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A escritora argentina, radicada em Berlim, j� publicou os volumes de contos “P�ssaros na boca” e “Sete casas vazias”, al�m do romance “Dist�ncia de resgate”. Por este livro, assim como “Kentukis”, foi finalista do International Booker Prize, e premiada pelo �ltimo com o Casa de las Am�ricas. Nele, o ins�lito irrompe na rotina de gente de todo tipo e lugar, e nesse clima Schweblin mergulha fundo na vida contempor�nea mediada pela tecnologia e atravessada pela discuss�o sobre privacidade. Em tempos em que se busca a fama a qualquer pre�o, almejando alguma forma de distin��o, � intrigante pensar em como o livro pensa o anonimato, o outro lado dessa moeda que parece comportar mais do que dois lados. Ver, ser visto, cruzar a fronteira do desconhecido, estabelecer intimidade com algu�m distante s�o a��es que ganham novos sentidos em uma realidade povoada de c�meras instaladas nesses peculiares bichos de estima��o.
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Nada � assim t�o novo, e os tamagotchis dos anos 1990 j� indicavam formas de intera��o que demandavam aten��o de seus propriet�rios. Celulares, tablets e tantos outros dispositivos hoje mostram que a escuta e a filmagem se imp�em, mesmo � nossa revelia. Nesse caminho, os kentukis surgem como express�o m�xima do voyeurismo atual: carregam c�meras embutidas nos olhos e nunca podem ser desligados, se desconectando para sempre apenas quando deixam de ser carregados. Essa � uma senha para indagar a rela��o com a tecnologia: v�rios estudos j� assinalaram o forte parentesco da depend�ncia do uso das redes sociais com a adi��o �s drogas; basta notar que ambas as situa��es s�o nomeadas da mesma forma – todos s�o usu�rios.
Seja em Antigua, Oaxaca, Vancouver, Umbertide ou Erfust, cidades em que se passam algumas dessas hist�rias, h� sempre uma polaridade em quest�o. De um lado, algu�m adquire o rob�, associando-se a uma pessoa qualquer em outro ponto do planeta, que por meio de um computador ou tablet o manobra remotamente, desempenhando a fun��o de “amo”. Quem compra um kentuki aceita ser observado, algu�m � kentuki; outro algu�m tem um kentuki.
Ilus�o de onisci�ncia
A excita��o de conectar-se a um desconhecido exp�e a falta de controle da situa��o, j� que n�o se escolhe quem ser� o mestre. A ilus�o de onisci�ncia se mistura ao elemento enigm�tico do n�o sabido, desse outro que invade a privacidade alheia com consentimento: � como “dar as chaves da sua casa a um desconhecido”, afirma um personagem: “‘Ser’ kentuki, (...) essa era uma condi��o muito mais intensa. Se ser an�nimo nas redes era a m�xima liberdade de qualquer usu�rio – e al�m disso uma condi��o � qual j� era quase imposs�vel aspirar –, como se sentiria ent�o se fosse an�nima na vida de outro?”
N�o � toa, nesse mundo mediado pela fibra �tica os livros aparecem de modo acess�rio e s�o descritos como objetos silenciosos, por vezes r�sticos. Uma realidade de bibliotecas cujos corredores est�o vazios, como observa a funcion�ria Carmen, habituada a espa�os sem leitores. Ou, como na narrativa de Marvin, o garoto que finge estudar para convencer um pai preocupado, abrindo os livros “como se fossem rel�quias de uma civiliza��o anterior”.
Para que mesmo ler�amos, se podemos assistir � vida dos ou- tros? Um big brother caseiro se instala, trazendo fragmentos de vidas banais – ir ao banheiro, cozinhar, falar ao telefone, trabalhar. A condi��o solit�ria da leitura e o denso mergulho em um mundo interior parecem estar na condi��o oposta � pr�tica kentuki: aqui se estabelecem fr�geis pontes com o outro, pairando a (falsa) sensa��o de proximidade. “Tinha duas vidas, e isso era muito melhor que ter apenas meia vida e coxear aos solavancos”, pensa Emilia, cujo filho cria uma insuspeitada conex�o com a pr�pria m�e ao presente�-la com o dispositivo. “Era toda uma aten��o”, conclui, cativada por esse companheirismo remoto.
Bonecos enterrados
Or�culo dos tempos modernos, os mascotes preenchem car�ncias com la�os prec�rios. Como na esta��o Termini, em Roma, em que um sujeito tem a ideia de fazer seu kentuki responder a perguntas, e as pessoas pagam cinco euros para consultar seu destino. Ao “morrer”, eles deixam saudade – seus donos fazem funerais � semelhan�a de quem perdeu um ente querido, e assim surge a perturbadora imagem de centenas de bonecos enterrados � sombra de jardins em lugares p�blicos.
Mas, da doce nostalgia ao conto de terror, o passo � curto. A rotina de afetos pode se transformar em cruel e s�dico espet�culo, como quando uma jovem � chantageada por algu�m que afirma ter filmagens �ntimas e comprometedoras de membros da fam�lia. Ou quando um ped�filo se instala do outro lado da tela de uma crian�a, enquanto o pai, distra�do cuidando da horta, acredita que o bicho de pel�cia fazia apenas saud�vel companhia. Ou ainda na hist�ria de Sven, artista pl�stico que passa uma temporada em uma resid�ncia art�stica, e sua mulher, Alina, decide n�o interagir com seu kentuki, desafiando a l�gica da rela��o. Controlar o n�vel de invas�o desse pequeno rob� surge como insurrei��o, e o surpreendente desenlace do livro evidencia o qu�o exposta � a nossa rotina. No romance, Schweblin escancara o quanto estamos inseridos de modo inexor�vel dentro de pr�ticas que incluem ver, ser espiados ou controlados. Os kentukis s�o mais que inofensivos mascotes, pois condensam e expressam um modo de vida contempor�neo em que o bot�o de desligar est� inacess�vel e estar fora � categoria que n�o existe mais.
Se nesses relatos a pr�tica da leitura est� em baixa, talvez a chave esteja na pr�pria resposta da escritora em uma entrevista: “A literatura � �til para fazer este exerc�cio sem violar ningu�m. Existe outra tecnologia t�o eficaz para isso quanto a literatura? Imagine: mergulhar em um espa�o onde voc� pode enfrentar seus piores medos, olh�-los bem de perto e perguntar a si mesmo as perguntas importantes – como eu poderia sobreviver a isso? (...) colocar-se no lugar de outra pessoa e entender o qu�o longe � poss�vel ir com ela. E depois voltar para a vida real, para a sua vida, sem uma �nica ferida, mas com todas aquelas novas informa��es existenciais sobre voc�”.
Circulando por entre verbos, comandos e desejos, a autora acerta ao desenhar um cen�rio atual, e se desse romance voltamos � vida sem feridas, como permite a literatura, retornamos tamb�m mobilizados pela perturbadora imagem que Schweblin faz do que nos olha e para o que olhamos.
TRECHO
“Os olhos piscaram sem tirar a vista de cima dela. Era bonitinho que n�o falasse. Uma boa decis�o dos
fabricantes, pensou. Um ‘amo’ n�o quer saber o que seu animal pensa. Em seguida entendeu que era uma
armadilha. Conectar-se com esse outro usu�rio, averiguar quem era, tamb�m dizia muito sobre a pessoa.”

“Kentukis”
• Samanta Schweblin
• Tradu��o de Livia Deorsola
• F�sforo
• 192 p�ginas
• R$ 64,90
*Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e coorganizou, entre outros, o volume “Falando com estranhos – O estrangeiro e a literatura brasileira” (7letras, 2016)