
Para quem j� teve contato com outras obras de Diamela Eltit publicadas no Brasil, como “Jamais o fogo nunca” (Relic�rio, 2017) ou “O infarto da alma” (Instituto Moreira Sales, 2020), “For�as especiais”, tamb�m publicado pela Relic�rio, perceber� que se trata de uma obra distinta e semelhante �s demais. Isso porque uma primeira singularidade da obra da escritora chilena s�o as diversas formas que constr�i para narrar suas hist�rias, indicando uma investiga��o da e na linguagem liter�ria. Algumas vezes tida como uma autora dif�cil ou experimental, sua literatura indica o avesso: dif�cil � a realidade, na literatura se buscam aporias diversas. Em um livro em que a linguagem � t�o central � importante desde o in�cio ressaltar a excelente tradu��o do escritor Juli�n Fuks (autor de livros premiados como “A resist�ncia” e “A ocupa��o”).
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“For�as especiais” � um livro que absorve o volume da viol�ncia latino-americana, localizando sua a��o em blocos de apartamentos de um bairro da periferia. A narradora – que se prostitui em uma lan house – mora com a fam�lia, j� despeda�ada com o desaparecimento dos irm�os e em que a t�nue sobreviv�ncia se assenta em medo e traumas, com muita pouca esperan�a e alguns sandu�ches. Com o corpo social fragmentado e em destro�os, a viol�ncia parece ser a �nica coisa que une e, ao mesmo tempo, separa tudo e todos, como a incont�vel lista de armamentos que une e separa os par�grafos do romance: “Havia trezentos rifles Stoeger Double Defense 20-GA 3”.
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Somos constantemente informados de que esses blocos de apartamento podem, a qualquer momento, ser invadidos pela PM ou pela Pol�cia Civil, e at� por militares, mas n�o sabemos exatamente o motivo. Vingan�a? Intimida��o? Popula��o que paga com viol�ncia pela frustra��o da pol�cia? Apesar das suspeitas, a �nica conclus�o � que a viol�ncia � uma justificativa por si s�. Se temos em outras narrativas latino-americanas acontecimentos externos n�o muito bem explicados, como em “A hora dos ruminantes”, de J. J. Veiga, ou o conto “Autoestrada sul”, de Julio Cort�zar, aqui acontece o mesmo. A diferen�a � que nesses livros algo de excepcional acontecia: surgimento de um acampamento e a invas�o de c�es no romance do autor goiano ou a estrada com o engarrafamento de dias do escritor argentino.
Em “For�as especiais”, por outro lado, temos a n�o explica��o de algo n�o extraordin�rio, mas do pr�prio cotidiano, uma invas�o que se d� sempre violentamente. E invas�o em v�rios n�veis, nos blocos, nos apartamentos, nas rela��es, no corpo e na linguagem, tanto no mundo f�sico quanto no virtual. � o atravessamento da viol�ncia em todos os lugares e em quase todas as rela��es. O texto parece lembrar o tempo todo que se temos corpos violentos temos sempre corpos violentados. Aqui n�o se trata de representar a realidade, mas de dar realidade das viol�ncias �s palavras. Nesse sentido, o romance de Diamela Eltit alcan�a um sobrevoo no contempor�neo que conceitos em voga hoje, como tanatopol�tica ou necropol�tica, ainda claudicam; ou mesmo para momentos em que a pol�tica j� n�o � um jogo poss�vel. Como nos lembra Gayatri Chakravorty Spivak: “Se as ci�ncias sociais descrevem as regras do jogo, a literatura ensina como jogar”.
Ambiente virtual
Em paralelo ao cotidiano, a narradora tamb�m est� em ambiente virtual. Prostituindo-se em uma lan house, ela navega por sites em busca de alguma coisa que d� algum sentido. Em alguns momentos, a explica��o do que ela se interessa nas redes faz mais sentido e � mais completa do que a viv�ncia do cotidiano palp�vel. Mas, de toda forma, fuga n�o � poss�vel, j� que, como comenta a pr�pria narradora, “o tempo � o elemento que sobrevoa a esp�cie humana para mostrar seu poderoso �ngulo apocal�ptico”.
O encontro poss�vel s� se d� com a rela��o que estabelece nesse espa�o comunidade da lan house, com seus amigos Omar e Lucho, tamb�m impregnados de destro�os, mas que sobrevivem ainda na preocupa��o com o outro e na forma como a narradora, inclusive, absorve as palavras dos amigos com uma repeti��o de “ele diz... ele diz... ele diz...” que aparece com const�ncia pelo livro. Essa fr�gil comunidade n�o � exatamente um lugar para o revide, ou para a fuga, mas uma possibilidade de exist�ncia, uma rela��o de responsabilidade que o acaso uniu, j� que, al�m de frequentar o mesmo espa�o, tamb�m nasceram no mesmo dia.
Diamela Eltit parece compor seu romance denunciando a falsa transpar�ncia das palavras e, ao mesmo tempo, questiona as possibilidades de quem acha que pode descrever o contempor�neo, colocando entre o texto e o real apenas uma pel�cula t�nue. Nesse sentido, � um romance cuja linguagem estranha o real e o devolve com a for�a de quem decifra enigmas. Essa exig�ncia ao leitor �, antes de tudo, uma exig�ncia �tica, j� que esse texto-outro que interrogamos passa tamb�m a nos interrogar. Se o mundo de “For�as especiais” est� o tempo todo prestes a desmoronar � porque o nosso est� tamb�m. Mas esse mundo � como o nosso e n�o podemos ir para outro, temos que ficar e tudo que temos � no m�ximo um “otimismo demente”.
*Pedro Kalil � doutor em teoria da literatura, professor e escritor
TRECHO
“Mas n�o � poss�vel, porque meu medo � outro, n�o � pulcro e muito menos redim�vel, � outro, outro, � como se a pol�cia tivesse atravessado todas as fachadas, e seus escudos transparentes tivessem se enfiado dentro da minha boca. Como se as for�as especiais da pol�cia corressem diretamente sobre mim e me lan�assem de maneira sincr�nica mil bombas de g�s lacrimog�nio que me cegassem. Como se um dos quadros do choque, um policial imenso, disparasse uma bala de borracha no meu olho. Mas agora, neste preciso minuto, no cub�culo que me cabe, abaixo a calcinha como se eu fosse uma formiga incans�vel. Abaixo com medo. Um medo bastante imbecil. N�o sei de qu�.”

“For�as especiais”
• Diamela Eltit
• Tradu��o de Juli�n Fuks
• Relic�rio Edi��es
• 156 p�ginas
• R$ 54,90