Captura de tela feita em 17 de maio de 2021 de uma publica��o no Facebook
Publica��es que alegam que documentos mostram que o coronav�rus foi testado como arma biol�gica pela China antes da pandemia foram compartilhadas mais de 3,3 mil vezes desde 9 de maio de 2021 nas redes sociais. Essa afirma��o se baseia em um v�deo no qual a apresentadora do jornal australiano Sky News, Sharri Markson, menciona um livro acad�mico chin�s que discute o uso de pat�genos como estrat�gia de ataque. No entanto, ela n�o cita qualquer trecho afirmativo sobre uma produ��o de armamento biol�gico pela China.
“BOMBA: DOCUMENTOS MOSTRAM CORONAV�RUS SENDO TESTADO COMO ARMA BIOL�GICA 5 ANOS ANTES DA PANDEMIA POR CHINESES”, diz o texto de uma das publica��es compartilhadas no Facebook (1, 2), no Instagram (1, 2) e no Twitter (1, 2), que compartilham um v�deo da rede australiana Sky News ou fazem refer�ncia a ele, com a captura da apresentadora Markson.
Neste programa na Sky News, Markson afirmou que cientistas militares da China discutiram o uso do coronav�rus como arma biol�gica em um documento de 2015. Segundo ela, a informa��o foi retirada de um livro escrito por cientistas do Ex�rcito da Liberta��o Popular da China e por funcion�rios de sa�de p�blica de alto escal�o do pa�s.
O nome do livro � “A origem n�o natural da SARS e novas esp�cies de v�rus criadas pelo homem como armas biogen�ticas” (em ingl�s, “The Unnatural Origin of SARS and New Species of Man-Made Viruses as Genetic Bioweapons”).
Ele foi editado por Xu Dezhong, um professor aposentado da Universidade M�dica da For�a A�rea (chefe de um grupo de especialistas que analisou a epidemia de SARS) e Li Feng, ex-vice-diretor do Escrit�rio de Preven��o de Epidemias da China.
Em nenhum momento do v�deo Markson afirma que a China testou algum tipo de coronav�rus como arma biol�gica. O seu relato sobre o documento n�o permite esse tipo de afirma��o, tampouco os trechos do livro mostrados na reportagem.
O livro mencionado na mat�ria defende uma tese controversa de que o v�rus SARS teria sido manipulado por terroristas e lan�ado em um ataque contra a China, em 2002. O material discute a possibilidade desse modelo de pesquisa estar sendo conduzido no mundo e traz detalhes de como um ataque dessa natureza ocorreria e quais seriam os impactos esperados.
Entretanto, desde 2003, evid�ncias s�lidas apontam que o v�rus SARS surgiu em animais. Em 2017, virologistas chineses identificaram todas as “pe�as gen�ticas” que comp�em o SARS-CoV humano em 15 cepas virais encontradas em uma caverna de morcegos — praticamente encerrando a quest�o, segundo o peri�dico especializado Scientific American.
No v�deo, a apresentadora da Sky News menciona cinco frases do livro. A primeira, aos 20 segundos de dura��o, sobre a exist�ncia de uma “nova era de armas gen�ticas”.
A segunda, aos 2 minutos e 12 segundos, sobre avan�os cient�ficos permitirem atualmente o congelamento de agentes biol�gicos e a sua aerossoliza��o durante ataques.
O terceiro trecho, aos 2 minutos e 31 segundos, aborda condi��es apropriadas para a libera��o de part�culas, enquanto o quarto, aos 3 minutos e 23 segundos, fala sobre as consequ�ncias esperadas e o efeito prolongado desse tipo de conflito.
Por fim, o quinto trecho, aos 3 minutos e 51 segundos, aborda o terror psicol�gico que as armas biol�gicas podem causar na popula��o.
Nenhuma dessas frases, contudo, indica que houve investimento da China na produ��o de armas biol�gicas.
Cr�ticas ao artigo
A Sky News, na verdade, repercutiu um artigo do jornal The Australian que foi criticado na China. O jornal chin�s Global Times, alinhado com o Partido Comunista Chin�s, publicou uma nota afirmando que o ve�culo australiano escreveu um “artigo embara�oso para sustentar uma teoria da conspira��o de que a China investiu na cria��o do novo coronav�rus como arma biol�gica anos antes da pandemia”.
O tabloide chin�s critica o jornal por tratar como um “documento vazado” o que seria apenas “um livro acad�mico que explora o bioterrorismo e as possibilidades de v�rus sendo usados %u200B%u200Bna guerra” que chegou a ser vendido na Amazon, ainda que esteja fora de estoque atualmente.
Com a ajuda do Google Tradutor, pesquisou-se pelo t�tulo do livro em chin�s e o encontrou em uma p�gina da Amazon.
O South China Morning Post, um jornal de Hong Kong, tamb�m publicou uma reportagem sobre o caso. O ve�culo afirma ter entrado em contato com o principal autor do livro, Xu Dezhong, que declarou que a sua teoria sobre a origem n�o natural do v�rus SARS n�o foi levada a s�rio. Dezhong alegou, ainda, que parte dos trechos citados pela m�dia australiana foram retirados de um cap�tulo no qual comentava sobre um documento desclassificado das For�as Armadas dos Estados Unidos.
O Comprova rastreou o documento pelo nome do autor, o coronel Michael Ainscough, do Centro de Contraprolifera��o da For�a A�rea dos Estados Unidos.
O artigo, intitulado “A pr�xima gera��o de armas biol�gicas: a tecnologia de engenharia gen�tica aplicada para a guerra qu�mica e o bioterrorismo” (em ingl�s, “Next Generation Bioweapons: The Technology of Genetic Engineering Applied to Biowarfare and Bioterrorism”), discute o uso de tecnologia de engenharia para programas de armas biol�gicas sem mencionar que a China tenha executado alguma estrat�gia desse tipo.
A origem do novo coronav�rus
Apesar de o livro chin�s tratar do SARS-CoV, a teoria de que o SARS-CoV-2 pudesse ter sido desenvolvido em laborat�rio se espalhou ainda no ano passado, com um impulsionamento decisivo do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia Paulo Guedes tamb�m fizeram declara��es nesse sentido.
Evid�ncias cient�ficas, no entanto, apontam que o v�rus que causa a covid-19 tem origem natural.
Ainda em mar�o de 2020, em um estudo publicado na revista Nature, cinco pesquisadores dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Austr�lia conclu�ram que “a an�lise mostra claramente que o SARS-CoV-2 n�o � uma constru��o de laborat�rio ou um v�rus propositalmente manipulado”.
Para chegar ao resultado, os pesquisadores compararam a estrutura gen�tica do SARS-CoV-2 com a de outros v�rus da mesma fam�lia. Os cientistas destacam que, se houvesse manipula��o gen�tica em laborat�rio, a estrutura do novo coronav�rus seria parecida com a de outros organismos existentes, porque essas altera��es partiriam de moldes conhecidos. “As informa��es gen�ticas mostram de maneira irrefut�vel que o SARS-CoV-2 n�o � derivado de nenhuma estrutura central de v�rus usada anteriormente”.
O doutor em Imunologia e professor do N�cleo de Doen�as Infecciosas da Universidade Federal do Esp�rito Santo (UFES) Daniel Cl�udio de Oliveira Gomes disse ao Comprova que estudos como o da Nature apontam que o SARS-CoV-2 tem um perfil de muta��o muito semelhante a outros v�rus naturais encontrados em morcegos, hospedeiros que podem guardar a origem do agente infeccioso da covid-19.
Segundo Gomes, os pesquisadores puderam chegar a essa conclus�o porque o Sars-CoV-2 tem um genoma pequeno (a informa��o gen�tica do v�rus), sendo poss�vel fazer o sequenciamento gen�tico e observar suas muta��es. Essas altera��es mostraram-se imprecisas, o que n�o � uma caracter�stica de v�rus fabricados em laborat�rio. Esses, ao contr�rio, apresentam um elevado grau de precis�o toda vez que replicam porque os genes podem ser selecionados.
“� como se mont�ssemos um quebra-cabe�as, colocando as pe�as onde queremos. Por isso, os v�rus fabricados s�o t�o precisos. Os naturais s�o imprecisos como qualquer v�rus circulante”, compara Gomes.
Outra quest�o, apontada por Fl�vio da Fonseca, virologista do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), � que tanto o SARS-CoV quanto o SARS-CoV-2 n�o t�m cicatrizes em seus genomas. “Quando fazemos uma manipula��o gen�tica em qualquer peda�o de DNA, a gente utiliza ferramentas que deixam marcas, as cicatrizes”, diz Fonseca. “E nenhum dos v�rus tem cicatriz que possa nos levar a pensar que ele foi manipulado geneticamente”.
Em fevereiro de 2021, a Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) declarou que considera “extremamente improv�vel” que o coronav�rus seja resultante de um erro em laborat�rio.
Esse texto faz parte do Projeto Comprova. Participaram jornalistas do Estad�o, do Uol e do jornal O Povo. O material foi adaptado pelo AFP Checamos.
Em 17 de janeiro, a vacina desenvolvida pela farmac�utica chinesa Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan no Brasil, recebeu a libera��o de uso emergencial pela Anvisa.