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Estado de Minas PENSAR

Murakami volta � inf�ncia para aprender com as dores do pai na guerra

Escritor japon�s lan�a 'Abandonar um gato', livro em que conta tamb�m sua paix�o pelos felinos quando era crian�a


12/08/2022 04:00 - atualizado 12/08/2022 13:03

ilustração do livro 'Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai'
Ilustra��o do livro 'Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai'
“Uma das coisas que quis retratar neste texto � qu�o profundamente a experi�ncia da guerra pode transformar a vida e o esp�rito de uma pessoa – de um cidad�o comum, como qualquer outro. E que, se estou aqui agora, � resultado disso. Se o destino do meu pai tivesse tomado qualquer outro rumo, por mais �nfima que fosse a diferen�a, com certeza eu n�o existiria. A hist�ria � isto: uma �nica realidade, inflex�vel, que prevaleceu entre incont�veis possibilidades. A hist�ria n�o est� no passado. Ela existe no interior da nossa consci�ncia, ou do nosso inconsciente, corre como sangue vivo e, querendo ou n�o, � transmitida para as pr�ximas gera��es.”

 

Esse � um dos argumentos do escritor Haruki Murakami, de 73 anos, para explicar por que escreveu “Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai”, escrito em 2020 e que acaba de ser lan�ado no Brasil em bela edi��o capa dura da Editora Alfaguara, com igualmente belas ilustra��es da artista paulista Adriana Komura e haicais paternos como p�lulas de sabedoria.


Murakami � o mais cultuado escritor japon�s em atividade. Suas obras, com grande influ�ncia da cultura pop ocidental, j� foram traduzidas para mais de 40 pa�-ses.
 
O talento para misturar narrativas cotidianas com elementos fant�sticos conquista milh�es de eleitores mundo afora. � criticado dentro do Jap�o por fugir �s tradi��es milenares e obt�m apoio e provoca aplausos e apupos em sua terra natal tamb�m pela posi��o pacifista contra o militarismo.

Duas hist�rias reais de sua inf�ncia envolvendo gatos, que sempre povoaram sua casa e sua tenra idade, abrem e fecham a obra e s�o o mote para Murakami mergulhar, com sutileza po�tica e profundidade filos�fica, nas reminisc�ncias do tempo em que era crian�a em Kyoto, onde nasceu – capital do Jap�o at� 1868, localizada na ilha de Honshu, famosa pelos templos budistas, pal�cios imperiais e santu�rios xinto�stas –, e Shukugawa.
 
Entre os ensinamentos do budismo milenar de sua fam�lia e o horror frequente da guerra sino-japonesa e da Segunda Guerra Mundial, nas d�cadas de 1930 e 40, o escritor segue com sua habitual simplicidade e economia de adjetivos para descrever o cotidiano que permeia toda as suas obras.
 
Murakami faz muitas reflex�es sobre as dores deixadas pelas feridas da guerra daquele tempo e das cicatrizes que at� hoje reverberam em sua vida, j� na terceira idade.
 

O ponto de partida da obra � a lembran�a de quando foi com o pai, Chiaki, numa tarde de ver�o, abandonar uma gata que apareceu em casa, em Shukugawa. Mesmo morando em casa com jardim e espa�o para animais, eles decidiram n�o ficar com ela.
 
Depois do trajeto de bicicleta de cerca de dois quil�metros na garupa do pai segurando a caixa com a gata, eles a deixaram numa praia e pedalaram de volta.
 
Mesmo gostando de animais, n�o quiseram ficar com ela. “Naquela �poca – meados da d�cada de 1950 –, abandonar gatos era muito mais comum e n�o tinha nada malvisto, at� porque n�o ocorria a ningu�m castrar o seu gato”, lembra.

Mas o desfecho foi surpreendente. “Ao chegar, descemos da bicicleta, comentando: '� uma pena, mas fazer o qu�?'. Abrimos a porta e... deparamos com a gata que t�nhamos acabado de abandonar, miando e com alegria, rabo esticado para o ar. Ela tinha voltado antes de n�s. N�o consegui entender como ela fez aquilo. T�nhamos voltado direto, de bicicleta. Meu pai tamb�m n�o entendeu. Ficamos os dois sem palavras. Eu me lembro bem da cara de espanto do meu pai, que aos poucos se transformou em um semblante de admira��o e, por fim, de certo al�vio. Depois do epis�dio, ficamos com a gata. Se ela fazia tanta quest�o de viver sob aquele teto, o jeito era deixar.”

Murakami conta que seu pai, que nasceu em 1917 e morreu aos 90 anos, todas as manh�s passava bom tempo recitando sutras budistas diante de uma esp�cie de altar, uma pequena redoma de vidro com a est�tua de um bodisatva esculpida.
 
“Uma vez, quando eu era crian�a, perguntei por quem ele recitava os sutras. ‘Por aqueles que morreram na �ltima guerra. Pelos companheiros que perderam a vida e tamb�m pelos inimigos chineses.’ N�o disse mais nada, e mais nada perguntei”, explica o escritor.

Era comum os filhos serem enviados para um templo pr�ximo como monge aprendiz.
 
Seu pai era o segundo dos seis filhos de um sacerdote budista e quase se tornou um monge, tradi��o familiar, mas n�o se adaptou ao templo para onde foi enviado e, mais tarde, o sustento da fam�lia como professor o impediu da de- dica��o integral � sua f� e de suceder ao pai, que era sa- cerdote.
 
 
O pai, ent�o, entrou para a Escola de Estudos Seizan, e antes que pudesse escolher uma carreira, foi convocado pelo Ex�rcito imperial como soldado num batalh�o de transporte, em 1938.

EXECU��O DE SOLDADO

Estava em curso a guerra sino-japonesa. Em meio � guerra civil na China, o imp�rio expansionista japon�s invadiu o pa�s vizinho. De estudante a monge budista, o pai de Murakami se tornou soldado, que por pouco escapou da famosa Batalha de Nanquim, ent�o a capital chinesa, em 1937.
 
Tropas japonesas massacraram mi- lhares de chineses, incluindo mulheres e crian�as, que foram estupradas e assassinadas, numa das piores barb�ries do s�culo 20. Mas o pai foi convocado para o re- gimento que invadiu a cidade chinesa um ano depois da carnificina.

Uma experi�ncia dolorosa que o pai presenciou no campo de batalha e contou ao filho pequeno foi a execu��o sum�ria de um soldado chin�s, prisioneiro de guerra.
 
“Ele disse que o soldado chin�s, mesmo sabendo que seria executado, n�o se agitou nem entrou em desespero. Permaneceu sentado na mesma posi��o, impass�vel, em sil�ncio, de olhos fechados. E assim foi decapitado. Uma atitude realmente admir�vel, observou meu pai, que parecia nutrir profundo respeito por aquele soldado chin�s, sentimento que talvez n�o tenha se alterado at� o fim de sua vida”, conta Murakami, que diz ser essa uma lembran�a que o marca profundamente, desde ent�o, por toda a vida.

Mas as guerras n�o cessavam. Assim que o pai voltou da guerra sino-japonesa, em 1939, disposto a voltar a estudar, estourou a Segunda Guerra Mundial.
 
“Meu pai sempre gostou de estudar. Os estudos eram, para ele, uma raz�o de viver. Grande apreciador de literatura, mesmo depois de se tornar professor passava bastante tempo sozinho. Nossa casa sempre foi abarrotada de livros, o que pode ter contribu�do para que me tornasse um leitor voraz na adolesc�ncia”, lembra.
 

O pai de Murakami acabou, ent�o, convocado de novo para a guerra, em 1941. Mas, numa reviravolta inesperada, teve a convoca��o revogada dois meses depois, apenas oito dias antes do ataque japon�s a Pearl Harbor, que levou os EUA a entrarem na guerra e, como consequ�ncia, em 1944, destru�rem Hiroshima e Nagasaki com bombas at�micas, em 6 e 9 de agosto.
 
O pai lhe disse que um superior descobriu que ele era estudante universit�rio e, simplesmente, o dispensou. “Acredito que vai contribuir mais para a na��o como acad�mico do que como soldado”, disse o oficial, em decis�o surpreendente.

O jovem soldado, que ainda teria outra curta temporada no Ex�rcito ap�s nova convoca��o, em 1945, j� no fim da Segunda Guerra, p�de ent�o voltar para casa ap�s escapar de mais uma trag�dia, cursar letras na Universidade de Kyoto e se dedicar � fam�lia e aos haicais, outra grande paix�o.
 
Do front, enviava haicais, pequenos poemas que chegaram a ser publicados na revista de sua escola. Murakami cita alguns, entre eles, esses em tom saudosista e contemplativo:

P�ssaros migrando
ah, para onde voam?
para a minha terra

Soldado, mas ainda
monge, de m�os postas
diante da lua

GOTAS SOBRE A TERRA 

Por causa de desaven�as devido � sua resist�ncia em seguir a vida acad�mica, Haruki Murakami conta que ficou 20 anos sem conversar com o pai. A reaproxima��o ocorreu apenas quando o velho j� estava � beira da morte, carcomido por c�ncer e diabetes, no fim da d�cada de 1980.
 
Ap�s a morte dele, Haruki pesquisou  em arquivos militares japoneses e soube mais detalhes dos alistamentos, o que permitiu que escrevesse “Abandonar um gato”.
 
Ali�s, em “1Q84”, trilogia que tornou Murakami co- nhecido em todo o mundo, o protagonista, Tengo, � um alter ego de Haruki ao visitar o pai moribundo e ranzinza, e ambos tentam se reaproximar em suas �ltimas semanas de contato antes da morte do velho.
 
 

Murakami fecha seu novo livro com outra hist�ria de felino – “O gato que subiu no pinheiro” –, que ilustra a capa do livro e tamb�m tem final ins�lito. N�o vai spoiler aqui dessa pequena narrativa, sobre a qual ele divaga novamente sobre a passagem do tempo e da exist�ncia:
 
“Passamos a vida olhando fatos que s�o fruto de mera causalidade como se fosse a �nica realidade poss�vel. Em outras palavras, cada um de n�s n�o passa de uma entre incont�veis gotas de chuva que caem sobre a vastid�o da terra. Gotas �nicas, � verdade, mas perfeitamente substitu�veis. Ainda assim, cada uma dessas gotas de chuva tem as suas pr�prias ideias. Cada uma tem a sua hist�ria e tamb�m a obriga��o de levar adiante essa hist�ria. N�o podemos nos esquecer disso. Mesmo que cada gota logo seja absorvida, perca o contorno individual e desapare�a como parte de um coletivo maior. Ou melhor: justamente porque vai desaparecer como parte de um coletivo maior.”

Capa do livro 'Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai'
 
“Abandonar um gato: O que falo quando falo do meu pai”
Haruki Murakami
• Adriana Komura (ilustra��es)
• 112 p�ginas
• R$ 64,90 (impresso)
• R$ 29,90 (digital)


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