-19 enfrentam situa��es extremas de esgotamento f�sico e mental, que se tornaram mais agudas nos picos da pandemia, como hospitais sobrecarregados, falta de equipamentos de seguran�a e aus�ncia de medicamentos para intubar pacientes.
Esses trabalhadores tamb�m vivem com o medo de serem v�timas do novo coronav�rus e lidam com a saudade de colegas que morreram em decorr�ncia da covid-19.

Em todo o Brasil foram registrados, desde o come�o da pandemia, 56,1 mil casos de infec��es pelo novo coronav�rus entre profissionais de enfermagem e 784 mortes, segundo dados atuais do Observat�rio de Enfermagem, do Cofen.
Doutora em sa�de mental e professora aposentada da Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp), D�ris afirma que desde o princ�pio da pandemia n�o havia d�vidas da necessidade de uma iniciativa para apoiar os profissionais de enfermagem. Ap�s autoriza��o do Cofen, ela procurou outros enfermeiros que tamb�m s�o especialistas em sa�de mental. Em poucos dias, o projeto recebeu diversos volunt�rios.
O "Enfermagem Solid�ria" entrou em funcionamento a partir do fim de mar�o de 2020. Meses depois, passou a atender tamb�m alguns trabalhadores da �rea da radiologia.
A respons�vel pela iniciativa ressalta que o projeto n�o tem o objetivo de substituir sess�es de terapia ou acompanhamento psiqui�trico.
"O que fazemos � uma escuta emp�tica, para acolher esses trabalhadores. O objetivo � que esses profissionais desabafem. Se necess�rio, criamos uma rotina com aquela pessoa, pedimos para ela voltar em outro momento tamb�m para conversar", explica D�ris.
"Alguns psic�logos ligaram para tentar ajudar no projeto, mas o meu objetivo era reunir volunt�rios que fossem da enfermagem e com especializa��o em sa�de mental. Era um sentimento de que outros enfermeiros poderiam dar um apoio melhor aos colegas de profiss�o no atual momento, porque conhecem a rotina de trabalho", acrescenta.

Os relatos ao longo da pandemia
O projeto funciona por meio de um chat no site do Cofen. Ali, profissionais de enfermagem desabafam com os volunt�rios por meio de textos. "Acredito que quando eles escrevem o que sentem, tamb�m refletem sobre aquilo", afirma D�ris.
Ela comenta que os desabafos dos profissionais de sa�de mudaram ao longo dos meses de pandemia. No in�cio, segundo D�ris, a maior parte dos relatos eram referentes ao medo intenso de contrair o novo coronav�rus e infectar a fam�lia.
"Era uma situa��o quase geral. Os profissionais se queixavam que n�o havia equipamento de prote��o adequado ou, quando havia, n�o recebiam treinamento para us�-los. Era uma situa��o na qual ainda estavam se ajustando, pois era come�o da pandemia", relata.
Meses depois, segundo a enfermeira, o medo da contamina��o pelo v�rus desapareceu. "A impress�o foi de que todos j� haviam aceitado que estavam contaminados ou seriam contaminados em algum momento. Muitos profissionais passaram a mudar de casa para proteger a fam�lia. Alguns alugaram casa com colegas de profiss�o para n�o colocar os parentes em risco", diz Doris.
"Com o passar do tempo, essa dist�ncia da fam�lia causou uma sensa��o de desamparo, porque estavam distantes dos entes queridos. Alguns diziam que passavam na rua abanando a m�o para o filho ou para a m�e. Foi um per�odo sofrido e de desamparo, porque eles precisavam da fam�lia naquele momento", comenta a enfermeira.
Outra situa��o que se tornou frequente entre os relatos foi sobre o estigma que passou a ser associado aos profissionais que trabalham em hospitais.
"Em determinado momento, come�aram a aplaudir os profissionais de sa�de.
Mas ao mesmo tempo, esses trabalhadores foram estigmatizados. Houve situa��es de enfermeiros hostilizados no transporte p�blico ou at� nos condom�nios em que moravam. Parecia que a sociedade queria os profissionais de sa�de cuidando, mas n�o queriam eles por perto. Queriam que eles morassem no hospital e ficassem por l�", diz D�ris.
Quando os casos come�aram a reduzir no pa�s, por volta do fim do ano passado, o "Enfermagem Solid�ria" ficou desativado por cerca de 20 dias. Por�m, o projeto logo voltou a funcionar, no per�odo em que a situa��o no Amazonas voltou a ficar cr�tica.
"Quando chegou essa segunda onda no Amazonas, come�amos a atender o caos. Nesse per�odo, percebemos que os enfermeiros come�aram a se perguntar: o que estamos fazendo aqui? Para que estamos aqui? Isso n�o vai acabar? Havia muitos �bitos e muitos diziam que n�o queriam mais trabalhar em UTIs", relata.
No in�cio deste ano, segundo D�ris, o cansa�o extremo e os temores relacionados � pandemia aumentaram entre os profissionais do pa�s, em raz�o da explos�o de casos de covid-19.

"Eles viram quantidades de �bitos que nunca haviam visto. Antes, eles eram como salvadores, pois conseguiam salvar muitas vidas. Eles estudaram e se especializaram para isso. Mas nos primeiros meses deste ano se desencantaram com tantos �bitos. Eles pensavam: isso n�o vai ter fim, o que estou fazendo aqui?", relata D�ris.
Ap�s enfrentar explos�o de mortes pela covid-19 no primeiro quadrimestre do ano, o Brasil registrou queda nos n�meros de �bitos. Nos �ltimos dias, por�m, os n�meros voltaram a subir em algumas regi�es do pa�s.
No m�s passado, os �bitos pelo novo coronav�rus entre os enfermeiros ca�ram em 71% em compara��o ao m�s anterior. Enquanto em mar�o foram 83 mortes pela covid-19 na categoria em todo o pa�s, em abril foram 24. Os dados s�o do Cofen, que aponta que fatores como a vacina��o — profissionais da sa�de s�o priorit�rios — e melhor conhecimento sobre os protocolos para combater o novo coronav�rus foram fundamentais para reduzir as mortes desses trabalhadores.
Apesar do cen�rio atual mais ameno, em compara��o aos primeiros meses deste ano, D�ris afirma que o desencanto com a profiss�o ainda � frequente entre os trabalhadores da sa�de. "� o que estamos sentindo nos relatos atualmente", diz. Esse sentimento, aponta a enfermeira, ocorre por tudo o que ocorreu nos �ltimos meses e pelo temor de uma nova explos�o de covid-19 no pa�s.
No per�odo recente, o "Enfermagem Solid�ria" faz uma m�dia de 80 atendimentos di�rios.
Do in�cio do projeto at� hoje, muitos daqueles que buscam ajuda s�o trabalhadores que sofrem de depress�o, transtorno do p�nico ou ansiedade generalizada. "Alguns j� haviam sido diagnosticados por psiquiatras", relata D�ris. Muitos desses transtornos foram agravados durante a pandemia. "A depress�o com vontade de desistir de tudo � a situa��o mais frequente", afirma a enfermeira.
'Ela dizia que foi a respons�vel por infectar a m�e'
Um dos casos mais marcantes para D�ris no "Enfermagem Solid�ria" ocorreu em maio de 2020. Na �poca, uma enfermeira que havia perdido a m�e para a covid-19 buscou ajuda.
"Ela dizia que estava chorando muito porque havia sido a respons�vel por infectar a m�e. Foi um caso muito dif�cil, tentei explicar para ela que qualquer um poderia contaminar o outro durante a pandemia", relata D�ris.
No relato, de maio do ano passado, a enfermeira contou que a m�e era muito cuidadosa em rela��o � preven��o contra a covid-19. "Essa mo�a dizia que n�o tinha d�vidas de que a m�e tinha morrido por causa dela. Era uma culpa t�o grande essa mo�a tinha at� idea��o suicida. Era muito do�do, porque ela acreditava que precisava pagar por ter contaminado a m�e", relembra D�ris.

"Ela falava que a m�e era saud�vel e feliz. Cada vez mais, ela se culpava pela morte da m�e. Foi uma hist�ria muito triste", diz a enfermeira.
D�ris conversou com a mo�a por diversas vezes ao longo dos meses. "Consegui fazer com que ela se sentisse melhor. De vez em quando, ela ainda me escreve e diz que est� um pouco melhor. � muito importante termos esse retorno positivo, que recebemos em muitos casos", comenta.
A perda do marido
Enquanto liderava o projeto, D�ris sofreu uma perda que a afetou duramente. O marido dela, o m�dico Oswaldo Humerez, de 70 anos, morreu em decorr�ncia da covid-19 em novembro passado.
Ele trabalhava em uma unidade de sa�de do Guaruj�, em S�o Paulo — cidade em que o casal morava. Emocionada, a vi�va relata a situa��o na qual o companheiro acredita ter contra�do o novo coronav�rus. "Ele estava saindo da unidade de sa�de quando viu que um m�dico mais novo estava intubando um paciente. Ele quis ajudar e recebeu uma carga viral enorme, porque n�o estava com todos os equipamentos de prote��o, apenas com a m�scara. Quando ele chegou em casa, me disse; se eu peguei o coronav�rus, foi hoje."
O marido dela apresentou os primeiros sintomas da doen�a. Logo a situa��o se agravou e Oswaldo precisou ser internado. Ele ficou cinco dias intubado, mas n�o resistiu �s complica��es do novo coronav�rus.
"Foi tudo muito r�pido e inesperado. Ele n�o tinha comorbidades, era esportista, jogava t�nis e at� dava uma surfadinha. Ele era muito vivo", lamenta D�ris, que tamb�m contraiu o novo coronav�rus e teve sintomas leves.
"Pelo menos depois me informaram que o paciente que ele intubou conseguiu se salvar. Ao menos uma coisa boa", acrescenta.
D�ris e Oswaldo foram casados por 40 anos. Eles tiveram uma filha. Logo ap�s a perda do marido, a profissional de sa�de relata que ficou deprimida e com medo em rela��o ao projeto "Enfermagem Solid�ria".
"N�o sabia se daria conta de ajudar aqueles v�rios volunt�rios que acreditavam em mim e no meu projeto. Mas o fato de achar que eles precisavam de mim fez com que eu criasse coragem para voltar", relata.
Quando retornou ao "Enfermagem Solid�ria", recebeu apoio intenso dos outros volunt�rios. "Todo mundo me deu for�a e isso me ajudou", diz D�ris.
Ela confessa que os atendimentos mais dif�ceis atualmente s�o os de profissionais de sa�de que perderam parentes para a covid-19. "Tenho que ficar firme quando atendo casos que s�o semelhantes ao meu, sen�o eu choro tamb�m. Apesar de dif�cil, eu tento ajudar aquela pessoa que tamb�m est� passando por isso, porque sei como � uma situa��o muito pesada", diz D�ris.
"Tenho a impress�o de que est� sendo um per�odo dif�cil para todo mundo, para mim tamb�m", acrescenta.
Enquanto a pandemia segue sem prazo para acabar, o "Enfermagem Solid�ria" continua em funcionamento. No primeiro quadrimestre deste ano foram, ao menos, 3,5 mil atendimentos.
"Depois que a pandemia for controlada, vamos pensar em um novo modelo de projeto para acompanhar a sa�de mental dos profissionais de enfermagem", afirma D�ris.
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Confira respostas a 15 d�vidas mais comuns
Quais os sintomas do coronav�rus?
O que � a COVID-19?
A COVID-19 � uma doen�a provocada pelo v�rus Sars-CoV2, com os primeiros casos registrados na China no fim de 2019, mas identificada como um novo tipo de coronav�rus pela Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) em janeiro de 2020. Em 11 de mar�o de 2020, a OMS declarou a COVID-19 como pandemia.
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