(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

'O infinito em um junco' traz hist�ria da escrita

Depois de ser traduzido em mais de 30 idiomas, chega ao Brasil o livro fascinante da espanhola Irene Vallejo


12/08/2022 04:00 - atualizado 11/08/2022 22:50

 Irene Vallejo
Escritora espanhola Irene Vallejo (foto: Divulga��o)
“Afinal de contas, o que � uma hist�ria? Uma sequ�ncia de palavras. Um sopro. Uma corrente de ar que sai dos pulm�es, atravessa a laringe, vibra nas cordas vocais e adquire sua forma definitiva quando a l�ngua acaricia o palato, os dentes ou os l�bios. Parece imposs�vel salvar algo t�o fr�gil. Mas a humanidade desafiou a soberania absoluta da destrui��o ao inventar a escrita e os livros. Gra�as a esses achados, nasceu um espa�o imenso de encontro com os outros e houve um fant�stico incremento nas expectativas de vida das ideias. De uma forma misteriosa e espont�nea, o amor aos livros forjou uma corrente invis�vel de gente – homens e mulheres – que ao longo do tempo, sem se conhecer, salvou o tesouro dos melhores relatos, sonhos e pensamentos.”

Mais do que um ensaio sobre a hist�ria do livro, “O infinito em um junco: A inven��o dos livros no mundo antigo” (Intr�nseca), da espanhola Irene Vallejo, � um tributo ao livre-pensamento e � viagem das ideias, que h� mil�nios reafirmam, sejam marcadas em p�ginas de juncos, couros, panos, de livros impressos ou, mais recentemente, nos livros digitais, que n�o estamos dispostos a perder passos na travessia de nossa civiliza��o neste planeta.
 
Fen�meno editorial, traduzido para mais de 30 idiomas, a autora une as vozes da Antiguidade �s vozes contempor�neas para desvendar o percurso desse objeto feito para a leitura a partir da inven��o do alfabeto: um sistema de 22 signos, elaborado pelos fen�cios das cidades da costa libanesa de Biblos, Tiro, S�don e Beirute, por volta de 1250 a.C., evento considerado mais disruptivo do que a inven��o da internet. Em refer�ncia a Biblos, os gregos chamaram o livro bibl�on.

O uso da escrita se expandiu a passos lentos. A prosa nasceu por volta do s�culo 6 a.C., quando os escritores que contavam as suas hist�rias para deixar a “n�voa do anonimato” e “vencer a morte” passaram a desenhar letras em tabuletas ou papiros, em substitui��o � mem�ria oral.
 
Se com S�crates os textos escritos ainda n�o eram habituais; j� com Arist�teles (384 a.C. - 322 a.C.), o h�bito de ler come�ou a ser visto sem estranheza. O alfabeto construiu, nas palavras da autora, uma “mem�ria comum, expandida e ao alcance de todos”. Gra�as �s letras, diz Irene Vallejo, fazemos parte do maior e mais inteligente c�rebro coletivo que j� existiu. 

� nas palavras de Emilio Lled�, fil�sofo espanhol, que Irene Vallejo registra a ep�grafe da obra: “O livro �, acima de tudo, um recipiente onde o tempo repousa. Uma prodigiosa armadilha com a qual a intelig�ncia e a sensibilidade humanas venceram a condi��o ef�mera, fluida, que levava a experi�ncia do viver para o vazio do esquecimento”.
 
Diz Jorge Luis Borges que o mais assombroso dos inventos humanos, o livro � uma extens�o da mem�ria e da imagina��o. O infinito � o limite, raz�o pela qual Antonio Basanta, tamb�m citado pela autora, sintetiza: “Ler � sempre uma transla��o, uma viagem, um ir embora para se encontrar. Ler, mesmo sendo normalmente um ato sedent�rio, leva-nos de volta � nossa condi��o de n�mades”.
 

A produ��o de papiro

O papiro foi pela primeira vez produzido no Antigo Egito, tr�s mil anos antes de Cristo, a partir do junco, que deita ra�zes �s margens do Rio Nilo. Das fibras flex�veis foram fabricadas as folhas, � �poca avan�ada tecnologia que substituiu a escrita sobre a pedra, a argila, a madeira ou o metal.
 
“O primeiro livro da hist�ria nasceu quando a palavra, apenas escrita no ar, encontrou abrigo na medula de uma planta aqu�tica.
 
E, comparado aos seus antepassados inertes e r�gidos, o livro j� nasceu como um objeto flex�vel, leve, apto para a viagem e a aventura”, afirma a autora. E s�o rolos de papiro, carregando longos textos manuscritos com c�lamo e tinta, que chegam � nascente Biblioteca de Alexandria e ao seu museu anexo, porta de entrada na hist�ria, utilizada por Irene Vallejo para narrar a epopeia da escrita e do livro.

Depois da revolu��o representada pelo alfabeto, os sucessores de Alexandre, o Grande (356 a.C. -323 a.C.) deram in�cio ao ambicioso projeto de ganhar acesso e acumular todo o conhecimento universal.
 
 
A Grande Biblioteca e Museu de Alexandria foi projeto dos Ptolomeus, herdeiros no Egito do mais promissor quinh�o do imp�rio fracionado.
 
Irene Vallejo descreve a “extraordin�ria aventura” iniciada com Ptolomeu I (366 a.C. - 283 a.C.), que decidiu assentar a corte em Alexandria, ainda uma pequena cidade, para ali atraindo cientistas e escritores da �poca.
 
A autora levanta a hip�tese de que a ideia de uma biblioteca universal possa ter partido de Alexandre: reunir todos os livros que existem � uma forma simb�lica, mental e pac�fica de possuir o mundo.
 
“A paix�o do colecionador de livro � parecida com a do viajante. Toda biblioteca � uma viagem; todo livro � um passaporte sem data de validade.
 
Alexandre percorreu as rotas da �frica e da �sia sem se separar do seu exemplar da “Il�ada”, ao qual recorria em busca de conselhos, segundo dizem os historiadores, e para alimentar o seu desejo de transcend�ncia.
 
A leitura, como uma b�ssola, lhe abria os caminhos do desconhecido”, afirma Irene Vallejo. 

Loucura apaixonada

Com Ptolomeu I, a fome de livros em Alexandria tornou-se “um surto de loucura apaixonada”. O fara� frequentemente ia ter com Dem�trio de Faleros (350 a.C. - 283 a.C.), encarregado de administrar a biblioteca, repassando os rolos de sua cole��o, indagando-lhe quantos livros j� possu�a.
 
“H� mais de vinte dezenas de milhares, � rei; e estou me esfor�ando para completar em breve o que falta para 500 mil.” Ptolomeu financiava buscas mundo afora, enviava mensageiros, verdadeiros ca�adores de livros, de manuscritos perdidos, hist�rias desconhecidas.
 
 
“Ao seguir o rastro de todos os livros como se fossem pe�as de um tesouro perdido, esses viajantes estavam construindo, sem saber, os alicerces do nosso mundo”, afirma a autora. 

A dinastia Ptolomeu abra�ou o projeto de reunir os saberes de toda a humanidade. A Grande Biblioteca desenvolveu sistemas de organiza��o da informa��o para orientar o leitor em meio aos incont�veis rolos. Ao lado desta, o museu atraiu cientistas e inventores da �poca dedicados � pesquisa.
 
Ptolomeu II selava carta a todos os pa�ses da Terra, requerendo que enviassem para a sua cole��o tudo: as obras dos poetas e escritores em prosa, de oradores, fil�sofos, m�dicos, historiadores, adivinhos.
 
O que n�o podiam comprar, os Ptolomeus confiscavam. Mas tamb�m dissimulavam: ansiando pelas vers�es oficiais das pe�as de �squilo, S�focles e Eur�pides mantidas no arquivo de Atenas desde que estrearam nos festivais de teatro, os embaixadores de Ptolomeu III desembolsavam, segundo a autora, vultosas quantias com a promessa de que iriam devolv�-las.
 
Mas as preciosidades jamais retornavam. J� Marco Ant�nio, prestes a governar o mundo e disposto a deslumbrar Cle�patra, p�s aos p�s dela 200 mil volumes para a Grande Biblioteca. “Em Alexandria, os livros eram combust�vel para as paix�es”, afirma Irene Vallejo. 

Ao mesmo tempo, os reis colecionadores desenvolveram o ato da tradu��o, dando in�cio, nas palavras da autora, a uma conversa “polif�nica infinita”, construindo pontes entre povos, amalgamando ideias.
 
“A transfer�ncia de l�nguas � filha de um conceito que, em grande medida, Alexandre inventou e ainda hoje chamamos por um nome grego: o cosmopolitismo. A melhor parte do sonho megaloman�aco de Alexandre – sua realiza��o, como em qualquer utopia que se preze, claudicou de maneira evidente – consistia em gerar uma uni�o duradoura de todos os povos da oikoumene, criando uma nova forma pol�tica capaz de garantir paz, cultura e leis a todos os seres humanos”, observa Irene Vallejo. Ali se iniciara o processo de globaliza��o. 
 

Representada por seu farol e museu, Alexandria �, para a humanidade, s�mbolo da viagem do conhecimento que extrapola o deslocamento f�sico e ganha, nas tintas dos livros, todos os caminhos do mundo.

“Na cidade-crisol, encontramos as bases de uma Europa que, com suas luzes e suas sombras, suas tens�es e seus desvarios, e at� com sua peri�dica inclina��o � barb�rie, nunca perdeu a sede de conhecimento nem o impulso de explorar”, afirma a autora.
 
Durante os melhores tempos da Biblioteca de Alexandria, a capital grega do delta foi um territ�rio compartilhado, de l�nguas e tradi��es, em que o conhecimento fervilha e as pessoas, integrantes de uma comunidade sem fronteiras, tinham, como ensinaram os fil�sofos estoicos, obriga��o de respeitar a humanidade em qualquer circunst�ncia.
 
“Nessas aspira��es, descobrimos um precedente do grande sonho europeu de uma cidadania universal. A escrita, o livro e sua incorpora��o �s bibliotecas foram as tecnologias que possibilitaram essa utopia”, considera Irene Vallejo. 

Contribui��o feminina

A primeira pessoa do mundo a assinar um texto com o pr�prio nome foi uma mulher: 1500 anos antes de Homero, Enheduana, poeta e sacerdotisa – filha do rei Sarg�o I da Ac�dia, que unificou num imp�rio a Mesopot�mia central e meridional –, escreveu um conjunto de hinos que ainda ressoam nos Salmos da “B�blia”.
 
Ao decifrarem os fragmentos dos seus versos, no s�culo 20, impressionados com a escrita brilhante, pesquisadoras apelidaram Enheduana de “a Shakespeare da literatura sum�ria”. Lembrando que esse in�cio promissor n�o tenha sido padr�o na Antiguidade, Irene Vallejo assinala como j� na “Odisseia” o adolescente Tel�maco manda a m�e se calar, conferindo apenas ao homem a fala no espa�o p�blico.
 
E se a civiliza��o grega inaugura a ideia da democracia, o faz restringindo ao homem livre e propriet�rio de terras o acesso � �gora do debate. “Atenas, a capital dos experimentos pol�ticos e da ousadia intelectual, foi talvez a cidade grega mais repressiva em rela��o �s mulheres”, assinala a autora. Foi uma �poca de “clamorosa” aus�ncia de mulheres criadoras, diz ela.
 
As mulheres que escreviam eram discriminadas e alvo de zombaria p�blica. Mas elas estavam l�, na pessoa de Cleobulina, filha do rei de Rodes; no s�culo 6 a.C.; em Safo, que n�o era filha de reis, mas de uma fam�lia aristocr�tica: afronta a ordem autorit�ria vigente, evocando em sua poesia o desejo e o amor. 

Nesta obra que reconstitui a trajet�ria da escrita, do alfabeto e do livro – a mem�ria universal e o melhor ant�doto ao esquecimento e � destrui��o das conquistas civilizacionais –, Irene Vallejo tamb�m busca, num minucioso trabalho de arqueologia, os vest�gios e indicativos do papel intelectual das mulheres na hostil Antiguidade.
 
E encontra o tesouro desta contribui��o em Asp�sia, a brilhante segunda esposa de P�ricles, que escrevia os discursos dele e mantinha interlocu��o com S�crates. 

Vallejo recuperou a mem�ria daquelas que chama de “tecel�s da hist�ria”, pioneiras, que chegam � contemporaneidade em fragmentos, como a fil�sofa Hip�cia,  filha de Theon, diretor da Biblioteca de Alexandria, que viveu entre os anos de 355 e 415 d.C., tornando-se chefe da escola plat�nica em Alexandria, onde lecionou filosofia e astronomia, al�m de ter escrito diversos textos sobre geometria e �lgebra.
 
A ela s�o creditadas as inven��es de um hidr�metro aprimorado, do astrol�bio (e de um instrumento para destilar �gua). A autora presta homenagem a grandes escritoras do s�culo 20: Anna Ajmatova, Karen Blixen, Clarice Lispector, e tamb�m dedica especial passagem �s bibliotec�rias an�nimas do Kentucky, que a cavalo, a servi�o do estado, percorrem vales e aldeias no contexto do New Deal.
 
Carregavam livros nos alforjes para estimular a leitura, combater o analfabetismo e driblar o desemprego. 

O futuro dos livros

Frequentemente indagada sobre o que ser� do futuro dos livros, diante de previs�es apocal�pticas em torno das novas plataformas e tecnologias que levam a humanidade a passar a maior parte do seu tempo diante de uma tela iluminada, a autora faz uma longa digress�o sobre como pr�ticas t�o antigas que nos foram contadas pelos livros seguem atuais.
 
Foi assim que, em 21 de julho de 365 a.C., dia em que nascia Alexandre, na Maced�nia, o templo de �rtemis, em �feso – cidade-Estado na Anat�lia, �sia Menor, atual Turquia –, que levara 120 anos para ser constru�do, ardeu em chamas pelo desejo de um piroman�aco de gravar a sua identidade na posteridade.
 
Her�strato, assim, entrou para a hist�ria, tamb�m como o respons�vel por transformar em cinzas o rolo de papiro que Her�clito ofertara � deusa, exemplar de sua obra “Sobre a natureza”.
 
Embora carbonizada a obra de Her�clito, persistem as ideias desse homem, que inaugura a “literatura dif�cil” – em que o leitor precisa se esfor�ar para se apropriar do significado das frases.
 
Em tens�o permanente, disse ele, a chave para a compreens�o da realidade est� na mudan�a: nada permanece, tudo flui, e, nesse mundo em muta��o, o mesmo homem n�o pode se banhar duas vezes no mesmo rio. 

A paix�o pela escrita, pela literatura, pelo conhecimento registrados em diferentes formatos de livros convive, na hist�ria por estes revelada, com puls�o � destrui��o. Ao conquistar Pers�polis, Alexandre incendiou a joia do Imp�rio Aquem�nida (550 a.C. - 330 a.C.), que revolucionou os campos da arquitetura e da tecnologia para o planejamento urbano, absorvendo a influ�ncia cultural e tecnol�gica de 30 na��es que o compuseram.
 
Como a capital persa, tamb�m se transformou em cinzas o livro sagrado do zoroastrismo, entre outras preciosidades de um reino multicultural e amante das letras. Em 213 a.C., enquanto gregos e eg�pcios ca�avam mundo afora a totalidade dos livros para a Grande Biblioteca de Alexandria, o imperador chin�s Shi Huangdi mandava que todos os volumes de seu reino fossem queimados: imaginou, assim, que a hist�ria come�asse por ele.
 
Tr�s foram os grandes inc�ndios que consumiram a Biblioteca de Alexandria, mas, muito mais perto de n�s, ainda ali, no s�culo 20, as fogueiras nazistas tentavam controlar a dissemina��o das ideias; sob bombardeio intenso, duas guerras mundiais aniquilaram um sem-n�mero de bibliotecas; a revolu��o cultural chinesa promoveu expurgos de toda ordem; assim como o totalitarismo sovi�tico, as ditaduras na Europa e na Am�rica Latina – principalmente a do Brasil – atacaram livros e pensadores.
 
E ainda mais recentemente, o nosso s�culo 21 despertou sob o saque, consentido pelas tropas norte-americanas, de museus e bibliotecas no Iraque, onde a escrita caligrafou o mundo pela primeira vez. 

Apesar dos lapsos civilizat�rios de avers�o � hist�ria, ao conhecimento e ao livre-pensar, as melhores ideias jamais projetadas pela esp�cie humana sobreviveram gra�as aos livros e aos seus leitores, sustenta Irene Vallejo.
 
Sem estes, talvez n�o saber�amos da experi�ncia grega na funda��o do que se chama de “democracia”; os m�todos hipocr�ticos para o primeiro c�digo deontol�gico da hist�ria que eticamente – embora nem sempre ocorra – deva comprometer m�dicos de todo o mundo; de Arist�teles, que, como bem lembra a autora, fundou uma das primeiras universidades e dizia aos alunos que a diferen�a entre o s�bio e o ignorante � a mesma que entre o vivo e o morto; de Erat�stenes (276 a.C. - 194 a.C.), que calculou a circunfer�ncia da Terra com apenas um peda�o de pau e um campelo; ou dos c�digos legais deixados pelos romanos aos cidad�os de seu vasto imp�rio.
 
Sem os livros, desmemoriados estar�amos, sem identidade, em permanente e imobilizada busca pela chama perdida. 

“O infinito em um junco: A inven��o dos livros no mundo antigo” � um magistral ensaio sobre o pensamento, a escrita e o livro, em que Irene Vallejo deixa o tributo e a f� na travessia da humanidade sobre esses fundamentos. H� trope�os, sim, mas tamb�m muita resili�ncia para se aprumar e defender as conquistas civilizat�rias. Nas palavras dela:
 
“Durante a Antiguidade greco-romana, nasceu uma comunidade permanente na Europa; uma chama que, por mais que encolha, nunca � apagada por completo, uma minoria at� hoje inextingu�vel. Desde ent�o, ao longo do tempo, leitores an�nimos conseguiram proteger, por paix�o, um fr�gil legado de palavras. Alexandria foi o lugar onde aprendemos a preservar os livros, deixando-os a salvo das tra�as, da oxida��o, do mofo e dos b�rbaros com f�sforos na m�o”. Por tudo isso, profetiza a autora, os livros seguir�o resistentes e bem-sucedidos maratonistas contra o tempo. 
 
Capa do livro 'O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo'
(foto: Editora Intr�nseca/Reprodu��o)
 
“O infinito em um junco: a inven��o dos livros no mundo antigo”
•  Irene Vallejo
•  Tradu��o de Ari Roitman e Paulina Wacht
•  496 p�ginas 
•  Editora Intr�nseca
•  R$ 89,90. E-book: R$ 62,90

ENTREVISTA
Irene Vallejo/Escritora

“Tentei unir o prazer da leitura 
com a busca pelo conhecimento”


Quando ocorreu reconstruir as origens da escrita e do alfabeto em um ensaio original sobre a hist�ria do livro?
 
Os livros encheram minha casa antes que eu chegasse ao mundo. Quando eu nasci, eles j� estavam l�, multiplicando-se, felizmente ocupando todos os cantos, amea�ando expulsar a minha fam�lia, assim tomando posse exclusiva da casa.
 
Meus pais eram grandes leitores e, ainda beb�, colocaram em minhas m�os esses estranhos objetos de papel. Deram-me livros de papel�o para morder, chupar, cheirar e aprender a virar a p�gina.
 
Tive sorte. Desde o primeiro momento me ensinaram que, al�m das necessidades vitais – comer, dormir, abrigar-se do frio – h� hist�rias, jogos verbais, m�sica, beleza. O avesso do cotidiano, a po�tica do espa�o.
 
Durante meu tempo na universidade e depois, gra�as a uma bolsa de pesquisa, dediquei anos estudando a origem dos livros e o surgimento da leitura no mundo antigo. Durante uma d�cada, foi o tema central de meus estudos e publica��es.
 
No entanto, escrevi “O infinito em um junco” como um projeto muito pessoal, num momento particularmente dif�cil da minha vida, pensando que poderia ser o meu �ltimo livro. Senti que poderia se tratar de uma despedida, e por isso imaginei esta viagem com muita liberdade e com esp�rito aventureiro.
 
Resolvi entrela�ar as minhas duas facetas, como pesquisadora e ficcionista, em um ensaio livre e liter�rio, sem estar presa a um formato acad�mico, para ser lido com a emo��o de um romance. Uma hist�ria ousada e extravagante sobre duas paix�es �ntimas: o amor pelos cl�ssicos greco-latinos e pelos livros. Minha inten��o foi unir o prazer da leitura com a busca pelo conhecimento.
 
� um experimento liter�rio que entrela�a os dados com as vidas, as evoca��es de outros tempos, as digress�es liter�rias e cinematogr�ficas, a reflex�o, o humor, as associa��es com o presente, as cr�nicas de viagem, o suspense e o assombro diante da descoberta. Procurei reivindicar o entusiasmo e a paix�o que as hist�rias sempre despertaram em mim.

A sua obra traz ep�grafes de autores como Mia Couto, Siri Hustvedt, Marilynne Robinson, Emilio Lled� e Antonio Basanta, que testemunham a experi�ncia com o livro e a leitura. E para a senhora, o que o livro representa?
 
Desde o seu primeiro balbucio, o livro desafiou o poder e a soberania absoluta da destrui��o. Tudo seria devorado pelo esquecimento, mais cedo ou mais tarde, se n�o opus�ssemos os diques a essa mar� voraz. Talvez as barragens mais resistentes tenham sido os fr�geis livros.
 
Sem eles, ser�amos �rf�os das palavras que nos definem, da amplitude do legado que recebemos. Nos livros, as nossas melhores ideias, as mem�rias do nosso passado e as impress�es digitais e vest�gios de beleza viajaram no espa�o e no tempo: s�o, talvez, o nosso patrim�nio mais valioso. N�o pretendo idealizar os livros.
 
Sabemos que podem ser um ve�culo para ideias nocivas, mentiras e mensagens de �dio. Como todos os instrumentos humanos, eles podem ser usados para os melhores e os piores prop�sitos.
 
Nossa hist�ria foi e � tecida entre a civiliza��o e a barb�rie, as luzes e as sombras, as descobertas e a viol�ncia, e devemos ser capazes de nos mirar ao espelho sem esconder ne- nhuma dessas faces.
 
A hist�ria s� pode nos ajudar se a encararmos como realmente foi, ou o mais pr�ximo do que tenha sido, com as suas luzes e as suas trevas. Para as sociedades como um todo, o esquecimento � uma trag�dia. Pode livrar algumas pessoas de m�s lembran�as.
 
Se esquecermos a hist�ria, estaremos � merc� daqueles que a manipulam. Distorcer a hist�ria � ainda pior do que esquec�-la. O que � perigoso s�o as “meias mem�rias” utilizadas por alguns l�deres para alimentar o ressentimento e os medos.
 
� importante recorrer ao legado das coisas mais valiosas do passado, com esp�rito cr�tico, e tentar fazer com que as melhores ideias iluminem os debates do nosso tempo.
 
� essa a realiza��o alcan�ada pelos livros, na medida em que constituem uma polifonia: se contradizem, se questionam, se interpelam, se corrigem, entrela�am-se a partir de m�ltiplas perspectivas, dando-nos uma vis�o muito mais ampla e complexa da realidade.
 
Uma biblioteca p�blica constr�i a ampla polifonia, acolhendo o conjunto e a cada uma das vozes. 
 
Destacaria algum momento espec�fico na produ��o deste livro que tenha sido mais desafiador, que tenha exigido mais de si para que prosseguisse com o trabalho?
 
Uma das descobertas mais inesperadas, que se choca com os clich�s da hist�ria oficial, foi em rela��o ao papel intelectual desempenhado pelas mulheres na Antiguidade, uma �poca t�o hostil � cria��o fe- minina.
 
Foi preciso fazer um exerc�cio de investiga��o muito delicado: perguntei �s fontes, aos textos e � arqueologia sobre as aus�ncias, sobre os sil�ncios, sobre os vest�gios ef�meros e impress�es di- gitais das escritoras, fil�sofas, cientistas e professoras.
 
“Papyrus” � uma hist�ria sobre o conhecimento, cheia de riscos, viagens e inven��es, onde as mulheres n�o s�o apenas uma nota de rodap�, uma ep�grafe no final do cap�tulo, mas protagonistas da aventura, hero�nas corajosas que, junto com tantos homens, claro , defende- ram os livros contra a destrui��o e o esquecimento.
  
As aventuras de Enheduanna – a primeira pessoa conhecida a assinar um texto liter�rio foi esta sacerdotisa acadiana –,  Asp�sia, Hip�cia, Anna Ajmatova, Karen Blixen, Clarice Lispector ou as bibliotec�rias a cavalo do Kentucky, mostram que as tecel�s de hist�rias se recusaram a se calar em todas as �pocas, em todos os tempos.
 
Recuperei a sua mem�ria, as suas hist�rias, os nomes de algumas dessas pioneiras, embora delas tenham chegado a n�s apenas fragmentos de can��es, de versos, de pensamentos. Intrigam-me os personagens an�nimos, como os inventores do alfabeto, os cavaleiros misteriosos no in�cio do livro, os escravos copistas ou aqueles que salvaram os livros de Ov�dio, perseguidos pelo impe- rador.
 
Na verdade, acredito que os her�is desta incr�vel aventura dos livros n�o s�o grandes guerreiros, mas sim pessoas an�nimas, cujos nomes n�o sabemos, que empenharam as suas vidas para defen- der o aprendizado e o conhecimento.
 
Penso em tantas pessoas que, ainda hoje, nas escolas dos bairros das nossas cidades, nas pequenas bibliotecas rurais, naquela livraria independente que resiste � inclem�ncia destes tempos dif�ceis, mant�m a sua convic��o no valor da literatura, da cultura, do conhecimento.
 
Impressionam-me as palavras de N�lida Pi��n em seu “Livro das horas”: “N�o tenho filhos, mas leitores, capazes por si s�s de defenderem a civiliza��o contra os avan�os da barb�rie. A eles nomeio sucessores de uma linguagem irrenunci�vel”.
 
Essas pessoas an�nimas salvadoras de livros e palavras s�o, para mim, as “O infinito num junco”: a hist�ria de um feito antigo que devemos celebrar e preservar, porque segue vivo hoje.
 
Em seu livro, a senhora considera a descoberta do alfabeto um evento mais disruptivo do que a internet. Qual ser� o efeito das novas tecnologias no pensamento, na leitura e sobre o futuro dos livros?
 
A inven��o da escrita e, depois, a descoberta do alfabeto foram as primeiras revolu��es tecnol�gicas, lan�ando as bases para todos os avan�os sucessivos.
 
Desde ent�o, livros, rituais de leitura e nossa forma de construir o pensamento est�o em constante e acelerada transforma��o. A Biblioteca de Alexandria foi a primeira tentativa de abrigar o conhecimento universal em um s� lugar.
 
H� um fio de cartas e p�ginas que une a capital de Alexandre, o Grande com o nosso presente tecnol�gico. Livros e bibliotecas foram o modelo que inspirou os criadores da internet, como explica Timothy Berners-Lee, pai da World Wide Web.
 
As pessoas costumam falar muito sobre a rivalidade entre os formatos do livro tradicional e digital, mas acho a rela��o criativa frut�fera que os une muito mais fascinante. Todos os avan�os tecnol�gicos nascem das descobertas do passado e, por sua vez, as inova��es contribuem para melhorar objetos e pr�ticas antigas.
 
Pensemos, por exemplo, em como as tecnologias mais inovadoras se aliam � oralidade: no r�dio, nos podcasts, nos audiolivros. E os velhos ecos s�o revividos quando algu�m se senta ao lado da cama de uma crian�a para lhe contar uma hist�ria de boa noite.
 
Como pesquisadora, interessa-me a riqueza da conviv�ncia – n�o a competi��o – entre as formas tradicionais e a presente. N�o vejo os livros em papel e as telas digitais como inimigos, mas como parceiros nesta aventura do conhecimento.
 
Cada um deles nos oferece vantagens diferentes, ampliam o horizonte de nossas possibilidades. Atrevo-me a pensar que estamos vivendo o in�cio de uma bela e longa amizade.
 
Claro, acho que a leitura de livros ainda � essencial nestes tempos fren�ticos e acelerados, colonizados pela velocidade, pelo imediatismo e pela explos�o de novidades que se multiplicam e se devoram. Ler n�o � t�o passivo quanto ouvir ou ver; � recrea��o e efervesc�ncia mental.
 
Lemos no nosso pr�prio ritmo, modulamos a velocidade e dominamos o tempo, internalizamos o que queremos assimilar e n�o o que nos � lan�ado com tal �mpeto e volume que acabamos sobrecarregados.
 
Neste tempo acelerado, os livros surgem como aliados para recuperar o prazer da concentra��o, da intimidade e da serenidade.

Quando escrevia “O infinito em junco”, imaginou que alcan�aria esse sucesso editorial?
 
Eu n�o esperava uma recep��o t�o boa nem nos meus sonhos mais loucos. Escrevi “O infinito em um junco” sem editora garantida para public�-lo, sem certezas ou esperan�as. Sempre pensei que seria um livro pequeno e discreto, que passaria na ponta dos p�s.
 
A maravi- lhosa acolhida superou todas as minhas fantasias. A profiss�o liter�ria � um trabalho exposto ao tempo, realizado sob c�u aberto. Nesse terreno baldio, a�oitado pelo vento, este livro me trouxe alegria, esperan�a e abrigo. Abriu portas e oportunidades para mim.
 
Pessoalmente, sinto o carinho dos leitores como um imenso privil�gio. Sua incr�vel generosidade me presenteou com meu sonho de inf�ncia: dedicar-me � escrita com absoluta liberdade criativa.
 
Por isso, espero viajar ao Brasil para conhecer leitores de um pa�s cuja cultura e criatividade sempre me fascinaram. Neste momento, estou sobrecarregada de trabalho, mas � uma d�diva poder escolher os meus projetos e, quando posso sentar com um novo livro, ter a calma necess�ria para a leitura, ter o tempo necess�rio para fazer a pesquisa, para escrever e reescrever.
 
Por sua vez, carrego agora o peso e a responsabilidade de fazer jus a essa enorme confian�a recebida.
 
Gostaria de contribuir com meu gr�o de areia para trazer para o debate p�blico alguns temas importantes, como o cuidado, as comunidades, a contribui��o intelectual das mulheres ao longo da hist�ria, o valor das humanidades e da educa��o no mundo do futuro: A grandeza do pequeno e a for�a do fr�gil. O que nos une.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)